Por Cristiano Duro - 27/08/2016
Em 2001 fui presenteado com o livro “O Crime Compensa”, escrito por Jeffrey Archer[i]. Em quatorze contos de ficção, o autor desenvolve estórias que conduzem o leitor a acreditar que o crime compensa, algumas delas engendradas em zonas de penumbra normativa que impedem a condenação do autor dos crimes. O problema é quando estas estórias viram doutrina. O novo Código de Processo, parafraseando Gessinger, é um futuro que se impõe diante de um passado que não se aguenta. Talvez seja esta superação legislativa do passado (do CPC/1973) que faça surgir a ideia de inovação sem qualquer ligação com o passado, como se o novo fosse criado num espaço vazio, um vácuo interpretativo, verdadeiro marco zero que possibilitaria o surgimento de interpretações das mais diversas dos institutos jurídicos trazidos no CPC/2015, sem qualquer respeito à tradição até então construída. Como já alertava Koselleck[ii], este progressivo afastamento entre o passado (experiência) e o futuro (expectivativa) é uma característica da modernidade.
Esta modernidade apressada é acompanhada pelo aumento dos poderes do juízo (CPC/2015, art. 139, IV), o que atiça um hiperpublicismo arraigado no íntimo – mesmo que escondido – de parte da literatura jurídica especializada, que esquece o pressuposto da comparticipação para que houvesse esta ampliação dos poderes (na verdade, dos sujeitos processuais), na adequada concepção de policentrismo processual democrático[iii]. Às vezes, esquecem-se também da democracia.
O dispositivo mencionado seria capaz de promover verdadeira revolução silenciosa da execução por quantia certa[iv], com uma atipicidade das técnicas cujo “céu é o limite”. Ora, defende-se, com exceção da prisão civil, não haveria nada que limitasse as restrições de direito dos devedores, que podem ter até mesmo CNH apreendida – afinal, se é devedor, como poderia dirigir?![v] Surge o CPC como uma zona de penumbra da Constituição, ao criar um locus impenetrável aos direitos fundamentais, denominado pela doutrina como Procedimento de Execução e suas “tutelas” executivas.
Aliás, o próprio termo “tutela” já atraí a ideia de um Estado paternalista que ressoa no Estado Social dando a entender que o cidadão precisa ser tutelado pelo Estado e, caso não se comporte adequadamente, estará sujeito à sua violência. Mas, a questão aqui é a (i)limitação na utilização das técnicas judiciais diante do art. 139, IV, do CPC.
O dispositivo normativo deste artigo outorga ao magistrado a direção do processo, observadas as “disposições deste Código” e incumbindo ao juízo, dentre outras, “determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária”.
A norma deste artigo é desprendida de todo procedimento estruturado – apesar da clara exigência de observadas as disposições do Código, para permitir ao criativo juiz uma gama de medidas restritivas de direito (limitações de direito) que poderiam ser impostas ao devedor.
Desta forma, intimado para cumprir a sentença no prazo de quinze dias, caso entenda o juiz que a multa de 10% (CPC/2015, art. 523, §1º) não é suficiente, poderia atribuir multa diária ou, então, a suspensão da CNH, apreensão do passaporte, dentre outras medidas. Intimado o devedor para indicar bens à penhora, caso não o faça, além da multa de até 20% por ato atentatório à dignidade da justiça (CPC/2015, art. 774, V e parágrafo único), pode desaguar também no impedimento de prestar concursos públicos ou de ir ao campo de futebol ver seu time do coração. A cada dia, mais e mais hipóteses inusitadas de restrições de direito são apresentadas pela doutrina.
Devemos lembrar que, o CPC não é marco interpretativo da Constituição, mas o contrário (leia aqui). Está o sistema processual submetido aos direitos e garantias fundamentais da Constituição, com plena vigência, dentre todos os outros, do princípio da legalidade ampla, ninguém sendo obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5, II), do devido processo legal, que impede a privação da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (art. 5º, LIV), do princípio da reserva legal ou da legalidade estrita penal (art. 5º, XXXIX), que impede a aplicação de pena sem prévia cominação legal, assim como a imposição de pena sem lei especifica, não cabendo analogia na aplicação.
Rapidamente, defensores destas teorias irão se manifestar: Mas estas garantias são inerentes ao âmbito penal e não se aplicam ao Código de Processo Civil. Como diria Lenio Streck: Bingo! Poderia o CPC contrariar princípios constitucionais e, por consequência, privar a liberdade, em sentido lato, de forma mais grave que o próprio Direito Penal. O juiz passaria, a um só tempo, a atuar como legislador, decidindo qual a conduta tipificada (não apresentar bens à penhora ou não pagar em 10 dias, por exemplo), definiria a pena e a aplicaria imediatamente, tudo de uma só vez e com base em seu “sentire” de justiça.
O que estão defendendo, portanto, não é o reforço dos poderes do juiz, mas o fortalecimento do fenômeno Magnaud[vi], que sobrecarrega os magistrados com funções que não lhe são cabíveis, violenta a separação dos poderes, cria um estado de exceção denominado “processo de execução” e coloca em dificuldades o próprio Estado Democrático de Direito.
Essa interpretação do art. 139, IV, do CPC não se adequa à Constituição e cria uma fissura no ordenamento jurídico ou, mais precisamente, uma imensa zona de penumbra[vii] que impede o acesso amplo e irrestrito do devedor aos direitos e garantias fundamentais. Não podemos sequer defender que o devedor estaria sendo equiparado ao autor de delitos criminais, pois o autor destes delitos encontra um pouco mais de respeito às suas garantias, não tenham dúvidas.
E isto não se refere apenas à observância dos princípios acima citados e é possível exemplificar ao que se refere. Um sujeito decide furtar o valor de R$20.000,00 e, pela prática de furto simples (CP, art. 155) está sujeito à pena de um a quatro anos de reclusão e multa. Nas três fases de dosimetria, conclui a sentença pela aplicação da pena de um ano e quatro meses, convertendo em pena restritiva de direito. Neste caso, como exige o art. 55 do Código Penal, o prazo da restrição de direito será o mesmo da privativa de liberdade. Assim, sofre o autor do furto a restrição da suspensão de seu direito de dirigir, depois do devido processo legal, pelo período de um ano e quatro meses.
E se estes R$20.000,00 fossem objeto de empréstimo por um cidadão que deixa de pagar a dívida por ter perdido o emprego. Neste caso, a situação seria mais grave. Seria o devedor réu em um Processo de Execução. Impiedosamente, neste caso, teria o autor que arcar com custas e honorários de advogado, aumentando sua dívida. Não satisfeito, seria ele intimado para indicar bens à penhora e, não o fazendo pela completa ausência de bens, seria ele condenado por ato atentatório à dignidade da justiça e, mais uma vez, sua dívida seria elevada em até 20%. Mas não para por ai. Poderia decidir o juiz impor ao devedor uma restrição de direito de dirigir enquanto não indicasse um bem à penhora ou a apreensão de seu passaporte. Não tendo nenhum bem a ser indicado, ficaria o devedor com seu direito restringido por um, dois, três, quatro, cinco anos ou mais, até que o credor desista daquele processo ou advenha alguma causa extintiva, e isto sem qualquer direito ao devido processo legal.
Ironias à parte, lembrei imediatamente de Jeffrey Archer e conclui que, em um cenário como este, o crime compensa diante do novo CPC. E este quadro seria preocupante, em especial em uma sociedade marcada pelo consumismo e pelo sobreendividamento (leia aqui) .
Entretanto, a interpretação da norma insculpida no art. 134, IV, do CPC, como todas as demais, exige uma análise sistêmica e da tradição, o que leva a compreender que a aplicação destes poderes somente pode ser feita quando a Lei expressamente prevê a medida ou quando existe uma lacuna normativa neste sentido. E, normativamente falando, o procedimento de execução de obrigação de pagar não traz a lacuna pretendida – na verdade, o que se está fazendo é criando uma zona de penumbra, criando de forma propositada uma lacuna para que se aplique o “direito” que entenda correto.
A estrutura normativa é bastante clara ao dispor que, não cumprida a sentença de obrigação de pagar estará a parte sujeita à técnica de coerção expressamente prevista na Lei, seja ela sanção, com imposição de multa de 10%, seja ela premial, com redução em 50% dos honorários advocatícios no caso de adimplemento. Pelo mesmo caminho, a obrigação em indicar bens à penhora está lá prevista, novamente com técnica coercitiva de multa de até 20% no caso de descumprimento.
Percebe-se que, não há espaço para aplicação de técnicas coercitivas, indutivas ou mandamentais diversas nestes casos, pois o próprio Código de Processo Civil fez a limitação daquela que entende cabível e aplicável. Mais do que isto, na execução por quantia certa limitou o bem jurídico do devedor que pode ser atingido: o patrimônio, ou seja, responderá ele “com todos os seus bens presentes e futuros” (CPC/2015, art. 789).
Este é o sentido da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, como demonstram inúmeros julgados no mesmo sentido[viii]. Nenhum argumento capaz ou no sentido de superar os julgados já apresentados pelo STJ foram apresentados, acreditando-se na existência de um marco zero interpretativo, como já denunciado acima.
Evidentemente que, não se defende aqui que o art. 139, IV, do CPC é letra morta ou não teria utilidade, ao contrário, inúmeras são suas hipóteses de aplicabilidade, desde que compreendido dentro do horizonte histórico e do procedimento estabelecido[ix].
Apesar de escondido sob o véu da suposta efetivação de direitos fundamentais e de um papel democrático, o que se desenha claramente é a superação da norma por meio de um juízo axiológico promovido pelo julgador, em que “o reconhecimento do direito fundamental à tutela executiva significa que as opções do legislador não podem ser mais consideradas absolutas, nem para autorizar nem para vedar o uso de meios executivos”[x] e revela-se o princípio da efetividade como forma de correção e colmatação normativa discricionária, criando uma lacuna normativa que permitiria ao julgador escolher o mais adequado para obter a tutela-resultado (utilitarismo), mesmo que isso vá de encontro com a legislação democraticamente produzida ou signifique enclausurar o princípio da dignidade da pessoa humana ou liberdade do devedor.
É necessário, então, se estabelecer uma técnica comparticipada de execução, na qual se garante a participação do devedor sob uma concepção de jurisdição que abandona o estigma social de incapacidade para construção da decisão, necessitando da “tutela” do Estado, pois, na “supercomplexidade da vida social pós-moderna, as fórmulas árquicas de coercitividade judicial tendem, em razão da sua ingenuidade simplificadora, a falhar. Aliás, elas vão na contramão de um mundo em que se assiste à disseminação de ‘técnicas leves’ de interferência social”[xi] .
Portanto, as técnicas judiciais estampadas no art. 139, IV, do CPC/2016 encontram limites semânticos e interpretativos, não havendo espaço, sob uma concepção comparticipada de processo, para medidas que dependem do arbítrio do julgador e da criatividade da parte. No Novo CPC fica claro que o que compensa é a implementação de direitos da forma mais democrática possível.
Notas e Referências:
[i] ARCHER, Jeffrey. O Crime Compensa. Bertrand Brasil, 2001.
[ii] KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, Editora PUC-RJ, 2006.
[iii] NUNES, Dierle. Processo Jurisdicional Democrático. Curitiba: Juruá, 2008.
[vi] Paul Magnaud, que viveu de 1848 a 1926, foi magistrado presidente do Tribunal de Primeira Instância de Château-Thierry, de 1889 a 1904, na França, tendo ganhado fama por pouco se importar com a lei em seus julgamentos, agindo como se fosse a própria encarnação do Direito. Suas decisões, portanto, decorriam de sua pura subjetividade (PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 97). Aroldo Plínio Gonçalves identificou o fenômeno Magnaud como condicionante de construção unilateral do ato, certo da clarividência e princípios ideológicos do juiz, que deve ser afastado da finalidade do processo, entendida toda a extensão e profundidade do princípio do contraditório, que ressurge de sua própria e imprescindível instrumentalidade técnica, permitindo que as partes recebam a decisão jurisdicional final, gerada na liberdade de sua participação recíproca e pelo recíproco controle dos atos processuais. (GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo. 2ª Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 158).
[vii] A expressão é de Hart (HART, H. L. A. O Conceito de Direito. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2012) e utilizada por Lenio Streck, tendo por significado um espaço aberto inalcançável pela regra, que torna inevitável o poder discricionário do julgador (STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 70).
[viii] Neste sentido: AgRg no AREsp 208.474/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 18/03/2014, DJe 25/03/2014; REsp 1358705/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 11/03/2014, DJe 19/03/2014; AgRg no Ag 1401660/ES, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 11/04/2013, DJe 17/04/2013; AgRg nos EDcl no REsp 1158868/PE, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 15/12/2011, DJe 09/05/2013.
[ix] Como exemplo, podemos dizer que é possível a imposição de medidas coercitivas atípicas (adequadas) envolvendo obrigação pecuniária na hipótese de se determinar a restituição de valores levantados com base em decisão provisória posteriormente reformada.
[x] GUERRA, Marcelo Lima. Direitos Fundamentais e a Proteção do Credor na Execução Civil: de acordo com a lei 10.444/02. São Paulo: RT, 2003, p. 151.
[xi] COSTA, Eduardo José F. A. “Execução Negociada” de Políticas Públicas em Juízo. RePro - Revista de Processo. São Paulo: RT, vol. 212, p. 31, out. 2012..
Cristiano Duro é advogado, mestre em Direito Processual pela PUC/MG, especialista em Direito Processual Civil pelo IDDE/IGC da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro), Professor da Escola Superior de Advocacia da OAB/MG.
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