Condenações ocultas da LGPD

24/07/2024

Este texto versa sobre (i) os registros oficiais, andamentos, menções de instituições, agências do Sistema de Justiça Criminal e campo jurídico em sentido amplo, abarcando multas, acordos celebrados, e mesmo condenações envolvendo más práticas com dados pessoais, que não expressamente citam ou se ancoram na LGPD; e (ii) o real das violações envolvendo dados pessoais, a completude inalcançável da chamada Cifra Oculta (cuja previsível impossibilidade de processamento pelo Estado é estrutural).

A partir disso, chegaremos (entre outras coisas) propriamente no título do texto, Condenações ocultas da LGPD. Em paralelo com os registros também ocultos, de situações que potencialmente caracterizam as violações à LGPD no Brasil.

Na Criminologia, a Cifra Oculta grosso modo refere-se à quantidade de situações que poderiam ser classificadas como crimes, mas não comportam registro e andamento legal nesse sentido, permanecendo “ocultas”, eclipsadas, e assim não alimentando as estatísticas oficiais, recortes significativamente arbitrários[i].

Estatísticas oficiais, cujas respectivas condenações são oriundas da verticalidade de decisões políticas, como realça a criminologia de Zaffaroni (2013), a mero título de exemplo, no clássico En busca de las penas perdidas.

Inclusive, contribuindo para com a compreensão da seletividade como característica intrínseca (não defeito, mas marca estrutural, regra) do poder punitivo, Zaffaroni (2013) explica que seria impossível para o Estado ter capacidade organizacional e operacional de lidar com todas as situações que poderiam ser classificadas e definidas como crimes.

Pegando carona nesse exemplo criminológico, quando se debate o tema das condenações envolvendo dados pessoais, muitas vezes ecoam conclusões que ignoram as faces ocultas de outros registros.

E mesmo, que ignoram condenações, com situações envolvendo dados pessoais e violações de direitos, ainda que com nomes e classificações das mais diversas. Além das condenações desatreladas do nome LGPD (que nos interessa aqui), existe a Cifra Oculta das próprias situações de violações.

Por partes: os registros oficiais das condenações da LGPD, esbarram na mixagem das questões envolvendo dados, confundidas com essa ponta do iceberg, que eclipsa não necessariamente violações, mas a vinculação com a legislação nacional de proteção de dados, a LGPD, ocultando seu atravessamento jurídico, institucional e cultural, em uma sociedade regida por dados.

Para além da subnotificação das reclamações em sentido amplo sobre dados pessoais e violações legais (por uma série de motivos, como excesso de trabalho, falta de tempo, falta de confiança nas instituições, medo etc.), temos uma diversidade de registros e mesmo condenações por violações de dados não classificadas ou vinculadas à LGPD.

O que ocorre, por exemplo, em registros, menções e condenações por práticas abusivas, violações ao CDC, falha na prestação de serviço etc., ou mesmo, diretamente versando sobre a existência de dano material e moral (e consequente dever de reparação).

Inúmeras dessas situações poderiam ou não compor o quadro jurídico das chamadas condenações da LGPD.

O certo é que as estatísticas frequentemente levantadas e mobilizadas, como pesquisas institucionais quantitativas, ainda demandam uma leitura e análise qualitativa, interpretativa daqueles dados, ainda que aparentemente "óbvios"[ii].

Considerando isso, deparamo-nos com esse intrínseco apagamento, e não correspondência dos registros oficiais frente ao real (o que, longe de uma descoberta recente, é algo estruturalmente previsível e conceituado em diversos campos).

Como um destaque, com efeito de fim, é importante se entender que o oceano de incidência da LGPD é maior do que usualmente se supõe quando nos guiamos por elementos como número de menções em Tribunais, cabendo uma leitura crítica do impacto cultural e abrangência real das preocupações com a LGPD, dados pessoais e direitos dos titulares desses dados, ainda que os registros e palavras nesse sentido, estejam oculta(da)s ou não realizadas de modo linear e convencional, nos trilhos de um andamento jurídico perfeito, que cita localmente cada artigo, conectando-o com as diretrizes da LGPD.

Um banco hoje pode sofrer uma condenação milionária por práticas abusivas e falha na prestação de serviço envolvendo dados pessoais, ferindo a LGPD, mas sem uma única palavra ligando o caso à LGPD.

No real do cotidiano, independentemente de como pensamos, cresce o número de pessoas reclamando acerca de práticas abusivas com seus dados pessoais (com ou sem razão, cumpre admitir), em uma dimensão exponencialmente maior do que muitas vezes se estima a partir das celebradas pesquisas institucionais (dado esse caminho oculto de situações não codificadas e direcionadas oficialmente à LGPD).

No final, é importante que se termine esta leitura com uma questão: hoje em dia, dados movem o mundo, e devem existir regras sobre esses dados, limites, que no final, versam sobre a própria dignidade das pessoas.

E envolvem responsabilidade jurídica, cujo impacto é maior do que frequentemente dimensionamos com base na busca expressa por termos e palavras como LGPD e dados pessoais, juridicamente conceituadas, mas que não saturam a realidade de infrações e mesmo condenações.

Assim como existem infrações à LGPD sem qualquer tratamento jurídico, existem condenações ocultas, sem vinculação formal com a lei, mas cujas conexões e reverberações importam na tessitura do real, ainda que inominável (abrangente das infrações, reclamações, multas e mesmo condenações por más práticas com dados e eventos relacionados, como incidentes de segurança, a exemplo do vazamento de dados).

O bloco flutuante, que frequentemente interpretamos como "condenações da LGPD", é oriundo de um recorte que ignora muito do conteúdo oculto ou ocultado.

Cabe-nos, portanto, prestar mais atenção na existência da face oculta de tudo isso, sem confundir o recorte com o todo, a ilha com o oceano.

 

Notas e referências:

[i] De modo que os presos correspondem aos alvos efetivamente criminalizados e encarcerados, e não à realidade (e diversidade) de situações e sujeitos que poderiam em tese compor esse quadro político-prisional, tecido por decisões essencialmente políticas. Mesmo se supusermos arbitrariamente que todos os presos são culpados acerca da imputação que lhes foi dirigida e formalizada, e que sua existência artificial deveria mesmo caracterizar um crime, teríamos, ainda assim, apenas a ponta do iceberg de uma sociedade que restaria encarcerada, não fosse a seletividade estrutural. Para evitar a armadilha de (re)legitimar o discurso raso de impunidade que ignora a seletividade como necessário dado do real, Genelhú (2015) faz uso do conceito de impunização, expondo a confusão e os limites do discurso que despreza a inescapável seletividade intrinsecamente presente de modo operacional na esfera criminal. E a Cifra Oculta seria, não exatamente a criminalidade real (afirmação complicada, dada a sua artificialidade e produção interpretativa a cargo das autoridades), mas o que poderia ser artificialmente enquadrado como tal, através da forma dos tipos penais, e assim, da interpretação das autoridades do sistema de justiça criminal.

[ii] Efeito de obviedade, que pode apagar questões bem mais complexas do que as usualmente levantadas, como se destaca desde a Análise de Discurso Francesa de Pêcheux (2014), que não enxerga uma estabilidade fixista, mas um território discursivo de embates ideológicos em torno dos efeitos de sentido, onde o invisível pode tornar-se visível e vice-versa.

GENELHÚ, Ricardo. Do discurso da impunidade à impunização: o sistema penal do capitalismo brasileiro e a destruição da democracia. Rio de Janeiro: Revan, 2015, passim.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 5. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2014.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. En busca de las penas perdidas: deslegitimación y dogmática jurídico-penal. Buenos Aires: Ediar, 2013.

 

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