Concurso Público e os traficantes de esperanças - Por Atahualpa Fernandez

05/03/2015

               Por Atahualpa Fernandez - 05/03/2015

                                                                   

A resposta de como

enfrentar-se a esse louco

mundo dos concursos

é trabalhar como um louco (a); 

e como tudo na vida,

“el que resiste, gana”.

Todas as épocas têm seus próprios temas conflitivos e suas próprias tendências. Para quem vivencia a experiência dos concursos públicos sabe que são os cursos preparatórios os que estão em voga. Todo um gigantesco mercado de “cursinhos” e concursos que vem engendrando a outro tipo de fenômeno não menos preocupante: o dos gurus da motivação, os “neurogurus” (ou “turbinadores de cérebro”), os autoproclamados professores triunfadores ou “expertos” em concursos públicos, com suas mirabolantes promessas de aniquilação de antigos flagelos relativos ao aprendizado, como a desmotivação, a autoestima, o poder da mente, a capacidade de memória, entre muitas outras que revelam opiniões desproporcionadamente  elevadas de nós mesmos.

Promessas permeadas por uma confusa miscelânea de verdades, semiverdades e mentiras; promessas que, fazendo bom uso do chamado “efeito guru” (D. Sperber), gritam para os mais crédulos desde sensacionalistas livros, revistas, blogs, artigos, palestras..., inspirados em e/ou manipulando uma prolífica fonte de mitos e distorcidas crenças que normalmente vem intercalada com falsos matizes psicológicos e com afirmações que contradizem frontalmente algumas evidências científicas.

Antes, contudo, de descrever os padrões repetíveis e verificáveis de cada um desses “traficantes de esperanças”, uma oportuna e necessária advertência: em minha opinião, o pior e mais daninho de todos é aquele tipo que se considera e se “vende”, ao mesmo tempo, como “neuroguru”, “motivador” e “triunfador”. Neste caso, repetindo a José Saramago, a ignorância manifesta um de seus mais graves e perversos inconvenientes: quando se junta com a estupidez, não tem remédio; a “tormenta perfeita”. Dito isso, sigamos.

MOTIVADORES” – Propagando um delirante otimismo, a crença de que o poder da mente não tem limites, que podemos alcançar tudo a que nos propomos, de «ser» o que «queremos» e que aquilo que concebemos como verdadeiro podemos converte em realidade, os “motivadores” insistem na lógica de que só os bons momentos têm direito a existir.

Em primeiro lugar, é evidente que ninguém busca ou deseja experimentar a parte desagradável e negativa da vida, mas, como não pode ser eliminada, o mais aconselhável é aprender a conviver com ela, tolerá-la e esforçar-se por superá-la. Este tipo de atitude é particularmente importante para aqueles que decidem passar pela experiência de fazer concursos, onde as dificuldades e/ou os eventuais momentos de frustração parecem ser inevitáveis. Ademais, qualquer conselho, por motivador e comovedor que seja, não é mais que o resultado da particular e idiossincrásica experiência de uma determinada pessoa. E como as opiniões de uma pessoa não podem ser mais sólidas que a informação em que se baseiam, há poucas razões para crer que as experiências dos demais sejam mais informativas e relevantes que a nossa para valorar, em primeira pessoa, o que percebemos da realidade.

Segundo, porque se trata de um tipo de aconselhamento em que o “motivador”, normalmente, utiliza a regra do “Cara, ganho eu; coroa, perdes tu”. Quer dizer, que com as mensagens de que “basta com que creias que podes” e/ou “se eu consegui, qualquer um consegue”, chega também, em um sussurro, a mensagem ominosa de que se não consegues o que desejas, se fracassas, se te encontras mal, desanimado ou derrotado, a culpa é toda (e só) tua. Um sentimento que não exercita nossa vontade: a arrebata e a devasta. De verdade, há algo mais cruel que acrescentar a autoincriminação, ainda que dissimulada, a um eventual fracasso?

NEUROGURUS” – Aqueles que afirmam haver passado uma vida inteira estudando “errado”, mas que, depois de uma aprovação qualquer (e como por iluminação espiritual de um “caminho a Damasco”) descobriram a forma (cerebral) “correta” de estudar para aprovar, parece que se encontram perdidos em uma selva escura de falsas ideias e, o que é ainda mais grave, predicam, baixo o véu de uma pretendida cientificidade, todo um evangelho de sandices, ficções e/ou falsas esperanças.

Com deliberada ignorância desconsideram ou dissimulam, ao altear as maravilhas do cérebro humano e a possibilidade de “turbiná-lo”, a realidade de que apesar do extraordinário de todos os avanços neurocientíficos ainda estamos no começo de semelhante processo, que só percorremos muito pouco do longo caminho para uma compreensão fundamental do cérebro e que novos estudos refutam continuamente as mais recentes descobertas.

Para esses indivíduos, não somente a ciência é um monólito, um mistério (antes que um método), senão que fazem caso omisso, por princípio, do fato de que há umas quantas coisas que temos que entender bem acerca da evidência empírica se queremos preservar a superioridade moral de nossos argumentos. Na verdade, tenho a impressão de que os “neurogurus”, pelo menos em sua grande maioria, não são capazes de reconhecer uma história verdadeiramente científica nem que esta baile desnuda ante eles.

Além disso, ao entregar-nos a essas esquizofrênicas promessas ou receitas (neuro) milagrosas, olvidamos com demasiada facilidade que a realidade, para o bem ou para o mal, resiste à distorção mental fácil, e abraçamos com ingênua credulidade as opiniões que não sabem discernir até donde chegam as contribuições positivas e onde começam os limites do que sabemos hoje sobre como aprende o cérebro humano. E aqui vai um conselho de ordem epistemológica: cuidado com os indivíduos que carecem de “ouvido” para as coisas da ciência, porque a mais cega subjetividade é o mais daninho e perverso “critério de verdade”: dado que o sinto assim, assim é; marca de fábrica do pensamento infantil.

 “TRIUNFADORES” – Estes constituem a quase totalidade dos gurus de moda. Compartem, com uma peculiar e afetada ânsia de autoafirmação e exageração das próprias possibilidades, a tendência a serem verdadeiros “revisionistas históricos”, isto é, da propensão tão humana de recuperar “heroicamente” recordos surpreendentemente duvidosos de nossas experiências e atitudes passadas (G. Marcus).

Meu tipo preferido é aquele indivíduo (professor, palestrante, escritor...) que descreve, com patológica, delirante e repisada insistência, sua experiência pessoal de concursos em que sobreleva, extasiado, lembranças claramente negativas de seu passado, em especial quando lhe permite apresentar-se, “a lo Rocky (o Balboa), triunfando ante a adversidade. Aquele sujeito que, para usar a expressão de Platão, pôde “ser mais forte que ele mesmo”, que com uma força de vontade quase “sobre-humana”, lutou, sofreu, “se matou estudando”, não “pegou” ninguém durante anos, perdeu amigos e namoradas, engordou e/ou emagreceu, superou limites, se sacrificou ao máximo..., mas que, apesar de todos os infortúnios padecidos, conquistou a tão sofrida, sonhada e desejada aprovação, a vitória de poder desfrutar “do dia mais feliz de sua vida”.

Em poucas palavras: um sobrevivente de um passado (recordado) deliberadamente “catastrofizado”. Afortunadamente não temos que recordar todos os disparates e truanices que ouvimos na vida e entendemos que o tempo é o demiurgo não só do olvido, senão também das fabulações.

Claro que isto não significa que devamos descartar de plano tudo o que nos diz essa indústria do “sucesso garantido”. Muitos livros, vídeos, palestras e conselhos dessa natureza nos alentam a assumir nossas responsabilidades, a ter disciplina, a estudar com regularidade e atenção, a enfrentar as dificuldades, a buscar sabedoria e felicidade, a confiar em nossas capacidades, a superar nossos momentos de desânimo e frustração, a ter fé, a acreditar que “tudo passa”... Em geral, todos são bons conselhos, ainda que não sejam em nada distintos dos que recebemos de nossos pais, avós e amigos. E o melhor de tudo: nossos pais, avós e amigos não nos cobram por seus conselhos.

Entendo que no gosto de cada pessoa entram muitos ingredientes distintos, que a mente humana sempre busca algo mais acariciador que a verdade e que a importância das coisas que experimentamos é sempre uma questão de interpretação e valoração pessoal. Há receitas, promessas e conselhos divertidos, atraentes e otimistas que servem para levantar o ânimo, motivar, alegrar o dia e dar certa segurança. Contudo, não há que fazer demasiadas concessões quando se trata de “vender-comprar” um aprendizado (neuro) milagroso improvável. Por quê?

Por quatro motivos muito simples: primeiro, porque estudar e aprender não guarda um vínculo muito estrito com esse tipo de prática messiânica; segundo, porque as diferenças de personalidade de cada indivíduo (tanto as relativas ao “caráter” como as vinculadas com o “temperamento”) podem não ter relação alguma com os problemas que esses “expertos” afirmam tratar; terceiro, porque não há que confiar em ninguém que nos indique o muito que devemos confiar em seu juízo;  quarto, porque qualquer êxito depende fundamentalmente das circunstâncias em que se apresentam os desafios e da personalidade de quem os enfrenta.

Para finalizar, outro conselho de cautela epistemológica: tenha sempre em conta o fato de que não somente é de vital importância não permitir que os dados inúteis apartem (da mente) aos úteis a empurrões, senão que, às vezes, o mais recomendável é atuar como na fábula de Ulisses e as Sereias e, da mesma forma que o herói mítico da Odisseia, atar-se a algo mais sólido e útil para não cair seduzido pelas doces palavras e sedutoras promessas das atuais “sereias do êxito”. Depois de tudo, e não parece demasiado recordar, quem se limita a seguir aos demais, nada segue, nada encontra e, pior ainda, nada busca. Um destino insofrível.


 


Imagem Ilustrativa do Post: Pinky And The Brain // Foto de: JD Hancock // Sem alterações Disponível em: http://photos.jdhancock.com/photo/2009-07-15-213403-pinky-the-brain.html

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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