Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto
Seguimos comentando os artigos do Código de Processo Penal, dando continuidade às nossas colunas anteriores elaboradas neste sentido.
Art. 74. A competência pela natureza da infração será regulada pelas leis de organização judiciária, salvo a competência privativa do Tribunal do Júri.
§1º Compete ao Tribunal do Júri o julgamento dos crimes previstos nos arts. 121, §§ 1º e 2º, 122, parágrafo único, 123, 124, 125, 126 e 127 do Código Penal, consumados ou tentados.
§2º Se, iniciado o processo perante um juiz, houver desclassificação para infração da competência de outro, a este será remetido o processo, salvo se mais graduada for a jurisdição do primeiro, que, em tal caso, terá sua competência prorrogada.
§3º Se o juiz da pronúncia desclassificar a infração para outra atribuída à competência de juiz singular, observar-se-á o disposto no art. 410; mas, se a desclassificação for feita pelo próprio Tribunal do Júri, a seu presidente caberá proferir a sentença (art. 492, § 2º).
O art. 74, caput, do CPP, trata da competência fixada em razão da natureza da infração, registrando que cabe à lei de organização judiciária defini-la. A única ressalva feita pela lei processual refere-se ao tribunal do júri. Nesse ponto, não custa lembrar que o art. 5º, XXXVIII, da Constituição Federal, fixa a competência do tribunal do júri para os crimes dolosos contra a vida.
É claro que, mesmo não havendo referência na lei processual nesse sentido, qualquer competência definida em razão da natureza da infração pelo texto constitucional há de ser respeitada pelo ordenamento jurídico, não podendo a lei de organização judiciária, por exemplo, contrariar o comando constitucional.
Além disso, tendo a Constituição Federal fixado a competência do tribunal do júri para os crimes dolosos contra a vida, não deve haver qualquer distinção entre os crimes consumados e os crimes tentados, não sendo abarcados os crimes culposos contra a vida.
A competência do tribunal do júri não pode ser retirada da Constituição Federal e não pode ser reduzida por emenda constitucional, já que constitui cláusula pétrea prevista no art. 60, § 4º, IV, da Constituição Federal, nada impedindo, por outro lado, que eventual aumento da competência seja efetivado por emenda constitucional. Da mesma forma, o legislador ordinário apenas pode alterar a competência do tribunal do júri para aumentá-la.
O art. 74, § 1º, do CPP, está em consonância com o texto constitucional, já que menciona o crime de homicídio doloso, o crime de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio, o crime de infanticídio e o crime de aborto. É certo houve mudanças legislativas nos dispositivos mencionados pelo legislador desde o advento do CPP, ora alterando as redações de alguns dispositivos, ora incluindo novos comandos. Todavia, sendo doloso contra a vida, o crime tem a sua competência fixada no tribunal do júri. Não havendo disposição em outro sentido no texto constitucional, incluem-se na competência do tribunal do júri os crimes consumados e tentados, tendo o legislador registrado tal detalhe na parte final do art. 74, § 1º, do CPP.
O art. 74, § 2º, do CPP, presume a existência de competências pela natureza da infração com diferentes graduações, tanto que ressalva a possibilidade de a competência mais graduada ser mantida no caso de desclassificação, sendo prorrogada. Todavia, não havendo tal graduação nos dias atuais, sempre que a competência for fixada pela natureza da infração e houver a sua desclassificação, o caso impõe o declínio de competência.
Nesse sentido, basta imaginar que, em determinado local, existe vara especializada no julgamento do crime de roubo e vara especializada no julgamento do crime de furto. Se, no momento da sentença, o juiz verificar que não houve violência ou grave ameaça e que, portanto, ocorreu a prática do crime de furto, e não a prática do crime de roubo, o caso imporá o declínio da competência de uma vara para a outra, nada justificando que se prestigie a vara especializada em crime de roubo, desmerecendo a competência da vara especializada em crime de furto, já que inexiste hierarquia entre as mencionadas competências.
Isso apenas será possível se a própria lei de organização judiciária contiver previsão no sentido da prorrogação da competência da vara perante a qual a denúncia foi inicialmente oferecida. Não havendo tal previsão, o declínio é obrigatório.
O art. 74, § 3º, do CPP, trata de duas situações relacionadas especificamente ao tribunal do júri, mencionando expressamente o art. 410, caput, do CPP, e o art. 492, § 2º, do CPP.
A antiga redação do art. 410, caput, do CPP, dispunha o seguinte: Quando o juiz se convencer, em discordância com a denúncia ou queixa, da existência de crime diverso dos referidos no art. 74, § 1º, e não for o competente para julgá-lo, remeterá o processo ao juiz que o seja. Em qualquer caso, será reaberto ao acusado prazo para defesa e indicação de testemunhas, prosseguindo-se, depois de encerrada a instrução, de acordo com os arts. 499 e segs. Não se admitirá, entretanto, que sejam arroladas testemunhas já anteriormente ouvidas.
Ocorre que a Lei 11689/08 alterou radicalmente a sua redação passando a tratar de outro assunto. O tema tratado na antiga redação passou a constar no atual art. 419, caput, do CPP, o qual dispõe o seguinte: Quando o juiz se convencer, em discordância com a acusação, da existência de crime diverso dos referidos no § 1º do art. 74 deste Código e não for competente para o julgamento, remeterá os autos ao juiz que o seja.
Portanto, a rigor, embora alterado o dispositivo e modificada a sua redação, a norma continua a mesma. Assim, se o juiz que atua no tribunal do júri, ao final da primeira fase do procedimento, entender que o caso é de desclassificação da imputação para outra que não se relacione a crime doloso contra a vida, o caso será de declínio de competência. Se o juiz do tribunal do júri, ao final da primeira fase do procedimento, entender que não há indício da prática do crime de homicídio doloso, descabendo a pronúncia do réu, é forçoso o deslocamento da competência para a vara criminal competente para julgar o crime de homicídio culposo, por exemplo.
É claro que essa lógica do declínio só vale para as comarcas nas quais o juiz do tribunal do júri não tem competência para julgar os demais crimes. Se a competência for ampla, como normalmente ocorre nas pequenas comarcas, os autos permanecerão no mesmo juízo, sendo necessário adaptar o procedimento do tribunal do júri para o procedimento que tenha lugar em razão da desclassificação da imputação.
De outro lado, a antiga redação do art. 492, § 2º, do CPP, dispunha o seguinte: Se for desclassificada a infração para outra atribuída à competência do juiz singular, ao presidente do tribunal caberá proferir em seguida a sentença.
Ocorre que a Lei 11689/08 conferiu nova redação ao art. 492, § 2º, do CPP, e deslocou o tema para o art. 492, § 1º, do CPP, o qual passou a ter a seguinte redação: se houver desclassificação da infração para outra, de competência do juiz singular, ao presidente do Tribunal do Júri caberá proferir sentença em seguida, aplicando-se, quando o delito resultante da nova tipificação for considerado pela lei como infração penal de menor potencial ofensivo, o disposto nos arts. 69 e seguintes da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995.
A rigor, mesmo havendo mudança de dispositivo e alteração redacional, a norma manteve o mesmo sentido. Portanto, se o réu for pronunciado e levado ao julgamento do tribunal do júri, se o Conselho de Sentença desclassificar a imputação de crime doloso contra a vida, caberá ao presidente do tribunal do júri proferir a sentença, inclusive motivando a parte relacionada ao mérito e fixando a pena, se o caso for de condenação.
A observação que constou na parte final do dispositivo sob exame é interessante porque reforça a necessidade de aplicação das medidas despenalizadoras previstas na Lei 9099/95, caso a desclassificação seja operada para alguma infração de menor potencial ofensivo.
Diante dessas novidades legislativas, convém registrar que, embora o art. 74, § 3º, do CPP, mencione o art. 410, caput, do CPP, e o art. 492, § 2º, do CPP, diante das mudanças promovidas pela Lei 11689/08, a desclassificação efetivada na primeira fase do procedimento do tribunal do júri passou a ser tratada no art. 419, caput, do CPP, e a desclassificação efetivada na segunda fase do procedimento do tribunal do júri passou a ser tratada no art. 492, § 1º, do CPP.
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