Propõe-se uma leitura integrada dos princípios da intervenção mínima e da preservação da empresa, no cenário de um conflito societário.
A jurisprudência consolidou o entendimento de que o princípio da “não intervenção” é mitigado, dando sustentação ao chamado “princípio da intervenção mínima”, aplicável ao direito empresarial.
Ainda no ano de 2001, comentamos a respeito da possibilidade da intervenção democrática do Estado nos domínios econômicos, sociais e culturais, tendo concluído naquela oportunidade que o Estado Democrático de Direito não perde essa característica apenas porque intervém pontualmente para sanar alguma falha, inclusive de mercado. É, portanto, legítima a intervenção que tem por base o interesse público e por limite os direitos fundamentais assegurados na Constituição da República[i].
A empresa se constitui de uma estrutura orgânica que participa da ordem econômica a partir de um segmento de mercado, obviamente é de interesse público a sua atuação regular e em conformidade.
É fato que as sociedades de pessoas (sociedades limitadas, por exemplo) ou de capital (sociedades anônimas), ressalvando-se que as companhias fechadas também carregam algumas características das sociedades intuitu personae, ficam sujeitas a problemas de ordem prática na relação entre os sócios/acionistas e até mesmo entre estes e terceiros (fornecedores, clientes).
A organização societária contempla, naturalmente, a administração, a condição de sócios majoritários, minoritários ou de igual participação, sendo que em alguns tipos societários, outros órgãos, tais como: diretoria, conselho fiscal e de administração, comitês de sócios dentre outras variações, algumas, inclusive, agregam a participação de agentes externos, como é o caso dos conselhos temáticos. Percebe-se, deste modo, o envolvimento de vários agentes econômicos, cujas relações podem derivar conflitos.
Os conflitos mais comuns emanam da ausência da condução dos negócios e da administração segundo as “boas práticas” de gestão empresarial, principalmente quando a administração deixa de dirigir o negócio como se seu fosse, desviando-se dos interesses sociais e das orientações éticas advindas do poder de controle, sistematizado pelo artigo 116 da Lei 6.404/76 (LSA).
Há uma tendência de acirramento de problemas quando apenas um dos sócios ou um conjunto deles participem da administração, pois, não é incomum, negligenciar os deveres de diligência, lealdade e transparência, que invariavelmente repercutem no descumprimento ou no desprezo de direitos essenciais dos sócios/acionistas, principalmente minoritários, destacando-se os seguintes: fiscalizar a gestão social, a partir do exame das contas, dos resultados, dos livros, documentos e do estado do caixa (Lei 6.404/76, artigo 109, III e CC, artigos 1.020 e 1.021); participar nos resultados (lucros/dividendos) e nas reuniões ou assembleias.
Os conflitos são mais candentes quando os direitos sociais são de fato desprezados e não resolvidos racionalmente em conformidade com a lei e com o estatuto, agravando-se os custos de transação para a empresa e para os sócios. Observe-se que não é qualquer conflito que dá ensejo ao pleito de intervenção, que pode se desdobrar em: a) intervenção para destituir o administrador e nomear um administrador judicial; ou b) intervenção para nomear um administrador judicial apenas para fiscalizar certos e determinados atos, sem a intenção de substituição.
Quando a situação chega a este ponto é porque a administração já foi instada por notificação ou outras medidas até mesmo de ordem judicial, para praticar atos de correção de vícios apontados ou cumprir certas e determinadas deliberações, todavia respondeu negativamente aos pleitos (conduta ativa) ou omitiu-se (conduta passiva).
Lembre-se, por oportuno, que o ato de pedir a intervenção pode dar ensejo a uma correção de rota pela administração, que citada, faz novo exercício de reflexão e ponderação, recolocando as atividades sociais no rumo adequado, pelo incentivo gerado pela medida extrema, justamente por se tratar de uma questão comportamental.
É, portanto, diante de um cenário de obstrução social que o sócio/acionista prejudicado socorre-se da jurisdição, objetivando fazer valer os seus direitos ou os direitos da sociedade ou sociedades de que participa, devendo-se atentar para questões relacionada a legitimidade, pois o tipo de discussão societária pode eventualmente exigir conduta administrativa prévia, inclusive de convocação preliminar para deliberação colegiada.
É importante ressaltar, até mesmo em razão de graves equívocos cometidos no âmbito da solução de casos societários, que a jurisprudência, em algumas situações hipótese, tem mantido atos irregulares ou ilegais, muitos de gravidade acentuada sob o pretexto da ausência de prejuízos.
Ocorre que a palavra “prejuízos” não está vinculada apenas ao aspecto econômico e monetário, mas também a outros direitos essenciais dos sócios, por vezes não levados em conta. O que isso quer dizer? O que ocorre com uma Assembleia Geral (Ordinária ou Extraordinária), questionada pela ausência de convocação a um dos sócios/acionistas, mas que em tese não causou prejuízos econômicos a ele ou a sociedade de que participa? Em uma análise mais superficial, seria provável uma decisão pela manutenção dos efeitos da respectiva AGO ou AGE. Todavia, este pensamento parece raso e inconveniente, pois não trará incentivos à realização de atos sociais regulares e de conformidade. Quando se fala em prejuízos está a se falar em sentido amplo, não apenas nos aspectos econômico-financeiros, mas no direito essencial de participação. Esse é o prejuízo imediato. O sócio tem o direito de participação, que não pode ser a ele sonegado por ato social ou jurisdicional, sendo absolutamente necessária a suspensão dos efeitos do ato deliberativo e ou a anulação, até ulterior deliberação, mesmo que por mera ratificação. Não importa que a providência seja tomada por acionista minoritário e nem que seja improvável a modificação da decisão tomada na respectiva assembleia, há de ser chamado a novo ato com a mesma ordem do dia.
A reiteração de falhas pela administração no atendimento dos compromissos sociais, bem como o descompromisso em relação às boas práticas de gestão, de conformidade ou de atendimento das deliberações sociais tomadas, com ênfase no atendimento do princípio da preservação da empresa, que na balança tem maior peso que o da não intervenção, conduz ou pode conduzir a atos de intervenção deflagrados por meio de ação judicial específica, dando vigência então a dois princípios conjugados — mínima intervenção + preservação da empresa —.
Intervir em benefício da harmonia social e em última análise colaborar com a empresa de forma proveitosa, não significa ato de intervenção maléfico ou impróprio, mas ato de prudência e de recomendação. Neste pondo que retomamos as duas situações hipótese.
No primeiro julgado, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais determinou o afastamento do administrador sócio e nomeou um administrador judicial para a condução dos negócios. Confira-se:
EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADE - TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA - INDÍCIOS DE MÁ GESTÃO - NOMEAÇÃO DE ADMINISTRADOR JUDICIAL - PODER GERAL DE CAUTELA - MEDIDA ADEQUADA À PRESERVAÇÃO DA EMPRESA E DOS INTERESSES DOS SÓCIOS. I - Pode o juiz, no exercício do poder geral de cautela, determinar, de ofício, as medidas que considerar adequadas para garantir a segurança do resultado útil do processo. II - Tratando-se de ação de dissolução parcial de sociedade, e demonstrados nos autos indícios de má gestão do empreendimento, é razoável a nomeação de interventor judicial para administrar a empresa, a fim de resguardar o patrimônio da sociedade e os interesses dos sócios, viabilizando futura apuração de haveres. (TJMG - Agravo de Instrumento-Cv 1.0210.16.005762-1/002, Relator(a): Des.(a) João Cancio , 18ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 11/06/0019, publicação da súmula em 11/06/2019).
Pelo teor do julgado percebe-se que houve a nomeação de um administrador judicial para administrar a empresa em substituição ao administrador sócio, hipótese de viabilidade porque se entendeu que os atos de má gestão, configurada, descuida de um princípio maior que é o de prevalência do princípio da preservação da empresa.
O ato de destituir o administrador por meio da intervenção judicial mais ampla suscita situações de gravidade, consumada em atos contrários a legalidade ou ao estatuto, especialmente quando decorrentes do abuso do poder de controle ou atos de gestão ruinosa.
Toda a forma de abuso do poder de controle é idealizada por conduta grave, a exemplo da maquiagem do balanço para diminuir a participação acionária em detrimento do sócio que não participa da administração e, portanto, não recebe pró-labore, apenas dividendos na proporção da sua quota considerados os lucros, dentre outras situações previstas, exemplificadamente, no artigo 117 da LSA (orientar a companhia para fim estranho ao objeto social, com desvio de finalidade, praticar atos ilegais em descumprimento com os deveres, eleger administrador inapto, moral ou tecnicamente, adotar decisões ou políticas que visem causar prejuízos aos acionistas minoritários, aprovar ou fazer aprovar contas irregulares, dentre outras)[ii].
No segundo julgado, em que pese o pedido de destituição do administrador, o Tribunal de Justiça do Paraná determinou a nomeação de um interventor judicial, não para substituir o administrador, mas para acompanhar e fiscalizar os atos de administração, considerando-se a quebra dos deveres de fidúcia previstos no contrato social. Confira-se:
Agravo de instrumento. Ação de dissolução parcial de sociedade. Pedido de afastamento do sócio agravado da administração da sociedade. Violação do contrato social. Pretensão de manutenção da administração da sociedade de forma lícita. Evidente beligerância entre os sócios. Prática de atos contrários ao contrato social por ambos os sócios. Desnecessidade de afastamento dos sócios para atingir a finalidade da antecipação de tutela pretendida. Observância dos princípios da intervenção mínima e preservação da empresa. Nomeação de interventor judicial. Finalidade essencialmente fiscalizatória. Recurso conhecido e parcialmente provido. (...)
- Com base nos princípios da intervenção mínima e da preservação da empresa, bem como na possibilidade de o magistrado determinar medidas que visem assegurar a tutela provisória e especialmente porque tal medida é menos drástica do que suspender os poderes de administração de ambos os sócios, o que, diga-se de passagem, seria plenamente possível, se mostra adequado a nomeação de um interventor judicial para acompanhar os atos de administração desempenhados pelos sócios[iii].
Como visto, a pretensão judicial corretiva pode derivar para a intervenção sem a necessidade de destituição. Por intervenção corretiva ou de fiscalização entende-se que o pedido não deva contemplar o afastamento do administrador, mas sim e apenas de acompanhamento e de fiscalização dos atos sociais e de administração, especialmente aqueles eleitos como ponto de atenção pelo autor da medida judicial oposta.
Nesta particularidade o interventor atuará na fiscalização, observando e denunciando ações ou omissões contrárias às deliberações tomadas, contrárias à lei e ou ao estatuto social. Deverá acompanhar o estrito cumprimento dos deveres de administração, principalmente, mas não apenas, aqueles vinculados aos direitos essenciais dos sócios/acionistas.
Como a intervenção neste caso objetiva fiscalizar e acompanhar os atos de gestão pontualmente lançados, não pode ser entendida como uma interferência na autonomia societária privada, ao ponto de gerar impedimento da providência jurisdicional. A fiscalização pelo interventor nomeado pelo juiz deve ser entendida como um ato pró-sociedade, dependente, obviamente da caracterização de atos irregulares, ilegais, contrários às boas práticas, em termos de governança e compliance.
Tanto a intervenção pela destituição como a intervenção para a fiscalização podem suscitar um pedido de tutela provisória de urgência (de natureza cautelar ou antecipada) diante da presença de elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo (CPC, art. 300), estando o juiz autorizado a determinar outras medidas que considerar adequadas para a efetivação da tutela, nos termos do que determina o artigo 297 do CPC.
Neste contexto conclui-se pela prevalência do princípio da preservação da empresa sobre o da não intervenção, que agregado ao princípio da intervenção mínima, utilizado na potência máxima, acarreta a intervenção legítima, que é, diga-se de passagem, não apenas recomendável, mas absolutamente necessário para o desenvolvimento econômico e social a partir da empresa, especialmente porque resgata iniciativas produtivas, proativas e comprometidas com os interesses sociais da companhia/empresa.
Notas e Referências
[i] ZOLANDECK, João Carlos Adalberto. Intervenção democrática do Estado nos domínios econômico, social e cultural. Argumenta Journal Law, 2001. Disponível em: < http://seer.uenp.edu.br/index.php/argumenta/article/view/12/13.>Acesso em: 02 junho 2020.
[ii] Empório do Direito. A administração das sociedades em grupo — o abuso do poder de controle, as consequências e as formas de coibir — a partir de uma configuração societária de ordem prática. Disponível em: < https://emporiododireito.com.br/leitura/a-administracao-das-sociedades-em-grupo-o-abuso-do-poder-de-controle-as-consequencias-e-as-formas-de-coibir-a-partir-de-uma-configuracao-societaria-de-ordem-pratica.>Acesso em: 03 junho 2020.
[iii] TJPR. 2019 — 18ª. Câmara Cível. Recurso n. 0048243-27.2018.8.16.0000.
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