Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto
Seguimos comentando os artigos do Código de Processo Penal, dando continuidade às nossas colunas anteriores elaboradas neste sentido.
Art. 17. A autoridade policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito.
Art. 18. Depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia.
O art. 17, caput, do CPP, não deixa dúvida quanto à característica da indisponibilidade do inquérito policial. Desde já, é conveniente distinguir tal característica do princípio com o mesmo nome que se refere à ação penal de iniciativa pública. Em outras palavras, dizer que o inquérito policial é indisponível à autoridade policial não é o mesmo que dizer que a ação penal de iniciativa pública é indisponível para o Ministério Público.
Quando nos referimos ao inquérito policial, a ideia é no sentido de que a autoridade policial não pode arquivar os autos do inquérito policial. De outro lado, quando nos referimos à ação penal de iniciativa pública, a ideia é no sentido de que o Ministério Público não poderá desistir da ação penal, conforme expressamente prevê o art. 42, caput, do CPP.
Neste momento, cabe apenas examinar a situação do inquérito policial. O art. 5º do CPP prevê as hipóteses de instauração do inquérito policial, quais sejam, de ofício pela autoridade policial, mediante requisição da autoridade judiciária, mediante requisição do Ministério Público, por requerimento da vítima ou por iniciativa de qualquer do povo. Ocorre, uma vez instaurado o inquérito policial, cabe à autoridade policial presidir as investigações para esclarecer as circunstâncias do crime supostamente praticado. Ao final do prazo legal previsto para as investigações, cabe à autoridade policial concluir as investigações, seja para indiciar o investigado, seja para sugerir o arquivamento dos autos. Além disso, uma terceira possibilidade consiste na manifestação da autoridade policial sugerindo a concessão de maior prazo para as investigações, diante da impossibilidade de sua conclusão no prazo legal.
Em qualquer dos três panoramas aludidos, não pode a autoridade policial determinar o arquivamento dos autos do inquérito policial por expressa vedação prevista no art. 17, caput, do CPP. Cabe ao Ministério Público, examinando as informações colhidas em sede policial, definir se as mesmas devem ser usadas para embasar o oferecimento da denúncia em juízo ou não. Sendo inviável o oferecimento da denúncia, o Ministério Público poderá concordar com a extensão do prazo investigatório, caso entenda que existe a possibilidade de obtenção de novas informações. Mas, se verificar que as informações são insuficientes e que não há perspectiva no sentido de que novas informações possam ser obtidas, o caso será de arquivamento.
O art. 28 do Código de Processo Penal trata do arquivamento dos autos do inquérito policial, sendo certo que a Lei 13964/19 – conhecida como Pacote Anticrime – alterou significativamente a sistemática do arquivamento, mas a sua nova redação teve a sua eficácia suspensa, por decisão do Min. Luiz Fux, no dia 22 de janeiro de 2020, o qual determinou a aplicação da redação original do referido dispositivo até que a questão seja levada ao plenário do Supremo Tribunal Federal. Estudamos a mencionada decisão em texto próprio.[1]
De um lado ou de outro, ou seja, aplicando a antiga ou a nova redação do art. 28 do CPP, de uma coisa não se pode duvidar: não cabe à autoridade policial providenciar o arquivamento dos autos do inquérito policial, conforme dispõe o art. 17 do CPP.
Essa é a lógica a ser aplicada quando o inquérito policial é instaurado para investigar um crime de ação penal de iniciativa pública. No caso de o crime a ser investigado ser de ação penal de iniciativa privada, é evidente que não caberá ao Ministério Público provocar o arquivamento dos autos, já que não lhe cabe avaliar se o caso é de oferecimento de denúncia ou não. Mas, como o art. 17, caput, do CPP, refere-se a todos os inquéritos policiais, a autoridade policial também não poderá arquivar os autos no caso de crime de ação penal de iniciativa privada. Por isso, o art. 19, caput, do CPP, dispõe que a autoridade policial deverá enviar os autos ao juízo competente, a fim de que aguardem a iniciativa da vítima. Caso a vítima fique inerte, decorrendo o prazo decadencial para o oferecimento da queixa-crime em juízo, os autos serão arquivados. Caso a vítima utilize as informações constante no inquérito policial para embasar o exercício do direito de ação penal, caberá ao juiz competente o juízo de admissibilidade da acusação.
O art. 18, caput, do CPP, merece ser examinado com cautela.
Sabemos que, ao final da investigação policial, é possível que a autoridade não tenha conseguido reunir a chamada justa causa, ou seja, o mínimo suporte probatório sem o qual não é possível exercer o direito de ação penal. Nesse caso, não se vislumbrando nenhuma diligência útil que possa ser realizada, a única saída é arquivamento dos autos. Ocorre que, se o motivo do arquivamento for a falta de justa causa, nada impede que surja alguma prova relevante após os autos serem arquivados. Basta imaginar que a investigação se refira ao crime de roubo e que o Ministério Público tenha providenciado o arquivamento dos autos porque a vítima não foi localizada para depor durante a fase investigatória. Se a vítima vier a ser localizada para depor após o arquivamento, não faria sentido impedir o seu depoimento. Nesse caso, será necessário o desarquivamento dos autos do inquérito policial.
Não custa lembrar que o arquivamento embasado na falta de justa causa não significa a absolvição do indiciado. Todavia, para garantir o mínimo de estabilidade na situação jurídica do indiciado, é fundamental que exista algum filtro no mecanismo de desarquivamento dos autos do inquérito policial.
O mencionado filtro deve levar em conta as ideias externadas pelo art. 18, caput, do CPP, e pela súmula 524 do Supremo Tribunal Federal. Na nossa ótica, são duas situações distintas que se complementam. Isso porque o referido dispositivo legal ensina que, depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia, enquanto a mencionada súmula dispõe que, arquivado o inquérito policial, por despacho do juiz, a requerimento do promotor de justiça, não pode a ação penal ser iniciada, sem novas provas.
Segundo o dispositivo da lei processual, diante da notícia da existência de nova prova, nada impede que a autoridade policial proceda a novas pesquisas para confirmar ou não a sua existência. Isso não deve provocar o desarquivamento dos autos do inquérito policial, devendo ser providenciado através de expediente policial próprio. Não faria sentido impedir que a autoridade policial buscasse esclarecer a notícia da existência de nova prova. Se houvesse tal impedimento, o arquivamento por falta de justa causa equivaleria à sentença absolutória com trânsito em julgado.
Após a autoridade policial obter a prova nova, a mesma deve ser submetida ao órgão do Ministério Público que providenciou o arquivamento dos autos do inquérito policial. A partir deste momento é que deve ser adotado o ensinamento da súmula 524 do Supremo Tribunal Federal, segundo o qual o desarquivamento dos autos, a inclusão da novidade probatória na investigação e o oferecimento da denúncia só podem ocorrer diante de novas provas.
Entendemos que as mencionadas novas provas consistem em elementos que representem uma novidade material, ou seja, uma efetiva informação nova, relevante e capaz de caracterizar a justa causa. Pouco importa se a novidade já existia ao tempo do arquivamento e não foi localizada àquela altura ou se a novidade efetivamente apenas surgiu após o arquivamento. As situações são equivalentes.
Por outro lado, para justificar o desarquivamento, não bastam as provas novas apenas sob o aspecto cronológico, sem apresentar qualquer efetiva novidade. Em outras palavras, não bastam as provas apenas formalmente novas, sendo imprescindível que as provas sejam materialmente novas. Isso porque a situação do indiciado ficaria absolutamente vulnerável, caso fossem suficientes as provas formalmente novas. Nesse caso, ao mudar de ideia quanto ao arquivamento, bastaria que o Ministério Público ouvisse novamente as mesmas pessoas que já haviam prestado os seus depoimentos e sustentasse a existência de novas provas, ainda que os últimos depoimentos se limitassem a repetir os depoimentos iniciais.
Quanto à atribuição para promover o desarquivamento dos autos do inquérito policial, no Rio de Janeiro, existem dois dispositivos que tratam do tema. Nesse sentido, a Lei Complementar nº 106/03 – Lei Orgânica do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro –, no seu art. 39, XV, quando trata das atribuições do Procurador-Geral de Justiça, dispõe que lhe cabe requisitar autos arquivados, relacionados à prática de infração penal, ou de ato infracional atribuído a adolescente, promover seu desarquivamento e, se for o caso, oferecer denúncia ou representação, ou designar outro órgão do Ministério Público para fazê-lo. Além disso, o art. 40, caput, do referido texto legal, dispõe que compete ao Colégio de Procuradores de Justiça, através de seu Órgão Especial, rever, na forma que dispuser o seu Regimento Interno, mediante requerimento de legítimo interessado, decisão de arquivamento de Inquérito Policial ou peças de informação determinada pelo Procurador-Geral de Justiça, nos casos de sua atribuição originária.
É possível questionar tais dispositivos sustentando que o ideal seria conferir a atribuição para o desarquivamento dos autos ao próprio órgão ministerial que se manifestou, em um primeiro momento, pelo seu arquivamento. Seria possível alegar que o princípio do promotor natural, previsto no art. 5º, LIII, da Constituição Federal, impõe a lógica segundo a qual o mesmo órgão do Ministério Público deve ter a atribuição para arquivar e para desarquivar os autos do inquérito policial. Todavia, na nossa ótica, inexiste qualquer inconstitucionalidade em tais dispositivos porque o princípio do promotor natural resguarda a atribuição do órgão ministerial prevista em lei. Nada impede que o legislador confira, através de lei, a órgãos distintos a atribuição para arquivar e para desarquivar os autos do inquérito policial. Não se pode qualificar como inconstitucional todas as opções do legislador que não coincidam com as nossas vontades. Por isso, embora reconheçamos que o ideal seria centralizar as atribuições de arquivar e de desarquivar no mesmo órgão ministerial, é preciso respeitar a opção do legislador em sentido diverso. Dessa maneira, gostemos ou não, ao menos na nossa ótica, inexiste inconstitucionalidade nos dispositivos mencionados.
É importante lembrar que o exame da existência de prova materialmente nova será feito pelo Ministério Público, para o fim de desarquivar ou não os autos do inquérito. Mas, a rigor, o exame final caberá ao juiz, no momento em que fizer o juízo de admissibilidade da acusação, recebendo ou rejeitando a denúncia. Caberá ao juiz examinar as provas que embasaram a denúncia para decidir se, após o arquivamento inicial, surgiram novas provas capazes de configurar a justa causa. Não pode o juiz receber a denúncia sustentando que a justa causa foi revelada pelas provas obtidas antes do desarquivamento porque, se isso for possível, a situação jurídica do indiciado jamais teria qualquer estabilidade, mesmo após o arquivamento dos autos.
Nesse contexto, não se pode esquecer os inquéritos policiais instaurados nos casos de crimes de ação penal de iniciativa privada. É claro que isso dificilmente ocorrerá em razão do prazo decadencial para o oferecimento da queixa-crime. Mas cabe exemplificar tal possibilidade. Basta imaginar o caso em que a vítima oferece a queixa-crime com base em elementos obtidos no inquérito policial, mas o juiz a rejeita afirmando que inexiste justa causa, determinando o arquivamento dos autos. Caso surjam provas materialmente novas, a vítima poderá providenciar o desarquivamento dos autos e, juntando as provas novas, poderá oferecer nova queixa-crime, evidentemente dentro do prazo decadencial. Nesse caso, caberá ao juiz fazer novo exame de admissibilidade da acusação para verificar se as provas novas configuram ou não a justa causa capaz de ensejar o recebimento da queixa-crime.
Notas e Referências
[1] COUTO, Ana Paula; COUTO, Marco. O pacote anticrime: as liminares dos Ministros Toffoli e Fux. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/o-pacote-anticrime-as-liminares-dos-ministros-toffoli-e-fux. Acesso em: 02 jul. 2020.
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