COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL: ARTIGO 6º

29/05/2020

Coluna Isso Posto /Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto

Ouça a leitura do artigo.

Seguimos comentando os artigos do Código de Processo Penal, dando continuidade às nossas colunas anteriores elaboradas neste sentido.

Art. 6º Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá:

I - dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais;         

II - apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais;         

III - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias;

IV - ouvir o ofendido;

V - ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III do Título Vll, deste Livro, devendo o respectivo termo ser assinado por duas testemunhas que lhe tenham ouvido a leitura;

VI - proceder a reconhecimento de pessoas e coisas e a acareações;

VII - determinar, se for caso, que se proceda a exame de corpo de delito e a quaisquer outras perícias;

VIII - ordenar a identificação do indiciado pelo processo datiloscópico, se possível, e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes;

IX - averiguar a vida pregressa do indiciado, sob o ponto de vista individual, familiar e social, sua condição econômica, sua atitude e estado de ânimo antes e depois do crime e durante ele, e quaisquer outros elementos que contribuírem para a apreciação do seu temperamento e caráter;

X - colher informações sobre a existência de filhos, respectivas idades e se possuem alguma deficiência e o nome e o contato de eventual responsável pelos cuidados dos filhos, indicado pela pessoa presa.      

 

O art. 6º, caput, do CPP, elenca as providências que a autoridade policial deve adotar quando tem conhecimento da prática de uma infração penal. Desde logo, não custa lembrar que tais diligências deverão ser realizadas no curso do inquérito policial, de modo que devem ser observadas as normas do art. 5º, §§ 4º e 5º, do CPP. Em outras palavras, se o crime for de ação penal de iniciativa pública incondicionada, a ação da autoridade policial deve ser imediata, tanto que o legislador afirma que a mesma deve agir logo que tiver conhecimento da infração penal. Todavia, se o crime for de ação penal de iniciativa pública condicionada à representação ou à requisição do Ministro da Justiça ou se o crime for de ação penal de iniciativa privada, a atuação da autoridade policial pressupõe a concordância da vítima ou do Ministro da Justiça, dependendo do caso.

O art. 6º, I, do CPP, teve importante mudança redacional promovida pela Lei 8862/94. É que a redação anterior afirmava que a autoridade policial deveria se dirigir ao local do crime, se possível e conveniente, afirmando que a mesma deveria permanecer no local enquanto necessário. A redação atual não faculta à autoridade policial comparecer ao local, mas sim determina o seu comparecimento. Sabemos como as coisas funcionam na prática e que, em muitas oportunidades, o dispositivo não é respeitado. Mas, a rigor, é dever da autoridade policial comparecer ao local, preservando as suas características até a chegada dos peritos criminais. Convém lembrar que o art. 158-A, § 1º, do CPP, criado pela Lei 13964/19, esclarece que o início da cadeia de custódia dá-se com a preservação do local de crime ou com procedimentos policiais ou periciais nos quais seja detectada a existência de vestígio. De outro lado, o art. 158-B, I, do CPP, também criado pela referida lei, ao mencionar as etapas da cadeia da prova, define o isolamento como sendo o ato de evitar que se altere o estado das coisas, devendo isolar e preservar o ambiente imediato, mediato e relacionado aos vestígios e local de crime. Portanto, esta atribuição da autoridade policial é da maior importância, uma vez que viabiliza a preservação dos vestígios que podem ter grande importância para o esclarecimento da prática criminosa. Isso porque, sobretudo em crimes violentos, como o homicídio e o latrocínio, por exemplo, a cena do crime, em geral, é rica em informações, o que enfatiza a necessidade da preservação dos vestígios para que a prova técnica seja realizada da melhor forma possível.

O art. 6º, II, do CPP, também teve a sua redação alterada pela Lei 8862/94. A redação anterior determinava que a autoridade policial apreendesse os objetos que tivessem relação com a prática criminosa. A redação atual ressalva que a apreensão deve ser feita após os peritos criminais liberarem os objetos. A mudança redacional diz o óbvio. Isso porque não faria qualquer sentido a autoridade policial apreender os objetos e impedir a sua análise pelos profissionais que realmente têm condições técnicas de extrair importantes informações dos mesmos. É importante lembrar que o art. 158-E, caput, do CPP, criado pela Lei 13964/19, dispõe que todos os Institutos de Criminalística deverão ter uma central de custódia destinada à guarda e controle dos vestígios, e sua gestão deve ser vinculada diretamente ao órgão central de perícia oficial de natureza criminal. Portanto, os objetos relacionados ao crime devem ser apreendidos pela autoridade policial e, depois, encaminhados aos órgãos cuja missão seja guardá-los, não cabendo a sua guarda na própria delegacia de polícia que, em regra, sequer tem as condições físicas adequadas para tanto.

O art. 6º, III, do CPP, dispõe que a autoridade policial deve colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias. Veja-se que se trata de dispositivo com grande abrangência, na medida em que se refere a todas as provas. Não custa lembrar que, caso a obtenção de qualquer prova dependa de autorização judicial, o juiz das garantias deve ser provocado pela autoridade policial. Convém salientar que a autoridade policial, sendo o presidente da investigação, deve escolher os caminhos a serem trilhados na busca do esclarecimento da infração penal investigada, sempre respeitando todas as normas constitucionais e legais.

O art. 6º, IV, do CPP, trata da oitiva do ofendido. Evidentemente, a natureza do crime sob investigação pode dispensar tal providência da autoridade policial pela efetiva falta de uma vítima diretamente relacionada ao crime. Por exemplo, se o indiciado responder pela prática do crime de porte ilegal de arma de fogo, previsto no art. 14, caput, da Lei 10826/03, é claro que não se pode falar em oitiva da vítima. Todavia, havendo uma vítima específica, a oitiva deve ser realizada com todas as cautelas possíveis, sobretudo porque, normalmente, são as declarações da vítima que trazem importantes informações aos autos. Para a oitiva da vítima em sede policial, devem ser aplicadas, por analogia, as providências do art. 201, caput, do CPP, que dispõe que o ofendido será qualificado e perguntado sobre as circunstâncias da infração, quem seja ou presuma ser o seu autor e as provas que possa indicar, tomando-se por termo as suas declarações, bem como devem ser aplicadas, por analogia, as cautelas do art. 201, § 6º, do CPP, que trata das providências necessárias à preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem do ofendido.       

O art. 6º, V, do CPP, trata da oitiva do indiciado, determinando a observância, no que for aplicável, do disposto nos artigos 185 a 196 do CPP, sobre os quais falaremos no momento oportuno. Mas não custa lembrar, desde já, que, por força do art. 5º, LVIII, da Constituição Federal, o indiciado tem o direito de permanecer em silêncio, sendo certo que o exercício de tal direito constitucional não pode lhe trazer qualquer prejuízo. Além disso, é importante registrar que a oitiva do indiciado pode ser dividida em duas partes. Na primeira parte, chamada de interrogatório subjetivo, o indiciado será indagado sobre a residência, meios de vida ou profissão, oportunidades sociais, lugar onde exerce a sua atividade, vida pregressa, notadamente se foi preso ou processado alguma vez e, em caso afirmativo, qual o juízo do processo, se houve suspensão condicional ou condenação, qual a pena imposta, se a cumpriu e outros dados familiares e sociais, conforme orienta o art. 187, § 1º, do CPP, Na segunda parte, de acordo com o art. 187, § 2º, do CPP, o indiciado deve ser perguntado sobre os seguintes pontos: (i) se verdadeira a acusação que lhe é feita; (ii) não sendo verdadeira a acusação, se tem algum motivo particular a que atribuí-la, se conhece a pessoa ou pessoas a quem deva ser imputada a prática do crime, e quais sejam, e se com elas esteve antes da prática da infração ou depois dela; (iii) onde estava ao tempo em que foi cometida a infração e se teve notícia desta; (iv) as provas já apuradas; (v) se conhece as vítimas e testemunhas já inquiridas ou por inquirir, e desde quando, e se tem o que alegar contra elas; (iv) se conhece o instrumento com que foi praticada a infração, ou qualquer objeto que com esta se relacione e tenha sido apreendido; (vii) todos os demais fatos e pormenores que conduzam à elucidação dos antecedentes e circunstâncias da infração; (viii) se tem algo mais a alegar em sua defesa. Lembre-se que o art. 6º, V, do CPP, é expresso ao prever que duas testemunhas devem assinar o termo de declarações prestadas pelo indiciado após a sua leitura. As chamadas testemunhas de leitura consistem em uma cautela a mais, no sentido de que garantir que as declarações registradas no termo, de fato, correspondam às declarações prestadas pelo indiciado. Embora não seja obrigatório por lei, é conveniente que tais testemunhas não sejam subordinadas à autoridade policial para evitar qualquer tipo de constrangimento. Ademais, embora também não seja exigido por lei, o ideal é que as testemunhas presenciem o momento em que o indicado depõe em sede policial, e não apenas acompanhem a posterior leitura do termo de declarações. De toda forma, convém que tal leitura seja feita na presença do indiciado, a fim de que ele, se for o caso, aponte alguma incorreção na hipótese de ter sido registrada alguma declaração que ele não fez ou mesmo na hipótese de a redação empregada no termo ser dúbia. Caso as declarações sejam colhidas pelo método audiovisual, e não reduzidas a escrito, as testemunhas de leitura são dispensadas porque, a rigor, não existem declarações do indiciado a serem lidas na sua presença.

O art. 6º, VI, do CPP, trata do reconhecimento de pessoas e de coisas, bem como trata das acareações. No caso do reconhecimento, devem ser observadas as regras previstas nos artigos 226 a 228 do CPP. Não custa lembrar que o art. 226, parágrafo único, do CPP, dispõe que o inciso III do mencionado dispositivo não tem aplicação da fase judicial, deixando claro que o mesmo apenas pode ser aplicado na fase policial. A referida vedação há muito é criticada pela doutrina[1]. De toda forma, tal dispositivo afirma que, se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela. Isso significa que não há dúvida quanto à possibilidade de o reconhecimento em sede policial ser feito através da chamada sala especial, na qual seja possível que a vítima faça o reconhecimento do indiciado sem que este veja aquela. Também é possível fazer a acareação em sede policial, entre indiciados, entre indiciado e testemunha, entre testemunhas, entre indiciado e vítima, entre testemunha e vítima e entre vítimas, quando os seus depoimentos divergem sobre fatos ou circunstâncias relevantes. Nesses casos, as pessoas submetidas à acareação são indagadas sobre aos pontos de divergência. Contudo, a prática revela a pouca utilidade das acareações porque, em regra, as pessoas se limitam a manter as suas declarações.  

   O art. 6º, VII, do CPP, determina que a autoridade policial deve determinar, se for o caso, a realização do exame de corpo de delito e de quaisquer outras perícias. Não custa lembrar a Lei 13964/19 alterou de forma significativa o capítulo que compreende os artigos 158 a 184, do CPP, o qual passou a tratar do exame de corpo de delito, da cadeia de custódia e das perícias em geral, sobre o qual falaremos no momento oportuno. Em verdade, a grande maioria das perícias, incluindo o exame de corpo de delito, deve ser realizada na fase policial, sob pena de perda de uma prova tão importante para o julgamento. Por isso, esta atribuição da autoridade policial está dentre aquelas com maior importância no inquérito policial.

O art. 6º, VIII, do CPP, dispõe que a autoridade policial deve ordenar a identificação do indiciado pelo processo datiloscópico, se possível, e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes. O art. 5º, LVIII, da Constituição Federal, dispõe que o civilmente identificado, em regra, não deve ser submetido à identificação criminal, mas ressalva que a lei pode prever hipóteses excepcionais. De fato, a Lei 12037/09 trata do assunto e dispõe que o civilmente identificado apenas deve ser identificado criminalmente nas seguintes hipóteses: (i) o documento apresentar rasura ou tiver indício de falsificação; (ii) o documento apresentado for insuficiente para identificar cabalmente o indiciado; (iii) o indiciado portar documentos de identidade distintos, com informações conflitantes entre si; (iv) a identificação criminal for essencial às investigações policiais, segundo despacho da autoridade judiciária competente, que decidirá de ofício ou mediante representação da autoridade policial, do Ministério Público ou da defesa; (v) constar de registros policiais o uso de outros nomes ou diferentes qualificações; (vi) o estado de conservação ou a distância temporal ou da localidade da expedição do documento apresentado impossibilite a completa identificação dos caracteres essenciais. Portanto, a expressão se possível prevista no art. 6º, VIII, do CPP, diz respeito a estas hipóteses previstas na Lei 12037/09, sendo certo que qualquer outra situação não abarcada pelo citado diploma legal representará violação à garantia constitucional prevista no art. 5º, LVIII, da Constituição Federal. Além disso, a juntada da folha de antecedentes criminais também pode auxiliar na verificação do perfil do indiciado.

O art. 6º, IX, do CPP, diz respeito à obrigação da autoridade policial de buscar esclarecimentos relativos ao temperamento e ao caráter do indiciado. É por isso que se deve averiguar a vida pregressa do indiciado, sob o ponto de vista individual, familiar e social, sua condição econômica, sua atitude e estado de ânimo antes e depois do crime e durante ele, e quaisquer outros elementos que contribuírem para a apreciação do seu temperamento e caráter. Tal análise do perfil do indiciado também pode contribuir para o esclarecimento das circunstâncias do crime sob investigação.

Por último, o art. 6º, X, do CPP, dispõe que a autoridade policial deve colher informações sobre a existência de filhos, respectivas idades e se possuem alguma deficiência e o nome e o contato de eventual responsável pelos cuidados dos filhos, indicado pela pessoa presa. Esta atribuição foi incluída na lei processual pela Lei 13257/16, que dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância. Convém lembrar que, segundo o art. 2º, caput, da citada lei, a primeira infância abrange os primeiros seis anos de vida. De fato, entendemos importante que o indiciado seja indagado quanto aos seus filhos porque eles devem ser preservados das consequências decorrentes do crime praticado por seus pais. Esta preservação nem sempre é fácil de ser realizada na prática. Aliás, se o indiciado tiver contato com os seus filhos, dificilmente estes serão integralmente poupados nestas situações. Mas, de toda forma, um bom caminho neste sentido é a autoridade policial saber da existência dos filhos e, em alguma medida, tentar providenciar algum contato que seja capaz de poupá-los dos efeitos da investigação criminal deflagrada contra os seus pais.  

 

Notas e Referências 

[1] TORNAGHI, Hélio. Compêndio de processo penal.  Vol. 3. Rio de Janeiro: José Konfino, 1967, p. 921.

 

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