Comportamento social,

10/06/2015

Por Atahualpa Fernandez - 10/06/2015

Cuidado: Algunas de las teorías e investigaciones descritas en este capítulo pueden ser incómodas para su sistema de creencias

Diane Halpern

Parte 1

O direito é, desde qualquer ponto de vista, um fenômeno essencialmente humano, uma dimensão da vida cujo sentido e função surgem exclusivamente da interação ou do intercâmbio social (o que requer, sobra dizer, mais de um cérebro-mente, uma interação entre cérebros). Resulta impossível fixar uma origem do direito, nem mesmo se o entendemos da maneira mais ampla e flexível imaginável. Mas tenho sustentado que essa origem tem que ver com um desafio adaptativo que os seres humanos tiveram que afrontar: um desafio que nasceu da necessidade humana de entender e valorar o comportamento de seus congêneres, de responder a ele, de predizê-lo e de manipulá-lo, e, a partir daí, de estabelecer e regular as mais complexas relações da vida em sociedade. Outras espécies como a dos chimpanzés têm pressões seletivas muito similares e, ainda assim, não desenvolveram nossos sistemas de normas estabelecidos através de códigos explícitos.

Cabem poucas dúvidas acerca do caráter do direito como instrumento ou técnica destinada à solução pacífica de conflitos individuais e grupais e para manter vivo um limite, ainda que mínimo, de altruísmo e cooperação, de ordem e segurança, entre os membros de nossa espécie. Contudo, esse caráter distintivo não significa que o direito (assim como a moral) se veja livre de qualquer tipo de fator ou influência que provém das circunstâncias específicas em que se produziu a evolução coordenada do cérebro humano, dos grupos de hominídeos e de suas soluções culturais.

Pelo que se sabe, os humanos são os únicos seres alocados na terra capazes de produzir uma estratégica ferramenta adaptativa, cultural e institucional como o direito, que permite a geração, a articulação e o desenvolvimento dos vínculos sociais relacionais com mais rapidez, segurança e eficácia; quero dizer, com um sentido de garantia e previsibilidade no tráfego das relações sociais geradas e fixadas no contexto dos grupos e dos indivíduos, como destinatários naturais das normas de conduta que a si mesmos se põem e pelas quais iluminam e fundamentam a solidariedade de sua convivência ética na sociedade – que outra coisa não é, nem outro objetivo se propõe o direito.

Os sentimentos morais e nossa capacidade ética derivam de nossa arquitetura cognitiva inata e os códigos éticos e jurídicos, por sua vez, surgiram como produtos da interação entre a biologia e a cultura. A moral e a justiça, a despeito das influências culturais, têm uma base orgânica no cérebro humano ao que vai dirigido e que somente ele é capaz de produzir, compreender e aplicar. Somente os seres humanos individuais têm normas jurídicas e sentido de justiça, e os têm precisamente em seu cérebro, na forma de representações plasmadas em suas conexões neuronais. Somos seres éticos por natureza e o cérebro humano, base da linguagem, da moral e do direito, é o único meio através do qual os valores chegam ao mundo.

E uma vez que não podem ser considerados como totalmente independentes da constituição e do funcionamento deste órgão adquirido na história evolutiva própria de nossa espécie, a ética, a justiça e o direito não se tornam inteligíveis (e tampouco cumpríveis) se não os colocamos em relação sistemática com os componentes e predisposições inatas da constituição biológica humana. Como sustenta Antonio Damasio, as convenções sociais e a ética constituem estratégias adquiridas para a sobrevivência dos indivíduos de nossa espécie, mas tais habilidades adquiridas encontram um suporte neurofisiológico nos sistemas neuronais de base que executam os comportamentos instintivos. Que sentido teria apelar à justiça e à igualdade ou reagir a um trato injusto se sua ausência ou presença não suscitara poderosas emoções nos indivíduos? Para que exortar à gente a ser justa (boa ou correta) com os demais se não tivessem uma inclinação natural para comportar-se assim?

Também é importante entender que se trata de um processo de influências mutuas. Nossas valorações são, em boa medida, o resultado de dois domínios em permanente estado de interação: (i) um conjunto de determinações genéticas e neurobiológicas que nos estimulam a manter atitudes morais, a avaliar e preferir, e que pertence ao genoma comum de nossa espécie; e (ii) um conjunto de valores morais do grupo que é uma construção cultural, de tal forma que dita construção (e transmissão) dos valores tem lugar de maneira histórica em cada sociedade e em cada época. Isto significa que as primeiras expressões normativas produzidas pelo cérebro humano deveram cambiar o próprio entorno de desenvolvimento da inteligência social, a qual permitiu que outras normas mais complexas encontrassem uma alocação na existência essencialmente social da humanidade.

De ser assim, nos encontramos com um papel importantíssimo da convivência social: o de dirigir o componente inato humano até certos domínios particulares. Cabe imaginar numerosos guiões evolutivos nos quais um esquema assim, de interação entre a natureza individual de seres que vivem em grupos e a presença de valores culturais coletivos, proporciona vantagens adaptativas ingentes. Mas dentro dessa multitude de hipóteses há uma que estamos obrigados a considerar de imediato: a do direito como parte do entorno cultural e como resultado dos esforços coletivos de cérebros humanos ao longo de muitas gerações.

A origem e evolução de nosso comportamento “contratual” ou “normativo” como artefato da cultura não é um produto cultural que responde muito direta e racionalmente às condições totalmente recentes, senão um aspecto intrinsecamente humano e tão próprio de nossa espécie que, expandidos múltiplas vezes a uma dimensão coletiva, evolucionaram em preceitos morais e normas jurídicas. Isto permite entender que os preceitos morais e as normas jurídicas são o resultado de um prolongado processo de adaptação ao largo do tempo transcorrido desde o aparecimento de nossa espécie. Como a acumulação e a transmissão cultural são adaptativas desde sua própria origem ao permitir que os indivíduos diminuam o tempo e os custos necessários para o aprendizado (individual e social) de uma conduta em termos de eficácia evolutiva (R. Boyd & P. J. Richerson), respeito do artefato cultural denominado direito cabe dizer o mesmo.

Nesse sentido, o direito representa o desenvolvimento de um conjunto de estratégias normativas resultantes de um processo histórico-evolutivo como qualquer outro, que foi criando, através da interação da cultura com a biologia,  um complexo desenho de normas de conduta para solucionar problemas recorrentes relacionados com a crescente complexidade da vida em grupo. Tais estratégias supõem a possibilidade de oferecer soluções a problemas adaptativos práticos, delimitando, modelando e separando por uma via não conflituosa os campos em que os interesses individuais podem (ou devem) ser válida e socialmente exercidos; isto é, plasmam publicamente não somente nossa capacidade (e necessidade) de predizer e controlar o comportamento dos demais, senão também o de justificar e coordenar recíproca e mutuamente, em um determinado entorno sociocultural, nossas ações e interações sociais. A denominada segurança ou certeza jurídica, por exemplo, pode ser entendida muito bem como um tipo de solução sociocultural aos problemas adaptativos relacionados com a capacidade e necessidade de inferir e antecipar as ações dos membros do grupo e suas consequências.

Esta forma de explicar o aparecimento do fenômeno jurídico sustenta que dispor de normas de conduta supõe uma vantagem adaptativa, com o qual a resposta à pergunta sobre “por que existe o direito” ou “o que constituiu (ou constitui)” a vantagem seletiva ou adaptativa do direito implica inevitavelmente à busca dos fundamentos antropológicos da natureza e da conduta humana. Quer dizer, dado que o direito e a ética carecem das bases de conhecimento verificável acerca da condição humana (indispensável para obter predições de causa e efeito e juízos justos baseados nelas), é necessário, para compor o conteúdo e a função do direito e da justiça, tratar de descobrir como podemos fazê-lo a partir do estabelecimento de vínculos com a natureza humana que, de forma direta ou indireta, condiciona e limita nossa conduta, nossos juízos morais e os vínculos sociais relacionais que estabelecemos. O mesmo é dizer que se as teorias, princípios, valores e normas jurídicas necessitam de determinados mecanismos cerebrais para ser processadas, elaboradas, compreendidas, obedecidas, seguidas e aplicadas, é preciso explicar qual é a razão da existência de ditos mecanismos.

Pois bem, se damos por boa a afirmação anterior, chegamos a uma cadeia causal que justifica parte do processo de surgimento do direito: o direito e as normas jurídicas existem unicamente porque o ser humano, como ser neuronal e como paradigma das espécies culturais, estabelece relações sociais. Nada obstante, seguimos sem conhecer por que a vantagem adaptativa é tão grande como para chegar ao ponto de permitir-nos conhecer “quem fez o que a quem”. Podemos predizer em termos de conduta bem definidas as consequências das ações de nossos congêneres, mas, por outro lado, não somos capazes  de acudir a uma definição mais precisa de justiça ou de delimitar em que aspecto, por exemplo, a teoria do direito natural é preferível a de um positivismo mais sossegado.

Para intentar superar a obscuridade tradicional das discussões teóricas na análise do direito quiçá a perspectiva mais fecunda seja a funcional, quer dizer, aquela que não parte de uma suposta (e por vezes reducionista e/ou eclética) perspectiva axiológica, sociológica ou estrutural do mesmo, senão que intenta dilucidar para que serve o direito no âmbito da existência humana. O ponto de partida (funcional e naturalista) não obriga a recorrer ao expediente retórico (relativista ou tradicional) de condicionar o conhecimento jurídico aos limites obscuros da revelação de umas teorias que transcendem a compreensão e a própria experiência humana. Não é necessário propor a existência de verdades jurídicas independentes que nossa inteligência não é capaz de processar e entender, nem há que dar por inabordáveis as razões que justificam a existência do direito como um dos aspectos essenciais da vida em grupo.

De fato, este tipo de análise parte da hipótese, empiricamente rica, de que é possível encontrar o fenômeno jurídico nas teorias que relacionam o tamanho do cérebro com a inteligência social, isto é, de que o direito aparece e se justifica pela necessidade de competir com êxito em uma vida social complexa. Ao enfrentarem-se nossos ancestrais hominídeos com problemas adaptativos associados aos múltiplos e incessantes relacionamentos derivados de uma vida substancialmente grupal, apareceram as pressões seletivas em favor de órgãos de processamento cognitivo capazes de manejar o universo de normas e valores (morais, sociais, religiosas, jurídicas, etc.).

Trata-se, insisto, de uma hipótese[1]. Mas é, quando menos, a mesma que justifica o tipo de comportamento social e as capacidades cognitivas de outros primatas (N. Humphrey). Apareceria assim a otimização funcional e adaptativa do mecanismo de interação de certas formas elementares de sociabilidade que parecem estar arraigadas na estrutura de nossa arquitetura mental.

Quais seriam ditas formas?

Começarei por admitir que o objeto do direito (ou discurso jurídico), como práxis de um contexto vital, ético e cultural, só pode ser o homem como in-divíduo (individuum não é senão a tradução latina do grego átomos, que significa “indiviso”), como  pessoa: o homem em sentido ontológico-relacional, situado no tempo e no espaço, em sua história e em sua natureza, como o originário sujeito de liberdade e autonomia – e, portanto, de responsabilidade -, capaz de altruísmo, cooperação, intercâmbio recíproco e de egoísmo no trato de suas relações sociais - e, por isso, titular de dignidade e de culpa (A. Kaufmann). Quero dizer, como o conjunto de relações em que se encontra e para o qual está desenhado para estabelecer: o ser humano, em sua dimensão social, é ponto de partida e de chegada, o “núcleo duro” e invariável, do fenômeno jurídico.

Por outro lado, parece estar além de toda dúvida razoável o fato de que as relações jurídicas estabelecidas pelo ser humano nada mais são do que aqueles vínculos sociais relacionais que o direito identifica como tal. Como explica Emilio Betti, as relações jurídicas têm seu substrato em relações sociais existentes já antes e inclusive fora da ordem jurídica: relações que o direito não cria, mas encontra ante si, prevê e orienta na diretiva de categorias e avaliações normativas. Isto significa que sempre se legitima o direito a partir do modo em que a cada um se confere competência como pessoa, sobretudo no que diz respeito aos direitos constitutivos do indivíduo, ou seja, aos direitos que habilitam publicamente a sua respectiva existência como cidadão. E embora o direito não esgote toda a nossa relação de vida, o certo é que, uma vez definida em termos normativos, toda a relação jurídica repousa, em última instância, em uma relação social, a qual, por sua vez, tem o indivíduo como sujeito.

Nesse sentido, a função e a finalidade de todo e qualquer discurso prático normativo consiste na articulação combinada dos vínculos sociais relacionais que subjazem a um determinado tipo de relação jurídica, no sentido de e com o objetivo de, potenciando seus melhores lados e eliminando seus lados destrutivos, atuar o direito em relação da  pessoa  e  para a  pessoa, isto é, ao redor do imperativo ou compromisso ético que congregue liberdade, igualdade e fraternidade na construção conjunta de alternativas e possibilidades reais de uma vida digna de ser vivida.

Um direito concebido desta maneira é relacional, dinâmico, histórico e pessoal, posto que a forma primeira de toda e qualquer relação é a pessoa. Trata-se, sem mais, de conceber uma ontologia do pessoal pensada como ontologia relacional – e não de qualquer outra peculiar ontologia substancialista –, em razão da qual é de grande importância e significado o ponto de vista do reconhecimento e do respeito ao outro: somente pode ser pessoa quem reconhece ao outro como pessoa (A. Kaufmann). O que implica que somente um direito que garanta ao homem o que lhe corresponde em suas relações com outras pessoas pode aspirar a ver-se reconhecido na consciência dos indivíduos; quer dizer, sendo a sociabilidade parte inerente da natureza do ser humano, um direito dirigido à realização de valores legitimamente compartidos e das normas jurídicas que os conceitualizam.

Dessa forma, dado que todo esforço intelectual, seja autêntico ou falso, não somente possui uma filosofia subjacente, senão que a avaliação da filosofia subjacente a um campo do saber é uma reveladora maneira de efetuar distinções e julgar seu valor (M. Bunge), a concepção da natureza humana que ampara este tipo de modelo funcional constitui o fundamento original, material, ontológico e metodológico do fenômeno jurídico e, como tal, configura e condiciona os vínculos sociais relacionais sobre os quais o direito incide. Dito de outro modo, a ideia da natureza humana que serve de base ao argumento funcional (e naturalista) toma em consideração o ser humano como um produto mais da coevolução biológica e cultural, assumindo as limitações (biológicas) próprias da espécie (que impõem constrições cognitivas fortes para a percepção, armazenamento e transmissão discriminatória da cultura e demarcam o rol das variações culturais possíveis), as quais, de uma maneira ou outra, definem e circunscrevem as condições de possibilidade do direito e de sua realização prático-concreta.

E uma vez que sem vida social nada é possível para o indivíduo, nem sequer o indivíduo mesmo, seu existir separado, o problema passa a ser o de saber se é possível entender que nossa mente está dotada, a exemplo do que ocorre com o sentido da vista e a capacidade para a linguagem, de módulos específicos ou sistemas especializados dedicados a percepção e processamento de informações acerca de algo que tem um componente tão aparentemente difícil de manejar como, por exemplo, as relações sociais e, consequentemente, as relações jurídicas.


Notas e Referências:

[1] Creio que desenvolvo melhor (e de forma mais detalhada) esta ideia/hipótese nos seguintes livros: Fernandez, A. Direito e natureza humana. As bases ontológicas do fenômeno jurídico. Curitiba: Ed. Juruá, 2007; Fernandez, A. Argumentação jurídica e hermenêutica: (da natureza humana ao discurso jurídico). Campinas: Impactus, 2ª Ed. , 2008.


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España


Imagem Ilustrativa do Post: Talking People // Foto de: Sascha Kohlmann // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/skohlmann/15145582122/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


 

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