Conforme o uso

11/10/2023

Bibliotecas impressionam. Quem se conduz entre as estantes que guardam os livros de uma grande biblioteca, formando amplas seções sobre saberes diversos, fascina-se com o conhecimento que a humanidade acumulou ao mesmo tempo em que compreende que saberá pouco sobre tantas coisas, dado que há tantas coisas a saber.

Essa compreensão, a de, em se sabendo um tanto, delimitar bem o tanto que não se sabe, permite conduzir-se melhor pelo já sabido e pelo a saber da vida, das coisas, do mundo, enfim. Todavia, não cabe a interpretação trivial do “Só sei que nada sei”. Em verdade, quanto mais se sabe, mais fácil é aprender e melhor se conjuga o aprendido.

Mesmo assim é irrealizável alcançar o que se oferta. Já não é possível nem mesmo armazenar fisicamente a toda a ciência humana. Do que as bibliotecas guardam, o vivificado depende de leitore\as, na medida em que leem e produzem novos ou desfrutam velhos conhecimentos. A biblioteca, enquanto depósito, dorme e amanhece igual.

A Web, à primeira vista, parece uma ilimitada biblioteca de livros não físicos, uma infinidade de estantes virtuais guardando textos que se consubstanciam se acessados. Porém, é mais do que isso. A Web tem vida própria, ninguém a controla, nela se acrescenta conhecimento ao mesmo tempo em que se desinforma e se embaralham as coisas.

A Web jamais acorda como dormiu, e ninguém está seguro de que as inscrições disponíveis sejam, de fato, informação séria ou fraude posta a circular. O disponibilizado virtualmente, no entanto, necessita de um acumulado de informação real, ou nada fará sentido. Não a despeito disso, mas por isso mesmo, todavia, que a Web deslumbra.

A vida própria da Web é um evento libertário. A humanidade se dispôs uma “árvore do conhecimento” fora de licenças de autoridades, governamentais ou familiares. Mesmo nos regimes ditatoriais dá-se um jeito, navega-se. Se livros podiam ter o transporte obstaculizado, ser queimados, bytes colocados em circulação são inalcançáveis pela censura.

Os conteúdos on-line são dotados de ubiquidade: acessáveis a reduzido custo, em todos os lugares, a qualquer tempo, e ao alcance de inúmeras, portáteis e velozes ferramentas de comunicação. Remetidos ou buscados, são criaturas escapadiças do poder, inclusive do seu próprio poder criador. Sua natureza, pois, é potencialmente democratizante.

Embora seu potencial, porém, a Internet não é mais que um meio. Manuel Castells, Universitat Oberta de Catalunya: “O poder sempre esteve baseado no controle e, às vezes, na manipulação da informação. O grau de autonomia das pessoas para se comunicar, informar e organizar suas próprias redes de sociabilidade é muito mais potente com a internet. Ela é a construção da autonomia da sociedade civil.

Os governos sempre tiveram horror a isso. Não obstante, não a podem controlar. A única maneira é desconectá-la totalmente, um preço que nenhum país pode pagar. Está relativamente nivelado o espaço da comunicação em que se enfrentam interesses distintos. Os poderosos vigiavam os demais porque tinham os meios e a capacidade de fazê-lo. Agora as pessoas também podem vigiar os poderosos”.

A Internet, no entanto, se pode muito, não pode mais do que o propósito que lhe é dado. “As mudanças fundamentais são as que se produzem na mente: quando as pessoas mudam sua forma de pensar e, portanto, de atuar. Para que se manifestem fenômenos de utilização da rede nas mudanças de consciência e de informação, é preciso haver rede em condições e interesse num sistema político.

A renovação do sistema político exige que as pessoas queiram uma mudança. A internet serve para amplificar e articular os movimentos autônomos da sociedade. Ora, se essa sociedade não quer mudar, a internet servirá para que não mude” (FSP, 21set10 - Editado). Esse meio formidável é sucesso entre nós, lamentavelmente, entretanto, impera a superficialidade: insulto, fofoca, exibição pessoal, falsificação dos fatos.

Não só, todavia. Se prevalece o desperdício, não é “culpa” da Net. Em melhor se procurando, melhor conteúdo e melhor proveito se encontram. Pretendo que muita gente ouve boa música, acompanha boas palestras, assiste a bons filmes, visita bibliotecas e museus. Há projetos sociais, negócios, política. A Net propicia realizar vida inteligente.

Como tudo na existência humana, porém, trata-se de relações de poder. Sendo a Web uma ferramenta a serviço da humanidade, estará, reitero, para o emprego que se lhe dê. Que se lhe dê, pois então, serventia aos afetos, às relações pessoais: conversar imagem, rearticular parentes, buscar amigos de infância, namorar, inclusive.

E que se a politize, acarretando-lhe utilidade à vida em comum: aulas a distância, discussões sobre urbanidade, orientações ecológicas, ensinamentos sobre cuidados pessoais, o que a imaginação permita. Quanto às questões púbicas, que se a ideologize: articulação de minorias, propostas alternativas de sociedade, democracia, enfim.

 

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