COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL: ARTIGOS 19 E 20

07/08/2020

Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto

Ouça a leitura do artigo.

Seguimos comentando os artigos do Código de Processo Penal, dando continuidade às nossas colunas anteriores elaboradas neste sentido.

Art. 19.  Nos crimes em que não couber ação pública, os autos do inquérito serão remetidos ao juízo competente, onde aguardarão a iniciativa do ofendido ou de seu representante legal, ou serão entregues ao requerente, se o pedir, mediante traslado.

Art. 20.  A autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade.

Parágrafo único.  Nos atestados de antecedentes que lhe forem solicitados, a autoridade policial não poderá mencionar quaisquer anotações referentes a instauração de inquérito contra os requerentes.     

O art. 19, caput, do CPP, define o destino a ser dado aos autos do inquérito policial, uma vez ultimadas as investigações. Em geral, a doutrina confere maior importância às questões processuais abordando situações que se referem a crimes que ensejam a ação penal de iniciativa pública. Isso acontece porque, realmente, em regra, cabe ao Ministério Público oferecer a denúncia em juízo. Todavia, não se pode perder de vista que, em situações excepcionais, o legislador conferiu o direito de ação à vítima, a qual cabe oferecer a queixa-crime em juízo.

Convém lembrar que, no caso de crime que enseja ação penal de iniciativa privada, o inquérito policial somente pode ser instaurado com a concordância vítima. Isso porque o art. 5º, § 5º, do CPP, dispõe que, nos crimes de ação privada, a autoridade policial somente poderá proceder a inquérito a requerimento de quem tenha qualidade para intentá-la. Tal dispositivo faz sentido porque, se o exercício do direito de ação cabe à vítima e se o inquérito policial busca reunir a justa causa justamente para embasar o direito de ação, cabe à vítima concordar com a instauração do inquérito policial, a fim de que, se for o caso, possa exercer o seu direito de ação.

O destino dos autos do inquérito policial, evidentemente, deve ser definido por quem tem o direito de ação. Então, no caso de crime que enseja o oferecimento de denúncia, cabe ao Ministério Público decidir se existe, ou não, justa causa para embasar o exercício do direito de ação. Na mesma medida, no caso de crime que enseja o oferecimento de queixa-crime, cabe à vítima decidir pelo exercício do direito de ação ou não.

Portanto, o comando do art. 19, caput, do CPP, adota a lógica coerente com o sistema previsto na lei processual, na medida em que os autos são encaminhados a juízo para aguardar a iniciativa da vítima, até o decurso do prazo decadencial. É bem verdade que, em muitos casos, ocorre atraso no envio dos autos a juízo, de forma que o prazo decadencial já decorreu quando os mesmos chegam em juízo, restando ao juiz apenas determinar o seu arquivamento. Mas, se a investigação for célere e os autos forem enviados a juízo dentro do prazo decadencial, nada resta senão aguardar a iniciativa da vítima ou o término do prazo decadencial.

Não custa lembrar que a parte final do dispositivo em exame também autoriza a entrega dos autos à vítima, mediante traslado. Nesse caso, o juiz deve manter os autos originais em cartório e entregar as suas cópias à vítima, a fim de que, se for o caso, ela ofereça a queixa-crime. Caso realmente haja o seu oferecimento, a queixa-crime deve ser encartada nos autos originais, apensando-se aos mesmos os autos do traslado. É claro que essa lógica cartorária apenas deve ser aplicada nos juízos que ainda trabalham com autos físicos. Isso porque, se os autos forem virtuais, caso a vítima apresente requerimento neste sentido, deve ser disponibilizado à vítima o acesso aos mesmos, não sendo necessário falar em traslado.

O art. 20, caput, do CPP, trata de assunto importantíssimo.

O primeiro ponto a ser destacado é no sentido de que, por sua própria natureza, as informações do inquérito policial não devem ter ampla divulgação, sobretudo para atingir pessoas que, a rigor, não tem qualquer interesse relevante no conteúdo da investigação. Em outras palavras, o inquérito policial é sigiloso para as pessoas em geral, o que não inclui, a princípio, as pessoas que se relacionam diretamente com os fatos sob investigação. O direito à informação em sentido amplo não se adequa à própria natureza do inquérito policial. A curiosidade das pessoas, normalmente estimulada pela imprensa, não é suficiente para embasar a divulgação das informações obtidas pela autoridade policial. O legislador, ao inserir o art. 3º-F, caput, no Código de Processo Penal, através da Lei 13964/19 – conhecida como Pacote Anticrime –, de forma correta, demonstrou a sua preocupação, ao afirmar que o juiz das garantias deverá assegurar o cumprimento das regras para o tratamento dos presos, impedindo o acordo ou ajuste de qualquer autoridade com órgãos da imprensa para explorar a imagem da pessoa submetida à prisão, sob pena de responsabilidade civil, administrativa e penal.

Embora o referido texto legal mencione expressamente a situação do preso, é claro que a mesma preocupação deve existir no caso de o investigado estar solto. Isso porque o tratamento a ser dado pela imprensa aos fatos sob investigação deve ser devidamente regulamentado, tanto que o art. 3º-F, parágrafo único, do CPP, dispõe que, por meio de regulamento, as autoridades deverão disciplinar, em 180 (cento e oitenta) dias, o modo pelo qual as informações sobre a realização da prisão e a identidade do preso serão, de modo padronizado e respeitada a programação normativa aludida no caput deste artigo, transmitidas à imprensa, assegurados a efetividade da persecução penal, o direito à informação e a dignidade da pessoa submetida à prisão.    

Assim sendo, considerando que o sigilo é uma das características do inquérito policial que se relaciona às pessoas em geral, resta saber o tratamento a ser dado para as pessoas que diretamente se relacionam com os fatos sob investigação.

É evidente que os autos do inquérito policial devem estar disponíveis ao juiz com competência para examinar as questões que porventura surjam durante a investigação. Em se tratando de investigação relacionada a crime de ação penal de iniciativa pública, não se pode falar em sigilo com relação ao Ministério Público, já que caberá ao órgão ministerial utilizar o material obtido pela autoridade policial para embasar o oferecimento da denúncia. Em se tratando de investigação relacionada a crime de ação penal de iniciativa privada, o sigilo não deve abarcar a vítima, a quem caberá o exercer o direito de ação, se for o caso, e nem deve abarcar o Ministério Público, diante de sua atuação como fiscal da lei nas ações de iniciativa privada.

A questão mais sensível relaciona-se à possibilidade de os advogados em geral terem acesso à investigação. O art. 7º, XIV, da Lei 8906/94, com a redação que lhe foi dada pela Lei 13245/16, prevê o seguinte direito dos advogados: examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital. Portanto, em regra, os advogados têm acesso livre aos autos do inquérito policial, ainda que não tenham sido constituídos por quem quer que seja.

Porém, não se pode negar que existem situações nas quais deve ser limitado o acesso aos advogados, ao menos em um primeiro momento, sob pena de esvaziamento da investigação. É por isso que o art. 20, caput, do CPP, dispõe que a autoridade policial deve regular o sigilo necessário do inquérito policial, tendo como parâmetros a sua necessidade para a elucidação dos fatos e o interesse da sociedade. Nem sempre é fácil tal avaliação, mas é fundamental que a autoridade policial exponha os seus fundamentos de maneira motivada, até para que se possa questionar judicialmente a sua decisão.

O art. 7º, § 11, da Lei 8906/94, com a redação que lhe foi dada pela Lei 13245/16, percebeu a existência de situações excepcionais, afirmando que a autoridade competente poderá delimitar o acesso do advogado aos elementos de prova relacionados a diligências em andamento e ainda não documentados nos autos, quando houver risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências.

Assim sendo, apenas em hipóteses excepcionais, através de decisão devidamente fundamentada pela autoridade policial, é possível impedir o advogado de ter acesso aos autos do inquérito policial. A súmula vinculante nº 14 é no mesmo sentido: é direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.

Portanto, em síntese, a situação é a seguinte: (i) os autos do inquérito policial são sigilosos para as pessoas em geral; (ii) se o crime sob investigação for de ação penal de iniciativa pública, o juiz e o Ministério Público têm acesso livre; (iii) se o crime sob investigação for de ação penal de iniciativa privada, o juiz, o Ministério Público e a vítima têm acesso livre; (iv) em regra, os advogados têm acesso livre às informações obtidas durante o inquérito policial; (v) excepcionalmente, pode ser negado aos advogados o acesso às informações obtidas durante o inquérito policial, em um primeiro momento, diante do risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências, sendo certo que deve ser dado o acesso aos autos do inquérito policial aos advogados tão logo afastado o mencionado risco de comprometimento.

Por fim, restar registrar que o art. 20, parágrafo único, do CPP, com a redação que lhe foi dada pela Lei 12681/12, disciplina a forma como a autoridade policial deve fornecer os atestados de antecedentes, ressaltando que não devem ser apontados os inquéritos policiais porventura existentes contra os requerentes. Trata-se de medida que objetiva impedir que o investigado seja prejudicado pela mera instauração do inquérito policial, já que sequer é possível prever se as investigações embasarão o exercício do direito de ação ou se, em um futuro mais distante, tais investigações ensejarão eventual sentença condenatória capaz de retirar a presunção de inocência prevista no art. 5º, LVII, da Constituição Federal.

 

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