Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto
Seguimos comentando os artigos do Código de Processo Penal, dando continuidade às nossas colunas anteriores elaboradas neste sentido.
Art. 21. A incomunicabilidade do indiciado dependerá sempre de despacho nos autos e somente será permitida quando o interesse da sociedade ou a conveniência da investigação o exigir.
Parágrafo único. A incomunicabilidade, que não excederá de três dias, será decretada por despacho fundamentado do Juiz, a requerimento da autoridade policial, ou do órgão do Ministério Público, respeitado, em qualquer hipótese, o disposto no artigo 89, inciso III, do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil.
Art. 22. No Distrito Federal e nas comarcas em que houver mais de uma circunscrição policial, a autoridade com exercício em uma delas poderá, nos inquéritos a que esteja procedendo, ordenar diligências em circunscrição de outra, independentemente de precatórias ou requisições, e bem assim providenciará, até que compareça a autoridade competente, sobre qualquer fato que ocorra em sua presença, noutra circunscrição.
Art. 23. Ao fazer a remessa dos autos do inquérito ao juiz competente, a autoridade policial oficiará ao Instituto de Identificação e Estatística, ou repartição congênere, mencionando o juízo a que tiverem sido distribuídos, e os dados relativos à infração penal e à pessoa do indiciado.
O art. 21, caput, do CPP, trata de assunto que impõe certa cautela no seu exame, sobretudo em razão do seu descompasso com a nossa Constituição Federal. Trata-se da incomunicabilidade do indiciado. O primeiro ponto a ser abordado relaciona-se ao fato de tal incomunicabilidade não se referir a qualquer sanção disciplinar prevista para a fase de execução penal.
A Lei 7210/84 – a Lei de Execução Penal – elenca, no seu art. 53, as seguintes punições disciplinares: (i) advertência verbal, (ii) repreensão, (iii) suspensão ou restrição de direitos, (iv) isolamento na própria cela ou em local adequado e (v) inclusão no regime disciplinar diferenciado. Sem dúvida, a mais rigorosa das punições é a inclusão no chamado RDD – regime disciplinar diferenciado, sendo certo que o art. 52, I a VII, do mencionado texto legal, indica as suas características. Veja-se que o fato de o preso ficar recolhido em cela individual e ter apenas visitas quinzenais pode ser interpretado como uma certa incomunicabilidade. É conveniente ressaltar que o referido regime pode ser aplicado aos presos provisórios ou condenados, conforme dispõe o art. 52, § 1º, da Lei 7210/84, o que pode gerar certa confusão com a incomunicabilidade prevista no art. 21, caput, do CPP.
Mas, a rigor, não se pode confundir tais situações. É que o próprio art. 52, caput, da Lei 7210/84, evidencia que o regime disciplinar diferenciado só pode ser aplicado se houver a prática de fato previsto como crime doloso e quando o mesmo ocasionar subversão da ordem ou disciplina internas. Isso significa que apenas em hipóteses excepcionais o regime disciplinar diferenciado tem aplicação. É certo que o fato de o legislador se referir ao preso provisório, em tese, viabiliza a aplicação de tal regime antes mesmo do oferecimento da denúncia. Mas isso constituiria hipótese excepcionalíssima, a qual, de forma alguma, pode ser confundida com a medida prevista no art. 21, caput, do CPP, sobretudo diante dos requisitos já mencionados exigidos pela Lei 7210/84.
Portanto, a incomunicabilidade prevista no art. 21, caput, do CPP, refere-se ao isolamento imposto ao indiciado, ou seja, antes mesmo do oferecimento da denúncia, desde que o interesse da sociedade ou a conveniência da investigação o exija. Para tanto, impõe-se a existência de um despacho neste sentido.
Na nossa compreensão, a sua incompatibilidade com o texto constitucional é evidente. Isso porque, se o interesse da sociedade ou a conveniência da investigação exigir a incomunicabilidade do indiciado, será possível examinar se o caso impõe a prisão cautelar, observando-se os requisitos necessários à decretação da prisão temporária ou da prisão preventiva. Não custa lembrar que o art. 5º, LVII, da Constituição Federal, prevê o princípio do estado de inocência, afirmando que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, o que revela a excepcionalidade da prisão cautelar, tanto que o art. 5º, LXI, do texto constitucional, dispõe que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.
Mas há um aspecto ainda mais relevante a ser destacado. É que o texto constitucional se refere uma única vez ao termo incomunicabilidade. Tal referência é feita no seu título V, o qual trata da defesa do Estado e das instituições democráticas, prevendo-se o estado de defesa e o estado de sítio. Essas situações emergenciais impõem a adoção de cautelas excepcionais na busca da normalização da situação extraordinária que se apresenta.
Contudo, mesmo impondo a adoção de medidas excepcionais, o constituinte teve a cautela de vedar expressamente a incomunicabilidade do preso, conforme dispõe o art. 136, § 3º, IV, da Constituição Federal. Dessa maneira, sendo vedada a incomunicabilidade mesmo em uma situação excepcional, não há qualquer justificativa para autorizá-la em uma situação de normalidade. É possível sustentar que o texto constitucional foi específico ao vedar a incomunicabilidade durante do estado de defesa, revelando a possibilidade de sua decretação no estado de normalidade[1][2]. Mas não é essa a interpretação que fazemos. Ao contrário, acreditamos que a Constituição Federal, ao enfatizar a impossibilidade de incomunicabilidade no estado de defesa, deixa claro que a mesma nunca pode ser adotada.
Além disso, outros dispositivos constitucionais são contrariados pela mencionada incomunicabilidade. Cabe lembrar que o art. 5º, LXII, da Constituição Federal, dispõe que a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada. Por sua vez, o art. 5º, LXIII, do texto constitucional, dispõe que o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado.
Por isso, aderimos à doutrina majoritária[3][4] que sustenta a inconstitucionalidade do art. 21, caput e parágrafo único, do CPP, por força das normas contidas no art. 5º, LVII, LXI, LXII e LXIII, e no art. 136, § 3º, IV, da Constituição Federal.
O art. 22, caput, do CPP, não apresenta maior complexidade, na medida em que apenas ordena a atuação das autoridades policiais com a cautela de desburocratizá-la em certa medida. Isso porque a atribuição da autoridade policial é fixada, em regra, observando-se um critério territorial. Excepcionalmente, a atribuição é fixada considerando a natureza do delito sob investigação. De toda maneira, a atribuição é previamente fixada pelas normas de organização policial.
Evidentemente, o fato de um crime ser praticado em determinado local não significa que todas as diligências investigatórias devam ser realizadas no mesmo local. Portanto, o local do crime, em regra, fixa a atribuição da autoridade policial, mas é possível que a referida autoridade policial deva diligenciar na área relativa à atribuição de outra autoridade policial. Seria altamente improdutivo que uma autoridade policial devesse pedir autorização a outra autoridade policial sempre que aquela precisasse diligenciar na área desta. Por isso, o legislador, no art. 22, caput, do CPP, antecipa a referida autorização, inclusive dispensando expressamente quaisquer precatórias ou requisições.
A parte final do referido dispositivo demonstra respeito à autoridade policial com atribuição para funcionar na sua área de atuação, tanto que determina que uma autoridade policial, ao presenciar algum fato criminoso em determinada área, atue até que a autoridade policial com atribuição para tanto assuma a presidência das investigações.
Por fim, o art. 23, caput, do CPP, preocupa-se com os dados estatísticos. Embora o texto legal refira-se à remessa dos autos do inquérito ao juiz competente, em muitos estados da Federação, não é isso o que ocorre. No Rio de Janeiro, por exemplo, ao encerrar as investigações, no caso de crime de ação penal de iniciativa pública, a autoridade policial envia os autos ao Ministério Público, ao qual caberá adotar a providência que entender adequada. Nesse caso, a autoridade policial deve enviar a informação estatística no momento do envio dos autos ao Ministério Público. Em se tratando de investigação que trate de crime de ação penal de iniciativa privada, o art. 19, caput, do CPP, dispõe que os autos devem ser enviados ao juízo competente para aguardar a manifestação da vítima. Nesse caso, as informações estatísticas devem ser prestadas no momento do envio dos autos a juízo.
Por último, não custa lembrar que o art. 23, caput, do CPP, se refere ao Instituto de Identificação e Estatística ou à repartição congênere. O importante é que haja um órgão cuja atribuição seja receber, armazenar e estudar os dados estatísticos, até que para seja possível a adoção de políticas públicas com base nos mencionados dados. No Rio de Janeiro o antigo Gabinete de Identificação e Estatística da Polícia do Distrito Federal, criado em 1902, passou a ser chamado de Instituto de Identificação Félix Pacheco, a partir de 1941, em homenagem a José Félix Alves Pacheco, o qual introduziu a identificação dactiloscópica no Brasil.
Notas e Referências
[1] JESUS, Damásio Evangelista de. Curso de processo penal anotado. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 25.
[2] MOSSIN, Heráclito Antônio. Curso de processo penal. São Paulo: Atlas, 1998, p. 167.
[3] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Processo penal. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 210.
[4] NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Curso completo de processo penal. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 44.
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