Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto
Seguimos comentando os artigos do Código de Processo Penal, dando continuidade às nossas colunas anteriores elaboradas neste sentido.
Art. 7º. Para verificar a possibilidade de haver a infração sido praticada de determinado modo, a autoridade policial poderá proceder à reprodução simulada dos fatos, desde que esta não contrarie a moralidade ou a ordem pública.
Art. 8º. Havendo prisão em flagrante, será observado o disposto no Capítulo II do Título IX deste Livro.
Art. 9º. Todas as peças do inquérito policial serão, num só processado, reduzidas a escrito ou datilografadas e, neste caso, rubricadas pela autoridade.
O art. 7º, caput, do CPP, dispõe que a autoridade policial poderá proceder à reprodução simulada dos fatos, a qual é comumente chamada de reconstituição do crime. A primeira observação a ser feita refere-se ao fato de não se tratar de matéria que a autoridade policial deva submeter ao exame do juiz das garantias, ou seja, a realização da reprodução simulada dos fatos se encontra no rol de atribuições que podem ser executadas pela autoridade policial diretamente, dispensando-se a autorização judicial.
É importante lembrar que a autoridade policial tem essa possibilidade na fase de investigação, ou seja, até o oferecimento da denúncia ou da queixa-crime. Isso significa que, uma vez deflagrado o processo criminal, caso surja a necessidade de realização da reprodução simulada dos fatos, a mesma depende de autorização judicial. Não faria qualquer sentido o processo estar sob a presidência do magistrado e a autoridade policial, por conta própria, realizar a reprodução simulada dos fatos.
Por isso, na nossa avaliação, a autoridade policial pode realizar a reprodução simulada dos fatos sem depender de autorização judicial até o momento em que a denúncia ou a queixa-crime for oferecida em juízo. A partir deste momento, a realização da reprodução simulada dos fatos depende de autorização judicial.
Se a reprodução simulada dos fatos contrariar a moralidade ou a ordem pública, a mesma não deve ser realizada. Cabe a autoridade policial, até o oferecimento da denúncia ou da queixa-crime, e ao magistrado, após o oferecimento da denúncia ou da queixa-crime, examinar se a moralidade ou a ordem pública impede a realização da reprodução simulada dos fatos. Embora a sua realização normalmente ocorra quando se trata de crime de homicídio, a lei processual não impede a sua realização com relação a outros crimes, mas é preciso estar atento ao limite imposto pela moralidade ou pela ordem pública. No caso de crime contra a liberdade sexual, por exemplo, dependendo dos pontos a serem esclarecidos, é possível que a moralidade não recomende a sua realização. No caso de crime de homicídio que teve grande repercussão na mídia, despertando grande polêmica na sociedade, é possível que a ordem pública não recomende a sua realização.
Outro ponto de fundamental importância diz respeito ao fato de o indiciado ou o réu ser obrigado a participar da reprodução simulada dos fatos. A lei processual não esclarece este ponto, mas o texto constitucional não deixa dúvida. Isso porque o art. 5º, LXIII, da Constituição Federal, ao prever o princípio do silêncio, dispõe que o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado.
É evidente que o texto constitucional deve ser interpretado com a cautela necessária, na medida em que o seu compromisso é político, e não técnico. Por isso, o constituinte apenas referiu-se ao preso no dispositivo mencionado com o propósito de enfatizar a força de tal princípio. Mas, se até o preso pode ficar em silêncio, é evidente que este direito se estende também ao solto. Então, segundo o art. 5º, LXIII, da Constituição Federal, podem ficar em silêncio os indiciados no inquérito policial presos ou soltos, assim como podem ficar em silêncio os réus nos processos criminais presos ou soltos.
Ocorre que o direito ao silêncio vai mais longe. Além de ter o direito de ficar em silêncio, os indiciados presos ou soltos e os réus presos ou soltos têm o direito de não produzir prova contra si, sendo certo que isso abrange, evidentemente, a reprodução simulada dos fatos. Em outras palavras os indiciados e os réus podem optar pela participação na reprodução simulada dos fatos, mas não podem ser obrigados a participar da mesma, por força do art. 5º, LXIII, da Constituição Federal. Apenas para exemplificar, no conhecido caso envolvendo Suzane von Richthofen, Daniel Cravinhos e Cristian Cravinhos (que trata das mortes de Manfred Albert von Richthofen e Marísia von Richthofen), eles optaram por participar da reprodução simulada dos fatos[1]. De outro lado, no igualmente conhecido caso envolvendo Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá (que trata da morte de Isabella de Oliveira Nardoni), eles não participaram da reprodução simulada dos fatos[2].
O art. 8º, caput, do CPP, apenas faz referência à prisão em flagrante, determinando a observância dos artigos 301 a 310, do próprio CPP.
Tais dispositivos serão examinados no momento próprio, mas cabe registrar que a prisão em flagrante acarreta a lavratura do auto de prisão em flagrante, o qual não se distingue do inquérito policial. A lavratura do auto de prisão em flagrante, em verdade, significa a instauração do inquérito policial. É comum as pessoas fazerem certa confusão, tratando o auto de prisão em flagrante e o inquérito policial como procedimentos distintos.
No Rio de Janeiro, por exemplo, sob o ponto de vista burocrático, é conferida uma capa vermelha quando o inquérito policial é instaurado com base no auto de prisão em flagrante, enquanto é conferida uma capa cinza, quando o inquérito policial é instaurado através de uma portaria da autoridade policial. É claro que a cor da capa do procedimento policial não define a sua natureza, sendo certo que há inquérito policial nas duas hipóteses, seja por força do auto de prisão em flagrante, seja por força da portaria da autoridade policial.
De toda forma, examinaremos no momento oportuno os dispositivos que tratam da prisão em flagrante – artigos 301 a 310 do CPP –, até para que o seu exame seja feito de uma forma melhor contextualizada com os demais dispositivos da lei processual.
O art. 9º, caput, do CPP, trata do formalismo que deve existir com relação às peças que compõem o inquérito policial. Não se pode perder de vista o fato de o referido dispositivo fazer referência ao século passado. Isso explica a razão de o legislador determinar que as peças sejam, num só processado, reduzidas a escrito ou datilografadas.
Quando se refere a um só processado, o legislador determina que a investigação seja concentrada, o que não impede a existência de vários volumes dos autos ou mesmo a existência de vários apensos. Quanto aos volumes dos autos, não custa lembrar que, na prática, cada volume deve ter 200 folhas para facilitar o seu manuseio. Apenas para exemplificar, convém lembrar que a Consolidação Normativa da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro, ao tratar da autuação e da formação dos autos do processo, no seu art. 189, dispõe que ressalvado caso especial, a cujo respeito o Juiz decidirá, os autos não excederão duzentas folhas em cada volume, sendo razoável a aplicação deste limite também nos autos do inquérito policial. Quanto à necessidade de apensos, um bom exemplo disso pode ser encontrado no art. 8º, caput, da Lei 9296/96, que trata da interceptação telefônica, o qual dispõe que a interceptação de comunicação telefônica, de qualquer natureza, ocorrerá em autos apartados, apensados aos autos do inquérito policial ou do processo criminal, preservando-se o sigilo das diligências, gravações e transcrições respectivas. Portanto, havendo interceptação telefônica, necessariamente, deve haver autos apartados, apensados aos autos do inquérito policial.
Quando se refere à necessidade de as peças serem reduzidas a escrito ou datilografadas, a lei processual faz referência à época em que o dispositivo foi elaborado, ou seja, faz referência ao século passado. Atualmente, é muito raro encontrar peças reduzidas a escrito, ou seja, manuscritas, nos inquéritos policiais. Excepcionalmente, isso ocorre, por exemplo, quando é necessário colher o depoimento de alguma testemunha que esteja internada em um hospital ou esteja impossibilitada de comparecer à sede policial. Também as peças datilografadas são raras porque, em geral, as máquinas de escrever foram substituídas pelos computadores. Na verdade, muitos estudantes sequer tiveram contato durante as suas vidas com alguma máquina de escrever, o que tivemos oportunidade de enfatizar em artigo que escrevemos sobre o tema[3].
É claro que o propósito do art. 9º, caput, do CPP, é documentar as informações obtidas durante a investigação policial. Portanto, o seu objetivo é alcançado sempre que ocorre a referida documentação, ainda que isso seja realizado por métodos mais modernos. O uso do computador atende ao objetivo da norma. Além disso, é preciso estar atento à velocidade da tecnologia, de modo que nada impede que os depoimentos colhidos em sede policial sejam realizados através do método audiovisual, o que, aliás, permite uma segurança bem maior quanto às declarações prestadas e também permite que se perceba o ânimo da pessoa que as prestou, o que é fundamental para o exame de sua credibilidade.
Lembre-se que o art. 405, § 1º, do CPP, dispõe que, sempre que possível, o registro dos depoimentos do investigado, indiciado, ofendido e testemunhas será feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual, destinada a obter maior fidelidade das informações. Embora o mencionado dispositivo esteja localizado na parte da lei processual que trata do procedimento judicial, o legislador sinalizou a possibilidade de sua utilização na fase policial, tanto que se referiu ao investigado e ao indiciado. Além disso, tendo o legislador autorizado o uso de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real na fase judicial, conforme os artigos 185, 217 e 222 do CPP, com relação ao réu, à vítima e à testemunha, nada obsta que seu emprego também ocorra na fase policial. Neste ritmo, em pouco tempo, os depoimentos, tanto na fase judicial, como na fase policial, serão colhidos por intermédio de aplicativos a serem instalados nos aparelhos celulares das pessoas envolvidas, sem que se tenha medo de as informações serem perdidas ou não corresponderem à verdade.
Notas e Referências
[1] GUEDES, Letícia Jardim. Após a reconstituição, Suzane é acusada pelo mesmo crime de namorado. Folha de São Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u62789.shtml. Acesso em: 29 abr. 2020
[2] MORA, Marcelo. Termina a reconstituição da morte de Isabella Nardoni. G1. Disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL428153-5605,00-TERMINA+RECONSTITUICAO+DA+MORTE+DE+ISABELLA+NARDONI.html. Acesso em: 29 abr. 2020.
[3] COUTO, Ana Paula; COUTO, Marco. Daniella Perez, a máquina de escrever e o princípio da identidade física do juiz. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/daniella-perez-a-maquina-de-escrever-e-o-principio-da-identidade-fisica-do-juiz. Acesso em: 29 abr. 2020.
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