Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto
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Seguimos comentando os artigos do Código de Processo Penal, dando continuidade às nossas colunas anteriores elaboradas neste sentido.
Art. 4º. A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria.[1]
Parágrafo único. A competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função.
O art. 4º, caput, do CPP, dispõe que a polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais, observadas as respectivas circunscrições. A primeira observação a ser feita decorre da alteração que a Lei 9043/95 promoveu neste dispositivo. Em verdade, houve apenas um ajuste redacional, na medida em que a palavra circunscrições substituiu a palavra jurisdições.
É claro que a nova redação é a adequada porque a autoridade policial não possui jurisdição, a qual se relaciona aos órgãos judiciários. A jurisdição, uma vez fracionada e organizada, confere a competência para cada órgão jurisdicional. É por isso que se diz que a competência é uma parcela da jurisdição. Portanto, sob o ponto de vista técnico, as autoridades policiais não exercem qualquer competência. Em verdade, as autoridades policiais possuem as suas atribuições, as quais consistem no conjunto de funções que lhes são afetas em razão do cargo que possuem.
Para que seja viável o exercício das atribuições das autoridades policiais, as normas de organização policial fixam os critérios de distribuição das atribuições, sendo certo que, em regra, prevalece o critério territorial, ou seja, determinada autoridade policial tem a sua atribuição afeta a determinado espaço territorial.
Por exemplo, na cidade do Rio de Janeiro, a 32ª Delegacia de Polícia atua em algumas áreas do bairro de Jacarepaguá, o qual é dividido em sub-bairros. Se o crime ocorrer no sub-bairro da Taquara, localizado em Jacarepaguá, a atribuição para investigá-lo, segundo as normas de organização policial, em regra, será da autoridade policial que atua na 32ª Delegacia de Polícia.
Muito embora o critério territorial seja adotado em regra, nada impede que as normas de organização policial levem em conta outro critério para a fixação das atribuições das autoridades policiais, como, por exemplo, a natureza do crime a ser investigado. Isso pode provocar a existência de autoridades policiais com atribuição para atuar em uma área territorial enorme, mas apenas com relação a determinados crimes que nela ocorram, fazendo surgir, dessa maneira, as chamadas delegacias especializadas.
No Estado do Rio de Janeiro, existem diversas delegacias especializadas, tais como: DAS – Delegacia Antissequestro, DCAV – Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima, DCOD – Delegacia de Combate às Drogas, DDSD – Delegacia de Defesa de Serviços Delegados, DEAT – Delegacia de Atendimento ao Turista, DECRADI – Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância, DPCA – Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente, DRCI – Delegacia de Repressão a Crimes de Informática, DRF – Delegacia de Roubos e Furtos e DRFC – Delegacia de Roubos e Furtos de Cargas, dentre outras.
É importante lembrar que o art. 5º, III, da Constituição Federal, prevê os princípios do juiz natural e do promotor natural, ao dispor que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente. Portanto, existe nulidade quando se desrespeitam as normas que fixam a competência dos juízes ou quando se desrespeitam as normas que fixam a atribuição dos promotores de justiça. Mas não se pode falar em princípio do delegado natural, já que inexiste previsão constitucional ou legal neste sentido. Em outras palavras, o desrespeito às normas que preveem a atribuição dos delegados de polícia não gera, por si só, nulidade da investigação. Portanto, mesmo que a investigação tenha sido realizada pelo delegado de polícia sem atribuição para tanto, pode o promotor de justiça com atribuição utilizar as informações obtidas e oferecer a denúncia perante o juiz competente, não se podendo falar em qualquer nulidade neste caso.
Cabe exemplificar para facilitar o raciocínio. Se o crime de roubo foi praticado na Taquara, sub-bairro de Jacarepaguá, na cidade do Rio de Janeiro, cabe ao delegado da 32ª Delegacia de Polícia presidir as investigações. Em seguida, o promotor de justiça com atribuição para atuar no Fórum Regional de Jacarepaguá deverá oferecer a denúncia perante o juiz que tenha competência para atuar na referida regional. Isso é o ideal. Todavia, se o crime for investigado em outra delegacia de polícia, o promotor de justiça com atribuição para atuar no Fórum Regional de Jacarepaguá, ainda assim, poderá utilizar as informações obtidas na investigação e oferecer a denúncia perante o juiz que tenha competência para atuar na referida regional.
Ainda com relação ao art. 4º, caput, do CPP, cabe esclarecer o significado da expressão polícia judiciária, a qual não pode, de forma alguma, ser confundida com a polícia ostensiva. Veja-se que a palavra judiciária pode causar uma interpretação equivocada porque parece indicar que se trata de uma força policial integrante do Poder Judiciário, o que não é o caso.
A rigor, também não se confundem os termos polícia investigativa e polícia judiciária. Isso porque a polícia investigativa se relaciona às ações diretamente ligadas à colheita de elementos informativos quanto à autoria delitiva e quanto à materialidade delitiva, como, por exemplo, as oitivas de testemunhas. De outro lado, a polícia judiciária relaciona-se às atividades de auxílio ao Poder Judiciário, através do cumprimento de suas ordens, como, por exemplo, o cumprimento de um mandado de prisão.
Nesse contexto, entendemos que a expressão polícia judiciária referida no art. 4º, caput, do CPP, deve ser interpretada em sentido amplo, ou seja, incluindo a polícia judiciária em sentido estrito e a polícia investigativa, ambas exemplificadas acima, até porque as mesmas se entrelaçam de uma forma bastante significativa.
Não custa lembrar que o art. 144 da Constituição Federal elenca os órgãos que integram a segurança pública, quais sejam, a polícia federal, a polícia rodoviária federal, a polícia ferroviária federal, as polícias civis, as polícias militares, os corpos de bombeiros e as polícias penais federal, estaduais e distrital. O mencionado dispositivo constitucional distingue a função de polícia judiciária e a função investigativa. Veja-se que o art. 144, § 1º, I e IV, da Constituição Federal, dispõe que cabe à polícia federal apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei, bem como dispõe que cabe à polícia federal exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União. De seu lado, o art. 144, § 4º, da Constituição Federal, dispõe que às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares. Portanto, por força dos referidos dispositivos constitucionais, é possível afirmar que o art. 4º, caput, do CPP, se refere à polícia federal e às polícias civis.
Além disso, a Lei 12830/13 – que dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia – também distingue a função de polícia judiciária e a função de polícia investigativa, dispondo, no seu art. 2º, que as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.
Todavia, ao contrário do texto constitucional e da Lei 12830/13, o art. 4º, caput, do CPP, não fez tal distinção, tornando absolutamente viável a interpretação acima referida, no sentido de que a expressão polícia judiciária referida pela lei processual tenha sentido amplo, englobando a polícia judiciária em sentido estrito e a polícia investigativa. Aliás, a rigor, faltou técnica ao legislador processual, na medida em que afirmou que a polícia judiciária terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria.
Por outro lado, o art. 4º, parágrafo único, do CPP, dispõe que a competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função.
A primeira observação diz respeito à palavra competência utilizada pelo legislador, a qual, por motivo evidente, é equivocada sob o ponto de vista técnico. Isso porque a competência compreende uma fração da jurisdição conferida a cada órgão do Poder Judiciário. Portanto, a rigor, caberia ao legislador utilizar a palavra atribuição, e não a palavra competência. Não custa lembrar que a atribuição é conjunto de funções afetas à autoridade administrativa, à qual por lei seja atribuída a função de polícia judiciária em sentido amplo, incluindo, portanto, a polícia judiciária em sentido estrito e a polícia investigativa.
O curioso é que a Lei 9043/95, acima já mencionada, foi elaborada exclusivamente para, de forma acertada, substituir a palavra jurisdições pela palavra circunscrições, no art. 4º, caput, do CPP. Todavia, o legislador não se preocupou em substituir a palavra competência prevista no parágrafo único, do mesmo dispositivo, pela palavra atribuição.
De toda forma, a importância maior do art. 4º, parágrafo único, do CPP, é o fato de deixar claro que a polícia judiciária e a polícia investigativa não são atribuições exclusivas da autoridade policial, sendo possível que o ordenamento jurídico confira tais atribuições a outras autoridades administrativas. Veja-se que o legislador processual, em alguns dispositivos, deixa evidente que o inquérito policial não é imprescindível para o exercício do direito de ação, seja através do oferecimento da denúncia, seja através do oferecimento da queixa-crime.
Apenas para exemplificar, cabe lembrar que o art. 39, § 5º, do CPP, dispõe que o órgão do Ministério Público dispensará o inquérito, se com a representação forem oferecidos elementos que o habilitem a promover a ação penal, e, neste caso, oferecerá a denúncia no prazo de quinze dias. De seu lado, o art. 46, § 1º, do CPP, dispõe que, quando o Ministério Público dispensar o inquérito policial, o prazo para o oferecimento da denúncia contar-se-á da data em que tiver recebido as peças de informações ou a representação. Portanto, se não é imprescindível que a denúncia ou a queixa-crime seja instruída com o inquérito policial, é evidente que outros procedimentos investigatórios, presididos por outras autoridades administrativas, podem instruir a denúncia ou a queixa-crime.
As investigações realizadas através das Comissões Parlamentares de Inquérito, os inquéritos policiais militares, as sindicâncias administrativas e os processos administrativos-disciplinares são exemplos que se adequam ao art. 4º, parágrafo único, do CPP.
Questão mais tormentosa decorre da possibilidade de o Ministério Público poder investigar diretamente. Parte da doutrina[2] argumenta que o art. 129, III, da Constituição Federal, autoriza o Ministério Público a promover o inquérito civil, mas não o autoriza a promover o inquérito policial. Também argumenta-se no sentido de que o art. 129 da Constituição Federal indica várias atribuições do Ministério Público, mas é silente quanto ao inquérito policial. Além disso, argumenta-se que essa possibilidade foi discutida durante a elaboração do texto constitucional, mas acabou não sendo inserida na Constituição Federal.
Todavia, aderimos ao entendimento de parte da doutrina[3] que sustenta que inexiste qualquer sentido na vedação dessa possibilidade ao Ministério Público, exatamente em razão do art. 129, I, VII e VIII, da Constituição Federal. Isso porque o texto constitucional autoriza que o Ministério Público exerça o seu direito de ação, com base nas informações obtidas no inquérito policial, autoriza que o Ministério Público exerça o controle externo da atividade policial e autoriza que o Ministério Público requisite a instauração do inquérito policial. Portanto, a melhor interpretação constitucional, na nossa ótica, é no sentido de que, podendo fazer o mais, não se pode negar que o Ministério Público faça o menos. Nesse sentido, o plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário de nº 593.727, com repercussão geral, no dia 14 de maio de 2015, reconheceu o poder de investigação do Ministério Público. Os ministros do Supremo Tribunal Federal fixaram a seguinte tese em repercussão geral: O MP dispõe de competência para promover, por autoridade própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado e qualquer pessoa sob investigação do Estado, observadas, sempre, por seus agentes, as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e, também, as prerrogativas profissionais de que se acham investidos, em nosso país, os advogados (lei 8906/94, artigo 7º, incisos I, II, III, XI, XIII, XIV e XIX), sem prejuízo da possibilidade – sempre presente no Estado Democrático de Direito – do permanente controle jurisdicional dos atos, necessariamente documentados (súmula vinculante 14), praticados pelos membros dessa instituição.
Notas e Referências
[1] Alterado pela Lei 9043/95
[2] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 129-132.
[3] CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de Processo Penal: comentários consolidados e crítica jurisprudencial. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 21
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