COMISSÕES PARLAMENTARES DE INQUÉRITO: CONTRIBUIÇÕES PARA UMA ANÁLISE JURÍDICA

04/07/2023

Num tempo em que os grandes embates políticos se expressam em comissões parlamentares de inquérito (as CPI’s) e estas, de sua vez, pautam a zona de interesse da grande mídia, é oportuno refletir sobre alguns de seus aspectos, poderes e possíveis efeitos jurídicos – não ignorando, é bom registrar, que o jurídico é, em essência, necessariamente político.

Em primeiro lugar, uma CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito – ou CPMI, se for mista, quer dizer, composta por parlamentares das duas casas legislativas – Câmara Federal e Senado[1] – sempre será uma comissão de inquérito. Isto é, um grupo encarregado de elaborar um inquérito – cuja etimologia é a mesma de enquete – querendo significar que se destina (apenas) a uma sondagem, ou investigação. Esta supostamente trará elementos tendentes a mais tarde, se for o caso, constituir subsídios para algum procedimento capaz de produzir efeitos jurídicos. Serão, como em qualquer inquérito policial, ou civil, ou ainda sob forma de sindicância administrativa, elementos informativos, valendo dizer que estes não configuram prova e portanto que, sozinhos, não poderão produzir efeitos jurídicos permanentes, o que somente será possível por meio de um processo – judicial na maioria dos casos, administrativo, ou político-administrativo, na hipótese de que o objeto da investigação configure uma infração dessa natureza.

Da autoridade que preside o inquérito – e o que a CPI elabora é um inquérito – não se exige, como condição de validade da maioria de seus atos, a imparcialidade exigível do juiz de um processo, embora ela seja mais que recomendável. A razão disso está exatamente na diferença entre inquérito e processo. Aquele fornece simples elementos informativos, ou indícios; este produz prova, valendo lembrar que apenas tem essa qualidade aquilo que for produzido em contraditório judicial (ver, por exemplo, CPP, art. 155). Ora, como só por meio de provas é que uma decisão judicial condenatória pode ser tomada, depois tornada definitiva pelo trânsito em julgado, isto significa que apenas um processo - e não um inquérito - é que pode gerar efeitos permanentes para uma dada situação ou pessoa.

Vale o mesmo para processos civis, administrativos e político-administrativos. Se a autoridade que conduziu o inquérito agir com parcialidade, o resultado é que o conteúdo daqueles elementos informativos, obtidos na investigação, perderão valor quando forem apresentados ao juiz da causa. Não porque sejam nulos, mas porque o juiz, que tem direito de formar sua convicção livremente, deixará de dar atenção àquilo que foi produzido com falta de isenção. Ao advogado da pessoa, ou entidade, prejudicada caberá, em suas alegações, chamar a atenção do juiz para a perda do poder de convencimento desses elementos informativos que chegaram ao processo mediante atuação parcial, ou mesmo arbitrária, da autoridade investigadora. Se perder a causa, recorrerá ao tribunal superior, porque o chamado duplo grau de jurisdição é um direito fundamental de todos.

Porém se há de ressalvar a hipótese de um ato restritivo decorrente da própria CPI, determinado com clara parcialidade, ou sem a devida fundamentação[2], ser tido por inválido por evidente abuso de poder (por exemplo, uma solicitação ao juiz criminal da intimação de testemunha com o fim de a expor ao ridículo).

Além da imparcialidade, é também recomendável que outros princípios que vigoram nos processos, como a ampla defesa e o contraditório, sejam seguidos nos inquéritos, ou nas investigações. Só que num inquérito policial, por exemplo, o advogado não tem os mesmos direitos que tem num processo judicial, embora possa ter acesso ao expediente e acompanhar a pessoa investigada em todos os atos. Também não se assegura totalmente o direito ao contraditório, isto é, o direito de fazer perguntas às testemunhas e de formalizar uma tese contrariando a suspeita daquele que preside a investigação. A observância de todos esses princípios dará força aos elementos informativos obtidos – e o natural é que a autoridade investigadora assim o deseje. Mas de novo, a falta disso não invalidará o resultado da investigação; contudo enfraquecerá o seu poder de convencimento quando este for apresentado no processo - e provavelmente prejudicará a sua transformação em prova.

Por outro lado, se a investigação trouxer elementos informativos obtidos mediante uma possível violação dos direitos à intimidade ou à privacidade de alguém – que nem precisa ser a pessoa investigada -, aí sim eles não poderão ser utilizados no processo. Nem se cogita de que tenham perdido poder de convencimento porque, antes disso, representam infração a direitos fundamentais – e isto é ilícito. Ora, se foram produzidos por meio de uma infração, significa que serão considerados, genericamente, prova ilícita – imprestável para a convicção do julgador (CF, art. 5º, LVI) e que deverão ser extraídos dos autos.

O que se vem aqui registrando a propósito de inquéritos – com o pensamento voltado sobretudo para os inquéritos policiais – vale, como regra geral, para as comissões parlamentares de inquérito, que, como se disse, são grupos encarregados de uma investigação. E é claro que os atos praticados durante tal investigação, como no âmbito de qualquer inquérito, sempre estarão sujeitos a questionamento em juízo, porque, segundo o artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal, nenhuma violação a direito pode ser excluída da apreciação do Poder Judiciário.

É, sim, possível que no curso de um inquérito, a cargo de um delegado, um oficial militar, uma autoridade administrativa ou uma CPI, sejam tomadas medidas equivocadas, inadequadas, tumultuárias, ou que revelem direcionamento prévio, arbitrariedade, ou má fé da autoridade, até mesmo caracterizadoras de infrações à lei. Essas medidas deverão ser objeto de sanções administrativas ou criminais – e até civis - contra os responsáveis, dependendo do tipo de ilicitude que eventualmente representem. Mas já se decidiu que “não aparentam caracterizar abuso de exposição da imagem pessoal na mídia a transmissão e a gravação de sessão em que se toma depoimento de indiciado, em CPI” (MS 24.832 MC, rel. min. Cezar Peluso, j. 18/03/2004, p. DJ de 18/08/2006).

A legislação que define como são criadas e operam as comissões parlamentares de inquérito no âmbito federal consubstancia-se, primeiramente, no artigo 58, parágrafo terceiro, da Constituição Federal e, abaixo dela, nas Leis n. 1.579/52, 10.001/00 e 10.679/03 e, por fim, nos regimentos internos do Senado (arts. 145 a 153) e da Câmara dos Deputados (arts. 35 a 37).

Uma CPI, ou CPMI, é basicamente aquilo que define o citado artigo 58, parágrafo terceiro, da Constituição: “as comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo [...]”.

A expressão “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”, que pode causar certa confusão, deve, na verdade, ser entendida como se referindo ao poder geral de fazer investigações que, realizadas no inquérito, servem para municiar a autoridade judicial com atribuição para julgar o futuro processo, se houver. Ou seja, há obrigatoriedade de atendimento a determinações típicas de um inquérito, no limite dos contornos constitucionais e legais das CPI’s e respeitado aquilo que seja da competência reservada ao juiz de direito no exercício de atividade jurisdicional. Nessa linha de raciocínio se colocam Dirley da Cunha Jr. e Marcelo Novelino:

Apesar da dicção literal do § 3º do art. 58 da Constituição, o STF estabeleceu uma série de restrições ao poder de investigação das CPI’s. Assim, em consonância com a jurisprudência da Corte, a CPÌ não pode dispor dos poderes de investigação dos juízes que estão submetidos à cláusula constitucional da reserva de jurisdição, como, por exemplo, o poder de determinar a interceptação da comunicação telefônica, de determinar busca e apreensão domiciliar, de decretar prisões, de ordenar sequestro de bens, entre outros[3] .

Prova de que tais comissões não têm poder de julgar, condenar nem absolver judicialmente ninguém é que, no final desse parágrafo está consignado que “suas conclusões, se for o caso, [serão] encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores”. Elas podem também, segundo jurisprudência, “encaminhar relatório circunstanciado não só ao Ministério Público e à AGU, mas, também, a outros órgãos públicos, podendo veicular, inclusive, documentação que possibilite a instauração de inquérito policial em face de pessoas envolvidas nos fatos apurados (art. 58, § 3º, CRFB/1988, c/c art. 6º-A da Lei 1.579/52, incluído pela Lei 13.367/16)”, conforme decidido no mandado de segurança n. 35.216 (AgR, rel. min. Luiz Fux, j. 17/11/2017, p. DJE de 27/11/2017). Em resumo, as CPI’s podem investigar, mas não podem determinar medidas próprias do juiz em sua atividade fim. Tanto que, por exemplo, no que toca a mandados de busca e apreensão, elas não têm, como visto, poder de determiná-las no domicílio de alguém, que está salvaguardado constitucionalmente como direito fundamental, o qual só pode sofrer restrição por meio de ordem judicial fundamentada[4].

As CPI’s, que são necessariamente comissões temporárias, podem (CF, art. 58, § 2º) promover audiências públicas, convocar ministros de estado, receber petições ou reclamações contra autoridades e solicitar depoimento de qualquer autoridade ou cidadão, dentre outras coisas. Veja-se desse dispositivo que ministros de estado podem ser convocados a comparecer e autoridades e cidadãos podem ser solicitados. Se bem que, de acordo com o artigo 3º, parágrafo primeiro, da Lei n. 1579/52, “em caso de não comparecimento da testemunha sem motivo justificado, a sua intimação será solicitada ao juiz criminal da localidade em que resida ou se encontre, nos termos dos arts. 218 e 219 do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal”. Em seu depoimento, no qual poderá estar acompanhada de advogado, terá obrigação de dizer a verdade, sob risco de incidir no crime de falso testemunho.

Uma vez presente perante a CPI, como consta de sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal “é jurisprudência pacífica desta Corte a possibilidade de o investigado, convocado para depor perante CPI, permanecer em silêncio, evitando-se a autoincriminação, além de ter assegurado o direito de ser assistido por advogado e de comunicar-se com este durante a sua inquirição”[5] (confira-se decisão havida no habeas corpus n. 100.200 [Rel. min. Joaquim Barbosa, j. 08/04/2010, p. DJE de 27/8/2010]). O mesmo é aplicável à testemunha se houver risco de se autoincriminar ao responder a perguntas que lhe forem feitas[6].

É evidentemente a atuação dos entes e agentes públicos o que diretamente interessa a uma CPI, mas também decidiu o STF que “atos praticados na esfera privada não são imunes à investigação parlamentar, desde que evidenciada a presença de interesse público potencial em tal proceder”[7], igualmente se tendo destacado que [a CPI] “”não está impedida de investigar fatos que se ligam, intimamente, com o fato principal" (HC 71.231, rel. min. Carlos Velloso, Tribunal Pleno, julgado em 5-5-1994) [MS 33.751, voto do red. do ac. min. Édson Fachin, j. 15/12/2015, 1ª T, DJE de 31/03/2016.]”[8].

Enfim, muitas podem ser, como visto, as abordagens jurídicas sobre um tema que, situado essencialmente dos domínios do jogo político, tem contornos legais nitidamente traçados, que devem ser observados. Longe de esgotar o assunto, este trabalho pretende apenas contribuir para uma necessária análise da questão.

 

Notas e referências 

[1] Fala-se aqui de CPI no Legislativo Federal.

[2] Ser fundamentada é outra exigência para a determinação de medida restritiva no âmbito de uma CPI. Neste sentido veja-se trecho de julgado do STF: “Deliberação da CPI/Petrobras que, embora não abrangente do domicílio dos impetrantes, ressentir-se-ia da falta da necessária fundamentação substancial. Ausência de indicação, na espécie, de causa provável e de fatos concretos que, se presentes, autorizariam a medida excepcional da busca e apreensão [...]” (MS 33.663 MC, rel. min. Celso de Mello, j. 19/06/2015, dec. monocrática, p. DJE de 18-8-2015).

[3] Em Constituição Federal para concursos. Salvador: JusPODIVM, 2011, p. 441.

[4] Confira-se, a propósito, decisão do STF: “Impossibilidade jurídica de CPI praticar atos sobre os quais incida a cláusula constitucional da reserva de jurisdição, como a busca e apreensão domiciliar (...). Possibilidade, contudo, de a CPI ordenar busca e apreensão de bens, objetos e computadores, desde que essa diligência não se efetive em local inviolável, como os espaços domiciliares, sob pena, em tal hipótese, de invalidade da diligência e de ineficácia probatória dos elementos informativos dela resultantes” (MS 33.663 MC, rel. min. Celso de Mello, j. 19/06/2015, dec. monocrática, p. DJE de 18-8-2015).

[5] Ver em <https://portal.stf.jus.br/constituicao-supremo/artigo.asp?abrirBase=CF&abrirArtigo=58#:~:text=%C2%A7%203%C2%BA%20As%20comiss%C3%B5es%20parlamentares,de%20um%>. Acesso 28/jun./2023.

[6] Cf. Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 8º, inc. 2, “g”, assegurando a todos o “direito de não ser obrigado a depor contra si mesmo, nem a declarar-se culpado”.

[7] Portal STF etc. (cit.).

[8] Ibidem.

 

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