CONCURSO DE CREDORES DE CRÉDITO CIVIL E TRIBUTÁRIO, PENHORA PRÉVIA E PRIMAZIA DA PREFERÊNCIA DE DIREITO MATERIAL SOBRE A PROCESSUAL. CONSOLIDAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.

23/10/2022

Coluna Advocacia Pública e outros temas Jurídicos em Debate / Coordenadores José Henrique Mouta e Weber Oliveira

O presente texto tem o objetivo de trazer a lume as questões jurídicas pacificadas pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça no julgamento dos Embargos de Divergência no Recurso Especial nº 1.603.324/SC.

O precedente é relevante pois balizará a interpretação e aplicação do artigo 186 do CTN e da legislação processual no tocante a preferência do crédito tributário no concurso de credores, em benefício dos créditos da União, Estados, Distrito Federal, Municípios e Autarquias.

A divergência jurisprudencial instaurada teve como ponto central no antagonismo de intepretação entre julgados da Primeira e Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no tocante a preferência creditória.

Enquanto a Primeira Turma[1] entendeu ser necessária a existência de pluralidade de penhoras para que fosse instaurado o concurso de preferências nos termos do artigo 711 do CPC/73 e artigo 186 do CTN, a Quarta  Turma[2], por sua vez, adotou solução diversa privilegiando a regra do art. 186 do CTN, e estabelecendo que o crédito tributário prefere qualquer outro, não sendo possível sobrepor uma preferência de direito processual a uma de direito material, a exceção dos créditos decorrentes da legislação do trabalho e, nesse contexto, tendo em vista a primazia da satisfação do crédito tributário.

O entendimento adotado pela e. Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça esvaziou a preferência do crédito tributário ao consignar que “inexistindo a penhora do bem arrematado na execução fiscal, não se pode falar em concurso de credores ou no direito de preferência previsto no art. 186 do Código Tributário Nacional”.

Ocorre que tal orientação jurisprudencial afrontou diretamente o disposto no artigo 186 do Código Tributário Nacional, uma vez que exigir penhora prévia ao credor fiscal que goza de preferência legal significa demandar condição não prevista em lei. Veja-se: 

Art. 186. O crédito tributário prefere a qualquer outro, seja qual for sua natureza ou o tempo de sua constituição, ressalvados os créditos decorrentes da legislação do trabalho ou do acidente de trabalho. 

Portanto, à luz da preferência legal expressa no art. 186 do Código Tributário Nacional, é certo que não se pode exigir necessidade de prévia penhora para que haja habilitação do crédito tributário, sob pena de afronta à própria sistemática de preferências de créditos em concurso de credores estabelecida na lei.

Não há dúvidas quanto à desnecessidade de prévia penhora para satisfação do crédito tributário, porquanto não havendo exigência legal não é possível sobrepor uma preferência de direito processual a uma de direito material, vez que “(...) exigir pluralidade de penhoras para o exercício do direito de preferência reduz, significativamente, a finalidade do instituto - que é garantir a solvência de créditos cuja relevância social sobeja aos demais (...)” (REsp 280.871/SP, DJe de 23/03/2009).”

Importante ressaltar que o concurso de credores, desde o CPC/1973, já atribuía preferência aos credores com título legal de preferência. Eis o teor do art. 711:

Art. 711. Concorrendo vários credores, o dinheiro ser-lhes-á distribuído e entregue consoante a ordem das respectivas prelações; não havendo título legal à preferência, receberá em primeiro lugar o credor que promoveu a execução, cabendo aos demais concorrentes direito sobre a importância restante, observada a anterioridade de cada penhora. 

Na mesma linha o Novo Código de Processo Civil reafirmou e reforçou essa disciplina:

“Art. 908. Havendo pluralidade de credores ou exequentes, o dinheiro lhes será distribuído e entregue consoante a ordem das respectivas preferências.

§ 1º No caso de adjudicação ou alienação, os créditos que recaem sobre o bem, inclusive os de natureza propter rem, sub-rogam-se sobre o respectivo preço, observada a ordem de preferência.

§ 2º Não havendo título legal à preferência, o dinheiro será distribuído entre os concorrentes, observando-se a anterioridade de cada penhora.

Art. 909. Os exequentes formularão as suas pretensões, que versarão unicamente sobre o direito de preferência e a anterioridade da penhora, e, apresentadas as razões, o juiz decidirá.”

 

Como visto acima os dispositivos legais são expressos em afirmar que no concurso de credores, primeiramente, recebe quem detém "título legal à preferência" e, por segundo, o dinheiro será distribuído pela anterioridade da penhora.

Em outras palavras, quando a lei processual utiliza o termo "não havendo título legal à preferência" significa que, no caso de concurso, a preferência se dá para aquele credor que a tem por lei. No presente caso, tendo o crédito tributário preferência legal (CTN, art. 186), deve-se, em primeiro lugar, ser reservado o valor para o seu adimplemento e, "não [mais] havendo título legal à preferência, o dinheiro será distribuído entre os concorrentes".

Essa a racionalidade que se extrai, textual e logicamente, dos arts. 711 do CPC/1973 e 908 do CPC/2015.

É importante destacar que as leis processuais, como não podia ser diferente em razão de ser instrumento de concretização do direito material, respeita o quanto disciplinado por esse direito material. Essa a razão pela qual utiliza o termo "não havendo título legal à preferência". Isso porque, se houver, na medida em que o processo tem o objetivo de servir ao direito material, primeiramente se deve dar cumprimento a esse direito material para, depois, nos termos do próprio processo, dar aplicação ao que o mesmo dispõe.

Destacada racionalidade é descrita pela doutrina: "Preferências ditadas pelo direito processual. O plano processual também dita preferências no pagamento de credores quirografários, ou seja, credores que não tem preferência de acordo com as regras de direito material"[3]. Vale dizer, se existirem preferências no direito material, os credores quirografários, aqueles sem preferência de direito material, utilizarão da preferência do direito processual, qual seja, a anterioridade da penhora.

Antiga é tal concepção:

“Advirta-se, porém, que, quando a lei admite a preferência da penhora antecedente em relação às demais posteriores, é feita hipótese, naturalmente, de ser cobrada a dívida sem garantia, isso é, a quirografária (ex.: letra de câmbio, nota promissória, duplicata, cheque, etc.). Se o credor hipotecário ou pignoratício promove a execução penhorando o bem sobre o qual recai o privilégio, a preferência decorre do próprio gravame, e não da penhora em si mesma. O mesmo acontece com a dívida em favor da Fazenda Pública, por sua natureza e pelo privilégio concedido expressamente em lei (Decreto-lei 960, de 1939, e CTN, arts. 186 e 187) .”[4] 

Em tal contexto, o Código de Processo Civil de 2015 prestigia o direito material – o que não podia ser diferente -, além de reafirmar que a preferência processual pela penhora apenas se dá "não havendo título legal à preferência".

A Corte Especial do e. STJ, por unanimidade, acolheu as razões apresentadas pelo Estado de Santa Cataria e adotou o entendimento da Quarta Turma, assegurando a Preferência da Fazenda Pública na habilitação do seu crédito em execução por título extrajudicial de terceiro, mesmo que não exista penhora prévia no executivo fiscal.

O acórdão é elucidativo e aborda valiosas lições sobre o tema, confira-se:

 

EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO POR TÍTULO EXTRAJUDICIAL. HABILITAÇÃO DO CRÉDITO DA FAZENDA PÚBLICA ESTADUAL. CONCURSO SINGULAR DE CREDORES. EXISTÊNCIA DE ORDEM DE PENHORA INCIDENTE SOBRE O MESMO BEM NOS AUTOS DA EXECUÇÃO FISCAL. DESNECESSIDADE.

1. A distribuição do produto da expropriação do bem do devedor solvente deve respeitar a seguinte ordem de preferência: em primeiro lugar, a satisfação dos créditos cuja preferência funda-se no direito material. Na sequência — ou quando inexistente crédito privilegiado —, a satisfação dos créditos comuns (isto é, que não apresentam privilégio legal) deverá observar a anterioridade de cada penhora, ato constritivo considerado título de preferência fundado em direito processual.

2. Isso porque não se revela possível sobrepor uma preferência processual a uma preferência de direito material, porquanto incontroverso que o processo existe para que o direito material se concretize. Precedentes.

3. O privilégio do crédito tributário — assim como dos créditos oriundos da legislação trabalhista — encontra-se prevista no artigo 186 do CTN. À luz dessa norma, revela-se evidente que, também no concurso individual contra devedor solvente, é imperiosa a satisfação do crédito tributário líquido, certo e exigível — observada a preferência dos créditos decorrentes da legislação do trabalho e de acidente de trabalho e dos créditos com direito real de garantia no limite do bem gravado — independentemente de prévia execução e de penhora sobre o bem cujo produto da alienação se pretende arrecadar.

4. Nada obstante, para garantir o levantamento de valores derivados da expropriação do bem objeto de penhora nos autos de execução EREsp 1603324 2016/0140690-5 Página 1 de 2 Superior Tribunal de Justiça ajuizada por terceiro, o titular do crédito tributário terá que demonstrar o atendimento aos requisitos da certeza, da liquidez e da exigibilidade da obrigação, o que reclamará a instauração de processo executivo próprio a fim de propiciar a quitação efetiva da dívida.

5. Por outro lado, a exigência de pluralidade de penhoras para o exercício do direito de preferência reduz, significativamente, a finalidade do instituto — que é garantir a solvência de créditos cuja relevância social sobeja aos demais —, equiparando-se o credor com privilégio legal aos outros desprovidos de tal atributo.

6. Assim, prevalece a exegese de que, independentemente da existência de ordem de penhora na execução fiscal, a Fazenda Pública poderá habilitar seu crédito privilegiado em autos de execução por título extrajudicial. Caso ainda não tenha sido ajuizado o executivo fiscal, garantir-se-á o exercício do direito da credora privilegiada mediante a reserva da totalidade (ou de parte) do produto da penhora levada a efeito em execução de terceiros.

7. Na hipótese, deve ser restabelecida a decisão estadual que autorizou a habilitação do crédito tributário (objeto de execução fiscal já aparelhada) nos autos da execução de título extrajudicial em que perfectibilizada a arrematação do bem do devedor. 8. Embargos de divergência do Estado de Santa Catarina providos a fim de negar provimento ao recurso especial da cooperativa de crédito. (EREsp n. 1.603.324/SC, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Corte Especial, julgado em 21/9/2022, DJe de 13/10/2022.) 

Nesse cenário, o Superior Tribunal de Justiça, responsável pela estabilização da jurisprudência e da uniformização da legislação federal pacificou a controvérsia existente e acertadamente fixou a seguinte tese: “a Fazenda Pública tem preferência de habilitação, com reconhecimento de crédito privilegiado em execução por título extrajudicial, independentemente da existência de penhora na execução fiscal. Se não houver execução fiscal aparelhada, garante-se o exercício do direito do credor privilegiado mediante a reserva da totalidade (ou de parte) do produto da penhora levada a efeito em execução de terceiros.”

Diante das razões acima apresentadas é oportuna e relevante a decisão da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, na medida que reafirma a primazia do crédito tributário no concurso de credores, dando-se, enfim, concretude ao direito material pelo qual o direito processual é serviente.

 

Notas e Referências

[1] (AgInt no REsp n. 1.603.324/SC, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, julgado em 29/4/2019, DJe de 10/5/2019.)

[2] (AgInt no REsp n. 1.328.688/PR, relator Ministro Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Quarta Turma, julgado em 18/9/2018, DJe de 27/9/2018)

[3] LUCON. Paulo Henrique dos Santos. Breves comentários ao novo Código de Processo Civil, coord. Teresa Arruda Alvim Wambier, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 2016.

[4] LIMA, Alcides de Mendonça. Principais inovações no processo executivo brasileiro, In,  Tutela executiva, coords. Luiz Rodrigues Wambier, Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011 (Coleção doutrinas essenciais: processo civil; v. 8), p. 101.

 

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