Há posições de crença que são inconciliáveis com outras. É incompossível crer em livre-arbítrio e em horóscopo concomitantemente; ou vale a vontade, ou a conjunção dos astros. Não obstante, há quem professe orientação religiosa católica, e, simultaneamente, guie-se pela astrologia, encomende despachos, “tire” a sorte, creia em reencarnação e lamente seu carma.
O livre-arbítrio, aliás, é ardil: não afiliados aos Dez Mandamentos vão para “inferno”. Incoerência é apanágio de crentes: culpam-se a si ao tempo mesmo em que acreditam num futuro condicionado por forças distintas da vontade, seja uma vida pregressa, um encosto, um destino ou um deus. Aceitar ambas as coisas é pensar em contradição. Elas são excludentes.
À conciliação impossível de “proposições” chama-se sincretismo. Ocorre, sociologicamente, ao se misturarem conteúdos culturais antagônicos em uma única expressão de cultura; filosoficamente, por combinações mal ajambradas de doutrinas sem relação entre si, ou incongruentes. O comportamento sincrético resulta da ignorância ou da confusão de doutrinas.
Ainda em exemplo do povo católico. A igreja católica apostólica romana não é uma academia de livre pensamento. Ela pretende – e cobra – que seus seguidores adotem, defendam e apostolem seus princípios, e não que os adaptem a cada ocasião. A essa acomodação dos dogmas de uma religião ao gosto e às oportunidades chama-se customização.
Pensemos nessa intempestiva prescrição: o papa proíbe o uso de preservativo; o seu rebanho discorda. Bem, para o papa, e então para os filiados à sua doutrina, sexo não é diversão, é procriação. Preservativo, assim, será desnecessário, porque sexo como prazer é interditado. Se o fiel não aceita isso, ele está fora da sua própria declaração de fidelidade.
Neste assunto, onde é que fica o sincretismo? Os cordeiros de deus talvez não saibam, mas não estão católicos conforme os mandamentos do Vaticano. Misturam ideologias libertárias sexuais dos anos sessenta do século passado com orientação religiosa mal dada e mal assimilada. Isso dá licença moral para transar com camisinha e não se sentir em pecado.
Devotos adaptados ao consumo do que lhes interessa; para a ortodoxia católica, pecadores. Do corpo de doutrina que serve de base para a sua jura de fé, não sabem nada. Batizada e crismada, creio que a maior parte ignora o que o papa representa, aliás, creio mesmo que não compreende a liturgia da missa que frequenta mais por hábito do que por convicção.
Esse sincretismo referido é sociológico. É costume haver-se católico, não é opção por conhecimento de causa. Agora, um caso de sincretismo filosófico: 59% dos brasileiros acreditam em deus e em Darwin (Datafolha, FSP, 02abr10). Incoerência: a explicação bíblica do mundo e a teoria da seleção natural não são compatíveis, antes são necessariamente excludentes.
A Origem das Espécies desautoriza cientificamente a Bíblia. Resta que, ou a vida veio de um sopro no barro, há mais ou menos seis mil anos, segundo o criacionismo, ou vem evoluindo há milhões de anos, segundo o darwinismo. Não cabe um “jeitinho” sincretista, para agradar. Conforme o Datafolha, a classe social e a educação influenciam a variação do índice indicado.
É dizer, quanto maiores a renda e a instrução, maior a é a parcela de darwinistas e menor a de criacionistas. Não é coincidência que seja assim. No Brasil e no mundo, em qualquer lugar em que haja mais formação universitária há mais adeptos da compreensão evolucionista da vida. Infelizmente, aqui, ao tempo em que um museu queima, edificam-se igrejas.
Assim é: o medieval que nos habita atravanca nossa iluminação. Este assunto, bem sei, é controverso, toca sensibilidades, atinge costumes, alcança valores arraigados. Lamento, mas os que estudam não têm culpa de dona Eva ter iniciado a tradição, ao recomendar o alimento sábio da proibida árvore do conhecimento. Quem dela come, dela deseja comer.
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