Por Emerson Garcia – 12/12/2016
A utilização do concurso público como critério de escolha daqueles que ocuparão os cargos públicos de provimento efetivo tem se mostrado uma solução justa, com sensíveis vantagens sobre a nomeação direta. Afinal, o concurso prestigia a igualdade, ao permitir que qualquer indivíduo que preencha os requisitos previstos no edital venha a prestá-lo, e a impessoalidade, já que a Administração Pública direciona sua atuação à realização do interesse público, não à satisfação de interesses menos nobres.
A discriminação arbitrária é evitada na medida em que o concurso público confere preeminência ao mérito individual. E “o mérito”, como disse Nicolas Edme Restif (1734-1806), “produz uma desigualdade justa”. Trata-se da solução mais adequada às hipóteses em que benefícios e posições jurídicas favoráveis apresentam-se em quantitativo inferior ao número de interessados em potencial. A técnica utilizada para aferir o mérito dos interessados em ocupar o cargo público é a sua submissão a provas de conhecimento, que ainda pode ser acompanhada da análise dos resultados alcançados, em momento anterior, em distintos aspectos afetos à sua vida, os quais se materializam nos títulos que possuem.
As dimensões continentais do território brasileiro, somadas às características de nossa Federação, que conta com cerca de 5.500 governos, isso sem mencionar as estruturas de poder autônomas existentes em cada um deles, ao que se acresce a exigência constitucional da prévia aprovação em concurso público para o provimento da maior parte dos cargos públicos efetivos, fizeram que as provas de conhecimento se integrassem à nossa rotina.
A funcionalidade básica de uma prova de conhecimento, com escusas pela tautologia, é a de avaliar o conhecimento. Como avaliá-lo é o complicador a ser enfrentado. É factível que os seres humanos não possuem a mesma capacidade para identificar a informação, apreendê-la e realizar inferências lógicas a partir dela. Alguns são muito observadores, mas esquecem com facilidade o que viram; outros são pouco atentos à realidade, mas possuem grande capacidade para memorizar o que veem; alguns possuem incrível capacidade de raciocínio e ainda há aqueles que não conseguem alcançar uma única proposição, por mais singela que seja, a partir da informação obtida. No extremo oposto, há pessoas que possuem níveis elevados de desempenho em todas essas atividades e outras tantas que têm resultados sofríveis, o que simplesmente inviabiliza a sua participação em um certame de livre concorrência. Após ter participado, como examinador, de quase uma centena de concursos públicos, a experiência tem me ensinado que a média das pessoas apresenta desempenhos diversos em cada uma das referidas atividades.
Quando um concurso público qualquer insere, no mesmo patamar, avaliações que primam pela memorização e outras que valorizam raciocínios dedutivos ou indutivos, privilegiando, dessa maneira, a capacidade de realizar inferências lógicas, é factível que candidatos de perfis distintos poderão lograr aprovação. O candidato com elevada capacidade de memorização e nível de inferência lógica próximo da nulidade tem amplas chances de ser aprovado se tiver um desempenho não mais que sofrível na avaliação que afira a sua capacidade de raciocínio. A hipótese inversa, envolvendo um candidato com elevada capacidade de raciocínio, também pode ocorrer.
À luz desse quadro, é necessário que a Administração Pública bem avalie os objetivos que pretende alcançar com o concurso público. A capacidade mnemônica é sempre útil, mas pode ser facilmente substituída pelo bom e velho ficheiro. É perceptível que a necessidade de os serviços públicos serem aprimorados, compatibilizando-os com o princípio constitucional da eficiência, exige o aprimoramento da capacidade de gestão, de todo incompatível com a mera reprodução do status quo, bem ao gosto do “servidor público mnemônico”.
Nessa linha, é inevitável a constatação de que a avaliação deve privilegiar, acima de tudo, a capacidade de compreensão e de desenvolvimento argumentativo, não a estagnação típica da memória de ficheiro. Rotinas procedimentais, a serem reproduzidas mecanicamente no ambiente de trabalho, não devem fazer parte da rotina dos concursos públicos. Exigir a memorização de longas partes de leis e regulamentos, que não oferecem ou exigem um átomo de liberdade criativa, deve ser sempre evitado.
Quando a Administração Pública delineia mal a prova de conhecimentos, o mérito aferido termina por distanciar-se do mérito esperado para o desempenho da função pública. Em outras palavras, o concurso público prestigia a igualdade e a impessoalidade, mas termina por caminhar em norte contrário à eficiência administrativa, influindo negativamente sobre a qualidade do serviço público a ser prestado à coletividade.
Emerson Garcia é Doutor e Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa. Especialista em Education Law and Policy pela European Association for Education Law and Policy (Antuérpia – Bélgica) e em Ciências Políticas e Internacionais pela Universidade de Lisboa. Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, Consultor Jurídico da Procuradoria-Geral de Justiça e Diretor da Revista de Direito. Consultor Jurídico da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP). Publicou, como autor, coautor, coordenador ou tradutor, mais de quatro dezenas de obras jurídicas. Foi examinador em quase uma centena de concursos públicos, sendo Coordenador da Banca de Direito Constitucional em diversos exames nacionais da Ordem dos Advogados do Brasil. É membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), participando, ainda, da American Society of International Law e da International Association of Prosecutors. Facebook: emersongarcia / Fanpage: professoremersongarcia / Instagram: professoremersongarcia
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