Coluna Isso Posto / Coordenador Ana Paula Couto e Marco Couto
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Continuando o exame do nosso Código de Processo Penal, iniciamos a análise de dispositivos que foram incluídos na lei processual através da Lei 13964/19, conhecida como Pacote Anticrime. Diante da extensão do art. 3º-B, que possui nada menos do que 18 incisos, resolvemos fracionar o seu exame, de modo que este texto avança até o seu inciso V, devendo ser complementado nos textos seguintes. Então, vejamos.
Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.
O primeiro ponto a ser abordado neste dispositivo é a opção feita pela lei processual de aderir ao comando constitucional no sentido da aplicação do chamado sistema acusatório. Nem poderia ser diferente. Recebendo a orientação constitucional neste sentido do sistema acusatório, não cabia ao legislador infraconstitucional seguir outro caminho. Todavia, não seria inédita qualquer iniciativa legislativa contrária à Constituição Federal, o que, inclusive, tem maculado como inconstitucionais vários dispositivos legais. Nesse contexto, não custa elogiar a lei processual quando deixa expresso que o processo penal terá estrutura acusatória.
Os sistemas processuais podem ser basicamente classificados como inquisitivo e acusatório. Antes de examinar as suas principais características, convém lembrar que a doutrina[1] nos ensina que os sistemas processuais inquisitivo e acusatório são reflexo da resposta do processo penal frente às exigências do Direito Penal e do Estado da época, cabendo destacar a observação feita no sentido de que o law and order é mais uma ilusão de reduzir a ameaça da criminalidade endurecendo o Direito Penal e o processo.
Por um lado, no sistema acusatório, destacam-se as seguintes características: (i) as funções de acusar e de julgar necessariamente são exercidas por personagens distintos, a fim de ser resguardada a imparcialidade do juiz; (ii) a iniciativa para a produção das provas deve ser exclusivamente das partes, não cabendo ao juiz a mencionada iniciativa, justamente para garantir a imparcialidade do juiz; (iii) a acusação e a defesa devem ter tratamento igualitário, seja na iniciativa probatória, seja nos demais aspectos que envolvem a relação processual; (iv) as partes têm a possibilidade de impugnar as decisões judiciais, garantindo-se o duplo grau de jurisdição.
Por outro lado, no sistema inquisitivo, destacam-se as seguintes características: (i) as funções de acusar e de julgar são exercidas pelo mesmo personagem, o que compromete a sua imparcialidade; (ii) o juiz tem iniciativa probatória, podendo atuar de ofício, o que também compromete a sua imparcialidade; (iii) não se confere à acusação e à defesa o mesmo tratamento processual; (iv) inexistem ou são reduzidas as possibilidade de impugnação das decisões judiciais.
Nessa medida, para indicar a mais importante distinção entre os sistemas processuais referidos, é preciso afirmar o seguinte: no sistema acusatório, as funções de acusar e de julgar são exercidas por personagens distintos, enquanto no sistema inquisitivo o mesmo personagem exerce as funções de acusar e de julgar. É por isso que se pode afirmar que o constituinte optou pelo sistema acusatório[2], uma vez que o art. 129, I, da Constituição Federal, entrega ao Ministério Público, em regra, e à própria vítima, excepcionalmente, a função de acusar, retirando do juiz a mencionada função.
Na verdade, considerando que o processo penal brasileiro, não obstante o dispositivo constitucional referido, mantém resquícios do sistema inquisitivo na lei processual penal, como, por exemplo, a possibilidade de o juiz ter iniciativa probatória, é possível afirmar que o Brasil adota o sistema acusatório impuro[3].
De toda forma, não se pode negar que, assim como o constituinte avançou no trato da matéria ao prever o sistema acusatório, o art. 3º-A, caput, do Código de Processo Penal, constitui mais um avanço neste sentido, muito embora sejam necessárias outras alterações legislativas capazes de prestigiar o sistema acusatório.
Diante disso, resta consignar que a parte final do dispositivo em exame apenas ressalta uma das características do sistema acusatório, qual seja, a necessária imparcialidade do juiz, vedando a sua iniciativa na fase de investigação e vedando a sua iniciativa probatória.
Art. 3º-B. O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especialmente:
I - receber a comunicação imediata da prisão, nos termos do inciso LXII do caput do art. 5º da Constituição Federal;
II - receber o auto da prisão em flagrante para o controle da legalidade da prisão, observado o disposto no art. 310 deste Código;
III - zelar pela observância dos direitos do preso, podendo determinar que este seja conduzido à sua presença, a qualquer tempo;
IV - ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal;
V - decidir sobre o requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar, observado o disposto no § 1º deste artigo;
A primeira observação a ser feita quanto ao mencionado dispositivo decorre do fato de a sua eficácia ter sido suspensa por decisões proferidas nas ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas pela Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB e pela Associação dos Juízes Federais – AJUFE (ADI 6298), pelos partidos políticos PODEMOS e CIDADANIA (ADI 6299), pelo Diretório Nacional do Partido Social Liberal – PSL (ADI 6300) e pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP (ADI 6305). Tivemos a oportunidade de abordar em detalhes as decisões proferidas pelo Min. Dias Toffoli, no dia 15 de janeiro de 2020, e pelo Min. Luiz Fux, no dia 22 de janeiro de 2020, em texto próprio[4]. Considerando que não se tem notícia de quando será julgado o mérito das referidas ações diretas de inconstitucionalidade, cabe o estudo do mencionado dispositivo.
O dispositivo em exame criou a figura do juízo das garantias, o qual é responsável pela fase investigatória, atuando até o recebimento da denúncia ou da queixa-crime. A partir deste momento, a atuação judicial caberá ao juízo da instrução e do julgamento. Basicamente, a atuação judicial é dividida nestas duas fases, provocando, necessariamente, a atuação de dois juízes distintos.
Esta divisão de tarefas é muito criticada na comunidade jurídica, despertando opiniões radicalmente opostas a seu respeito. Por um lado, alega-se que a medida acaba incentivando a criminalidade, sendo favorecidas as pessoas envolvidas em práticas delitivas, as quais terão um tratamento liberal na fase de investigação. De outro lado, alega-se que a figura do juiz das garantias permitirá que o juiz da instrução e do julgamento seja verdadeiramente imparcial, já que não ficará contaminado pelas informações obtidas na fase de investigação.
Não temos uma posição radical sobre o tema. Na nossa ótica, inexiste qualquer inconstitucionalidade no dispositivo, refletindo o tratamento dado pelo legislador ao assunto somente a sua opção política. O juiz das garantias não aumenta a criminalidade e nem garante a imparcialidade do juiz da instrução e do julgamento. Se essas questões fossem tão simples, bastaria esta mudança para resolver o problema da criminalidade no Brasil e para evitar julgamentos injustos, o que evidentemente não ocorrerá.
Entendemos que o juízo das garantias apenas organizará o procedimento, prestigiando, em certa medida, a especialização dos juízes, seja no trato das questões relacionadas à investigação, seja no trato do julgamento propriamente dito. Além disso, será o mesmo corpo de juízes já existentes nos tribunais que atuará. Não se recrutarão juízes com perfis mais liberais ou mais rigorosos para atuar como juiz das garantias ou como juiz da instrução e do julgamento.
O ponto fundamental no estudo do juízo das garantais é perceber que o juiz não presidirá a investigação e nem passará a exercer o papel atual dos delegados de polícia. Ao contrário, a investigação continuará sendo presidida pela autoridade policial. O juiz das garantias apenas atuará quando a provocação do Poder Judiciário se fizer necessária, tal como ocorre atualmente. Apenas muda-se o destinatário dos requerimentos feitos na fase policial. Em vez de o juiz responsável pelo julgamento examinar tais questões, o juiz das garantias – que necessariamente não será o responsável pelo julgamento – é que fara este exame.
Tanto é assim que o art. 3º-B, caput, do CPP, afirma que o juiz das garantias será responsável pelo controle da legalidade da investigação e pela proteção dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário. Os incisos do mencionado dispositivo elencam uma série de situações que provocarão a atuação do juízo das garantias, mas é importante, desde já, enfatizar que se trata de rol exemplificativo de situações, não tendo o legislador o propósito de esgotar o tema. A lei processual indica 18 incisos, mas, mesmo assim, certamente existem outras situações capazes de provocar a atuação do juízo das garantias, desde que relacionadas ao controle da investigação criminal e à proteção dos direitos individuais.
O inciso I refere-se à comunicação da prisão, referindo-se ao art. 5º, LXII, da Constituição Federal, segundo o qual a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada.
Trata-se da primeira comunicação feita ao Poder Judiciário relativa à prisão de alguma pessoa. É evidente que o juiz das garantias deverá ser comunicado quando ainda não houver a instauração do processo criminal propriamente dito. Se alguém for preso em flagrante delito ou por força de um mandado de prisão temporária ou de prisão preventiva, não havendo processo criminal, caberá ao juiz das garantias o recebimento desta informação. Mas, se alguém for preso por força de um mandado de prisão preventiva após o recebimento da denúncia, tal comunicação deverá ser feita ao juiz da instrução e do julgamento.
O inciso II refere-se ao auto de prisão em flagrante, fazendo expressa menção ao art. 310 do CPP, segundo o qual deve ser realizada a audiência de custódia em 24 horas após a prisão, a fim de que o juiz das garantias possa relaxar a prisão ilegal, convertê-la em preventiva ou conceder a liberdade provisória.
Embora na prática a audiência de custódia já viesse sendo realizada em todo o Brasil com base na Resolução nº 213/15 do Conselho Nacional de Justiça, a Lei 13964/19 incluiu a sua previsão no CPP, acabando com a divergência que existia quanto à possibilidade de o CNJ regulamentar o tema. Não há qualquer dúvida quanto ao fato de a audiência de custódia decorrente da prisão em flagrante ser da competência do juiz das garantias.
O inciso III dispõe que cabe ao juiz das garantias zelar pela observância dos direitos do preso. O dispositivo não se refere a qualquer preso, mas sim àquela pessoa segregada que sequer foi denunciada pelo Ministério Público. O juiz competente sempre será o responsável por esta missão, de acordo com o momento processual. Portanto, se não tiver sido recebida a denúncia, caberá ao juiz das garantias este papel. Se o processo criminal estiver em curso, cabe ao juiz da instrução e do julgamento zelar pela observância dos direitos do preso. Se já tiver ocorrido o trânsito em julgado da condenação, caberá ao juiz da execução esta missão.
O dispositivo ressalva, inclusive, a possibilidade de o juiz determinar a condução do preso à sua presença, a qualquer tempo. A medida é de boa prudência, mas de raríssima aplicação na vida prática. Não custa lembrar que o art. 2º, § 3º, da Lei 7960/89, que trata da prisão temporária, prevê a mesma possibilidade, mas, em duas décadas atuando na área criminal, nunca presenciamos a sua aplicação. Resta torcer para que haja uma mudança neste hábito para que o juiz das garantias, achando importante, efetivamente determine a vinda do preso à sua presença.
O inciso IV determina que o juiz das garantias seja informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal. Considerando que o inciso II deste dispositivo se refere ao auto de prisão em flagrante, a investigação criminal agora referida pelo legislador, em regra, diz respeito à instauração do inquérito policial.
Entendemos que a mencionada comunicação deverá ser feita através de um simples comunicado, sem a necessidade de todos os autos dos inquéritos policiais serem enviados ao juiz das garantias, o que representaria um enorme trabalho com pouca utilidade. Portanto, basta que a autoridade policial encaminhe um relatório ao juiz das garantias informando os números dos inquéritos policiais instaurados e, no máximo, uma breve síntese sobre o teor das investigações. Na nossa ótica, exigir mais do que isso seria injustificável exagero.
O inciso V refere-se ao requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar, fazendo expressa menção ao § 1º do dispositivo em exame. Ocorre que o art. 3º-B, § 1º, do CPP, foi vetado pelo Presidente da República, porque impedia o uso da videoconferência na realização da audiência de custódia.
O mencionado veto não causa problema maior. Isso porque fica claro que cabe ao juiz das garantias examinar o pedido de prisão provisória, sendo certo que, uma vez havendo a prisão de alguém antes do recebimento da denúncia, o juiz das garantias presidirá a audiência de custódia, inclusive fazendo uso de videoconferência, se for o caso.
Entendemos que a outra medida cautelar referida pelo legislador se refere às medidas cautelares que se relacionam à restrição da liberdade. Por exemplo, antes do recebimento da denúncia, cabe ao juiz das garantias proibir a saída do indiciado dos limites da comarca, desde que conveniente ou necessário para a investigação, com base no art. 319, IV, do CPP.
São esses os aspectos a serem abordados nesta coluna. Como o art. 3º-B do Código de Processo Penal apresenta um extenso rol de situações, continuaremos o seu exame nos nossos próximos textos.
Notas e Referências
[1] LOPES JR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, v. 1, p. 55.
[2] JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p.45.
[3] PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p. 171).
[4] COUTO, Ana Paula; COUTO, Marco. O pacote anticrime: as liminares dos Ministros Toffoli e Fux. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/o-pacote-anticrime-as-liminares-dos-ministros-toffoli-e-fux. Acesso em: 18 mar. 2020.
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