Consciência da morte, consciência da vida em comum

09/06/2021

“O mundo não nos importa \ O nosso mundo começa \ Cá dentro da nossa porta \...\ Vamos viver o presente \ Tal qual a vida nos dá \ O que reserva o futuro \ Só Deus sabe o que será” (Só Nós Dois É Que Sabemos, Joaquim Pimentel).

Eis a (contraditória) expressão do pequeno burguês forjado na tradição cristã: o burguesismo tem seu território na vida privada e valoriza o herói de si mesmo; o cristianismo refuta a materialidade da História, desresponsabiliza-se dela, entregando-a a um deus.

Burguesismo: “Sem jantar e bem cansado \ Mas lá em casa \...\ Um punhado de problema \ E criança prá criar... \ Mas felizmente \ Eu consegui me formar \...\ Dizem que sou burguês \ Muito privilegiado \ Mas burgueses são vocês \...\ E quem quiser ser como eu \ Vai ter que penar um bocado” (O Pequeno Burguês, Martinho da Vila).

Cristianismo: “Diz que deu, diz que dá, diz que Deus dará \ Não vou duvidar, ô nega, e se se Deus não dá \ Como é que vai ficar, ô nega? \...\ Eu vou me indignar e chega” (Partido Alto, Caetano Veloso, Chico Buarque).

Esta composição, ademais, adverte: a divindade é “um cara gozador, adora brincadeira”, e quando brinca, brinca com pessoas. O crente resta um joguete: renuncia (nada indignado) à construção da vida, deixando-a ao deus que sabe, ao deus que dará.

“Milton Santos dizia: ‘A humanidade ainda não começou’. Parece terrível dizer que ainda não somos gente. Mas é de profunda esperança; ele quer dizer que nós ainda não somos suficientemente bons para aquilo que virá. Virá coisa melhor. Eu me identifiquei: não conformar, não acreditar que o grotesco faz parte do conceito de humanidade.

A humanidade acontece num bicho. Partimos de um bicho que poderia ser igual aos outros, mas que tem a capacidade de projetar sobre si outra realidade, outra mundividência. Não é o corpo que nos faz humanos. O corpo, sendo natural, é uma espécie de veículo. A humanidade é sobretudo uma construção de consciência e cultura. É uma construção mental.

Aconteceu conosco. Tivemos na mente o instrumento que nos habilitou a essa construção. Estaremos tão mais perto de sermos humanos quanto mais sofisticarmos o pensamento, quanto mais progredirmos nessa sofisticação mental (Valter Hugo Mãe, ESPM, editado).

Uma mentalidade sofisticada: “A humanidade está enfrentando uma pandemia. Milhões de mortos. Não seria o momento de a humanidade trabalhar em conjunto, em vez de continuarmos a ficar uns contra os outros? Queremos vencer, não cooperar. Não poderíamos viver de forma cooperativa, sem a necessidade de subjugar uns ao outros, em vez de cooperar para o bem comum?

Ainda não conseguimos aprender a nos ver como membros de uma única família. A realidade é tecida por relacionamentos, mas permanecemos cegos para o fato de que prosperamos na relação com outros, não uns contra os outros” (Carlo Rovelli, O tempo não existe, BBC Brasil, editado).

Tempo de discursos estúpidos: negação da ciência, prestigiação da ignorância. Necropolítica. Os sintomas que emergem da gerência da nossa vida pública trazem as marcas da pulsão de morte. Quem nos preside mata-nos por matar a nossa inscrição no melhor da Civilização Ocidental.

“A insensibilidade com relação à morte individual tem paralelo com a inconsciência referente ao destino do planeta. Pela primeira vez na História da humanidade a morte ultrapassa a dimensão do indivíduo e ameaça a sobrevivência de todos.

Por isso é preciso resgatar a consciência da morte, o que não deve ser entendido como preocupação mórbida de quem vive obcecado pela morte inevitável. Ao contrário, ao reconhecer a finitude da vida, reavaliamos nosso comportamento e escolhas, e podemos proceder a uma diferente priorização de valores.

A absolutização do poder, do acúmulo de bens, da notoriedade... A reflexão sobre a mortalidade torna ridículos esses anseios, privilegiando outros valores que nos dão maior dignidade. Esta reflexão, em dimensão planetária, nos ajuda a questionar os equivocados objetivos do progresso a qualquer custo.

A consciência da morte nos proporciona questionar não só se nossa vida é autêntica ou inautêntica, mas também se faz sentido o destino que os povos lograram para seus herdeiros” (Leda Salm de Mello, Facebook).

Falar sobre formas de vida privada egoístas e de administração pública preconceituosa que facilita a morte nos estimula a criar sentidos não só para a vida pessoal, mas, sobremaneira, para a vida em comum, contribuindo para que se exercite a pulsão de vida, insistente por natureza.

“Os temas da humanidade se atravessam uns aos outros. Os estereótipos, concepções moralizantes com seus fundamentos históricos, políticos, econômicos, religiosos vão atravessando o cotidiano nas coisas mais simples e naquilo que mais causa sofrimento.

Quanto falamos em sofrimento humano, estereotipamos, imaginamos uma situação traumática. Não, sofrimento humano é isso do dia a dia. O sofrimento humano é o das coisas corriqueiras: compras, contas, gravidez, crianças, escola” (Maíra Marchi Gomes, Amor e Ódio Maternos, Instituto Cidade, editado).

Tudo isso é sofrimento e pode produzir coisas, gerar efeitos. O que a gente vai fazer disso? O que a gente vai fazer do sofrimento pode produzir diferenças, não vai deixar aniquilar a vida (Andreia Moessa Coelho, Amor e Ódio Maternos, Instituto Cidade).

“Se a gente olha para trás e observa, através do tempo, tudo o que o mundo se tornou, a gente vê que as possibilidades de uso daquilo que é criado são numerosas. E por que seria uma só senda, um só resultado? Creio que é isso que se tem que discutir, entender por que é assim, e sugerir outras maneiras de combinar o que aí está (Milton Santos, Roda Viva, editado).

Milhares de manifestantes foram às ruas (29mai21), tocados pelo interesse público, premidos por problemas domésticos. Valentes, expondo-se à morte na aglomeração, bradaram pelo viver; assustados pelo miasma da peste que nos infesta, gritaram o temor de morrer. Por civismo ou por medo, um gesto edificante de humanidade

O mundo importa e começa depois da nossa porta; deus não dará. Vale penar por projetos particulares, está necessário penar por projetos comuns. “Um projeto de dedicação ao mundo” (Contardo Calligaris, Estamos distraídos demais para sermos hedonistas, Fronteiras do Pensamento).

 

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