Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto
Seguimos comentando os artigos do Código de Processo Penal, dando continuidade às nossas colunas anteriores elaboradas neste sentido.
Art. 29. Será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal, cabendo ao Ministério Público aditar a queixa, repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos os termos do processo, fornecer elementos de prova, interpor recurso e, a todo tempo, no caso de negligência do querelante, retomar a ação como parte principal.
Art. 30. Ao ofendido ou a quem tenha qualidade para representá-lo caberá intentar a ação privada.
Art. 31. No caso de morte do ofendido ou quando declarado ausente por decisão judicial, o direito de oferecer queixa ou prosseguir na ação passará ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão.
O art. 29, caput, do CPP, prevê a chamada ação penal de iniciativa privada subsidiária da pública. Na verdade, a referida ação penal tem sede constitucional na medida em que o art. 5º, LIX, da Constituição Federal, dispõe que será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal. Tendo sido a opção do constituinte, sequer cabe questionar a norma processual agora em destaque, mas existem algumas importantes observações a serem feitas com relação à mesma.
É que o art. 129, I, da Constituição Federal, dispõe que cabe ao Ministério Público promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei. Portanto, em regra, a legitimidade ativa é conferida aos órgãos do Parquet, mas existem situações em que há o deslocamento da referida legitimidade. O caso mais evidente de deslocamento ocorre na ação penal de iniciativa exclusivamente privada, situação em que o legislador afasta expressamente a atuação do Ministério Público.
Todavia, no caso de ação penal de iniciativa privada subsidiária da pública, a legitimidade ativa, em princípio, é do Ministério Público, mas ocorre uma situação em razão da qual se desloca a legitimidade. Convém destacar que, ao examinar os autos do inquérito policial ou de qualquer outro procedimento capaz de embasar o oferecimento da denúncia, o promotor de justiça tem, basicamente, três opções: (i) oferecer a denúncia, (ii) providenciar o arquivamento dos autos e (iii) determinar o prosseguimento das diligências investigativas. As três formas de atuação estão compreendidas nas funções institucionais do Parquet.
O promotor de justiça tem, portanto, a independência funcional prevista no art. 127, § 1º, da Constituição Federal, de modo que a sua opção por qualquer dos três caminhos acima apresentados não desloca a legitimidade ativa em favor da vítima ou dos seus sucessores. O que não pode ocorrer é a inércia ministerial. Em outras palavras, é obrigação do promotor de justiça ser diligente, tanto que a vítima passa a ter legitimidade ativa no momento da sua inércia.
Embora não seja comum, no dia a dia forense, a vítima chamar para si a responsabilidade de deflagrar o processo criminal, diante da inércia do promotor de justiça, o art. 38, caput, do CPP, lhe confere, em regra, o prazo de seis meses para oferecer a queixa-crime subsidiária em juízo, a contar do dia em que se esgotar o prazo para o oferecimento da denúncia.
Não custa lembrar que o art. 46, caput, do CPP, prevê os prazos para o oferecimento da denúncia em juízo, quais sejam, cinco dias, se o indiciado estiver preso, e quinze dias, se o indiciado estiver solto. Tais prazos são aplicados em regra, mas podem sofrer algumas variações legais, sobre as quais falaremos oportunamente. A verdade é que, na prática, enquanto normalmente o prazo é observado quando o indiciado está preso, justamente para evitar o relaxamento da sua prisão, o prazo previsto para o caso de o indiciado estar solto quase nunca é observado, diante da exagerada quantidade de inquéritos policiais existentes.
De toda forma, caso a vítima não se manifeste no referido prazo, há uma espécie de decadência diferenciada. Isso porque a vítima perde o direito de oferecer a queixa-crime subsidiária em juízo, mas não ocorre a extinção da punibilidade. Ao contrário, o Ministério Público continua tendo a legitimidade ativa para oferecer a denúncia em juízo, ainda que tardiamente.
De outro lado, ainda que a vítima tenha a iniciativa de oferecer a queixa-crime subsidiária em juízo, o Parquet atuará no processo criminal, podendo aditar a queixa-crime, repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos os termos do processo, fornecer elementos de prova, interpor recurso e, havendo negligência do querelante, atuar como parte principal. Tais forma de atuação merecem um exame cuidadoso.
Considerando o exercício do direito de ação propriamente dito, o Ministério Público, concordando com o oferecimento da queixa-crime subsidiária em juízo, apenas opinará pelo seu recebimento. Caso entenda que a queixa-crime subsidiária deve ser acrescida em algum aspecto, seja porque o crime imputado ao querelado não foi devidamente circunstanciado, seja porque o querelado deve responder por algum crime que não constou inicialmente na acusação, cabe ao Parquet aditar a queixa-crime subsidiária. Nesse caso, haverá um litisconsórcio ativo, na medida em que parte da acusação será deflagrada pela vítima, enquanto a outra parte será deflagrada pelo promotor de justiça. Caso entenda que a queixa-crime está totalmente equivocada por ausência de justa causa, por exemplo, cabe ao Ministério Público opinar pela sua rejeição. Finalmente, caso entenda que a situação realmente comporta a deflagração do processo criminal, mas perceba que a queixa-crime subsidiária foi incorretamente oferecida, sendo inepta, por exemplo, cabe ao promotor de justiça oferecer a denúncia substitutiva.
Portanto, há quatro opções para o promotor de justiça: (i) simplesmente opinar pelo recebimento da queixa-crime subsidiária, (ii) opinar pelo recebimento da queixa-crime subsidiária, inclusive com relação ao aditamento que o Parquet apresenta, (iii) simplesmente opinar pela rejeição da queixa-crime subsidiária ou (iv) opinar pela rejeição da queixa-crime subsidiária, mas oferecer a denúncia substitutiva e requerer o seu recebimento.
A parte final do art. 29, caput, do CPP, refere-se ao caso de a queixa-crime subsidiária simplesmente ser recebida, sem qualquer aditamento, sendo certo que o promotor de justiça poderá acompanhar o processo, intervindo, produzindo provas e interpondo recursos. Nesse caso, se porventura o querelante abandonar o processo, ocorrerá uma espécie de perempção diferenciada. É que, havendo qualquer das situações do art. 60 do CPP, cabe ao juiz declarar que o querelante deixará de atuar como parte principal e que o promotor de justiça retomará à sua atuação como parte principal, uma vez que, na origem, o caso é de ação penal de iniciativa pública, a qual é regida pelo princípio da indisponibilidade, não podendo o Parquet, a exemplo do querelante, igualmente abandonar o processo.
Cabe lembrar que, no caso de a queixa-crime subsidiária ser recebida com o aditamento ministerial ou no caso de a denúncia substitutiva ser recebida, o Ministério Público atuará normalmente, como se não tivesse sido negligente no primeiro momento e como se tivesse exercício o seu direito de ação oferecendo a denúncia em juízo, evitando a queixa-crime subsidiária.
O art. 30, caput, do Código de Processo Penal, não apresenta maior complexidade. Trata-se da chamada ação penal de iniciativa exclusivamente privada, tendo o legislador conferido a legitimidade ativa exclusivamente para a vítima ou para o seu representante. Nesse caso, haverá o oferecimento da queixa-crime em juízo, passando a vítima ou seu representante a atuar com o status de querelante, enquanto o acusado passa a atuar com o status de querelado.
A questão decorre muito mais de uma política-criminal do que propriamente de algum fator técnico relacionado à natureza do crime. Não se justifica, por exemplo, o fato de o crime de dano, em regra, ensejar o oferecimento da queixa-crime, enquanto o crime de furto enseja o oferecimento da denúncia. Ambos os crimes são contra o patrimônio e praticados sem violência ou grave ameaça. Entendemos que não há uma explicação técnica para muitas opções feitas pelo legislador, cabendo ao operador do Direito simplesmente a tarefa de pesquisar os casos excepcionais em que foi conferida à vítima ou ao seu representante a legitimidade ativa da ação penal para descobrir se o caso permite o oferecimento da denúncia em juízo por parte do Parquet ou se o caso permite o oferecimento da queixa-crime em juízo por parte da vítima ou do seu representante. Convém registrar que, sob o aspecto formal, ambas as petições iniciais referidas – denúncia e queixa-crime – devem conter os mesmos requisitos, conforme o art. 41, caput, do CPP, os quais serão estudados oportunamente.
É importante observar que, no caso de ação penal de iniciativa exclusivamente privada, em nenhum momento, o Ministério Público poderá atuar como parte principal, ao contrário do que ocorre nos casos de ação penal de iniciativa privada subsidiária da pública. A atuação do Parquet será tão somente como custos legis, ou seja, como fiscal da lei.
De seu lado, o art. 31, caput, do CPP, trata da chamada sucessão processual, que ocorre no caso de morte da vítima ou de sua declaração de ausência positivada por decisão judicial, sendo certo que nestes casos o direito de ação penal pode ser exercido pelo cônjuge, ascendente, descendente ou irmão da vítima.
É fundamental registrar que o legislador se preocupou em estabelecer uma ordem sucessória no art. 36, caput, do CPP, dispondo que a preferência para oferecer a queixa-crime em juízo é do cônjuge e, depois, do ascendente, do descendente e do irmão da vítima, nesta ordem. O mesmo dispositivo ressalta que qualquer dos sucessores pode prosseguir com o processo criminal, caso o querelante desista ou abandone o processo. Vale o exemplo. A vítima é caluniada, mas, antes de oferecer a queixa-crime, ela sofre um acidente e morre. O seu cônjuge, mesmo diante da morte da vítima, inconformado com a calúnia que ela sofreu, oferece, na qualidade de sucessor processual, a queixa-crime em juízo. Contudo, quando o processo está em curso, o cônjuge resolve desistir do processo. Nesse caso, o pai da vítima, diante da desistência apresentada, assume o polo ativo e passa a atuar como querelante, também na qualidade de sucessor processual.
Cabe registrar que, na nossa avaliação, em se tratando de norma híbrida, já que tem reflexos penais e processuais, não se pode admitir o emprego da analogia. Dessa maneira, onde se lê cônjuge não se pode ler convivente, companheiro ou qualquer outro tipo de relação afetiva. Não desconhecemos a possibilidade de serem criadas situações realmente injustas pela falta do emprego da analogia. Contudo, não concebemos a possibilidade de uma norma com carga (ainda que parcial) penal admitir o emprego da analogia em desfavor de quem supostamente pratica o delito.
A declaração de ausência da vítima também autoriza a sucessão relativa ao direito de ação penal. Nesse caso, a declaração de ausência deve ser revelada através de uma decisão irrecorrível proferida pelo juízo cível competente. Em razão da exiguidade do prazo decadencial – que não se suspende enquanto pendente o processo que busca a declaração de ausência –, quase nunca será viável a sucessão processual neste caso. De toda forma, havendo a ausência declarada por sentença transitada em julgado, aplica-se o mesmo raciocínio desenvolvido para o caso da morte da vítima.
Por último, cabe registrar que nos casos de desistência ou de abandono, referidos na parte final do art. 36, caput, do CPP, descabe ao juízo providenciar a intimação dos demais sucessores, os quais devem estar atentos ao processo deflagrado, até porque é possível que os autos sequer se refiram aos demais sucessores da vítima que morreu ou que foi declarada ausente.
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