Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto
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Seguimos comentando os artigos do Código de Processo Penal, dando continuidade às nossas colunas anteriores elaboradas neste sentido.
Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:
O dispositivo agora em estudo constitui uma novidade trazida pelo Pacote Anticrime – Lei 13964/19 –, a qual precisa ser examinada com cuidado e com o senso crítico que se espera do intérprete diante de normas que, verdadeiramente, alteram o panorama processual penal.
Isso porque se alterou a perspectiva tradicional que envolve o exercício do direito de ação, normalmente materializado com o oferecimento da denúncia ou da queixa-crime em juízo, e também a própria prestação jurisdicional, normalmente materializada com a prolação da sentença que analisa e enfrenta o conflito de interesses.
Com a cautela própria que envolve a importação de institutos adotados em outros países, é possível ver semelhanças entre o acordo de não persecução penal brasileiro e a chamada plea bargaining norte-americana. É que, em ambas as situações, ocorre um acordo entre a acusação e a defesa com o propósito de evitar a deflagração do processo propriamente dito, deixando-se de praticar diversos atos processuais e diminuindo-se o tempo sempre necessário para a solução do conflito de interesses.
Além disso, há um aspecto importantíssimo favorável ao réu: ao celebrar o acordo de não persecução penal, evita-se a prolação de uma sentença condenatória, o que significa dizer que o réu mantém a sua primariedade e evita todas as consequências que decorrem do status de condenado.
Convém salientar que a transação penal, prevista no art. 76 da Lei 9099/95, também constitui um mecanismo que, em tese, resolve o conflito de interesses sem a prolação da sentença de mérito propriamente dito, mas a novidade agora inserida na lei processual é muito mais ampla e abrange um número muito maior de situações, conforme será abaixo registrado. A propósito, para aprofundar o estudo da transação penal, sugerimos a leitura do nosso livro que trata do assunto[1].
O art. 28-A, caput, do CPP, dispõe que o acordo de não persecução penal tem lugar se o caso não impuser o arquivamento dos autos. Portanto, o primeiro exame a ser feito pelo Ministério Público diz respeito à existência, ou não, da justa causa. Em outras palavras, cabe ao Parquet verificar se existe o mínimo suporte probatório imprescindível para o oferecimento da denúncia. Se não houver a justa causa, o Ministério Público deve providenciar o arquivamento, sejam dos autos do inquérito policial, sejam dos autos de qualquer outro procedimento que, em tese, embasariam o oferecimento da denúncia em juízo. De outro lado, se houver justa causa, abre-se a possibilidade de celebração do acordo de não persecução penal. Registre-se que a mesma lógica orienta a transação penal, a qual também só é possível se não for caso de arquivamento.
Convém lembrar que o princípio da obrigatoriedade é mitigado nesses casos porque cabe ao Ministério Público, mesmo concluindo pela existência de justa causa, deixar de exercer o direito de ação e propor o acordo de não persecução penal. Lembre-se que o princípio da obrigatoriedade impõe o oferecimento da denúncia quando está presente a justa causa, justamente o que não ocorre no caso do acordo de não persecução penal.
Estando presente a justa causa, a celebração do acordo de não persecução penal depende da confissão formal e circunstancial do investigado. Veja-se que a confissão deve ser detalhada, não se admitindo uma confissão genérica ou mesmo uma confissão qualificada. Vale registrar a antiga lição segundo a qual a confissão qualificada é aquela que não compreende o crime em toda sua extensão ou não assinala certos caracteres do fato criminoso ou que contém certas restrições que impede os seus efeitos quanto à aplicação da pena ou tem por fim provocá-la menos rigorosa[2].
Mas não bastam as presenças da justa causa e da confissão formal e detalhada. É necessário que a infração penal não tenha sido praticada com violência ou grave ameaça. Veja-se que esse filtro afasta o acordo de não persecução penal no caso de prática de crimes mais graves como, por exemplo, o roubo e a extorsão, previstos, respectivamente, nos arts. 157 e 158 do Código Penal.
Além disso, é imprescindível que a pena mínima prevista para o crime supostamente praticado pelo investigado deve ser inferior a quatro anos. Esse limite de quatro anos permite que um grande número de crimes seja abarcado pela norma sob exame como, por exemplo, o peculato e a corrupção passiva, previstos, respectivamente, nos arts. 312 e 317 do Código Penal. Essa grande abrangência do acordo de não persecução penal constitui uma diferença significativa com relação à transação penal, a qual, em regra, apenas é aplicada às infrações de menor potencial, ou seja, aos crimes com pena máxima até dois anos e às contravenções penais, conforme dispõe o art. 61 da Lei 9099/95.
No mais, presentes os requisitos já referidos, cabe ao Parquet examinar se o acordo de não persecução penal constitui medida necessária e suficiente para a reprovação e a prevenção do crime. Melhor seria se o legislador tivesse adotado, neste ponto, um critério mais objetivo, já que a análise esperada pelo legislador é altamente subjetiva e confere ao Ministério Público uma certa discricionariedade que pode causar grandes problemas de ordem prática.
Basta imaginar que o Parquet, mesmo concluindo pela presença de justa de causa e mesmo constatando a presença dos outros requisitos, deixe de propor o acordo de não persecução penal por entendê-lo desnecessário. Poderia o Ministério Público, nesse caso, simplesmente providenciar o arquivamento dos autos? Entendemos que, diante da constatação da justa causa, restam duas alternativas ao Parquet: (i) o promotor de justiça pode entender que o caso comporta o acordo de não persecução penal e, por isso, pode propô-lo, e (ii) o promotor de justiça pode entender que o caso não comporta o acordo de não persecução penal e, por isso, pode oferecer a denúncia. O que não se pode conceber é a absurda hipótese em que o Ministério Público reconhece a presença da justa causa e não propõe o acordo e nem denuncia, providenciando o arquivamento dos autos.
De outro lado, segundo a lei processual, cabe ao Ministério Público também examinar se o acordo de não persecução penal é suficiente para a reprovação e a prevenção do crime. É evidente a carga de subjetivismo que existe em tal análise, mas isso não chega a ser uma novidade no nosso ordenamento jurídico. O máximo que se pode fazer é questionar o exame feito pelo promotor de justiça que, reconhecendo a presença de todos os demais requisitos, deixa de propor o acordo de não persecução penal por entendê-lo insuficiente para a reprovação e a prevenção do crime.
Diante disso, entendemos que resta a interpretação no sentido de que o acordo de não persecução penal, sendo a melhor alternativa para o réu diante do reconhecimento da justa causa, sempre se mostra necessário, em razão do princípio da obrigatoriedade, ainda que mitigado. Além disso, embora seja possível criticar a opção legislativa, cabe realmente ao Parquet fazer o primeiro exame quanto à suficiência do acordo para o fim de reprovação e de prevenção do crime.
Por último, resta consignar neste momento que, de acordo com a lei, as condições previstas nos incisos I a V deve ser fixadas de maneira cumulativa e alternativa. Segundo o legislador, o acordo de não persecução penal deve ser proposto mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente. Entendemos que, embora a lei processual tenha usado a expressão cumulativa e alternativamente, o dispositivo deve ser interpretado no sentido de que as condições podem ser fixadas de forma cumulativa ou de forma alternativa. Não faz qualquer sentido a norma determinar a aplicação cumulativa e, ao mesmo tempo, determinar a aplicação alternativa das condições. Em outras palavras: ou é cumulativa, ou é alternativa. As condições podem ser somadas ou podem ser eleitas dentre o rol de hipóteses contido no dispositivo. Qualquer outra interpretação exigiria uma ginástica com a língua portuguesa que não se justifica, especialmente porque se trata de um acordo entre a acusação e a defesa, de modo que se espera que haja certa negociação entre as mesmas, a fim de que seja fixada a solução mais justa no caso concreto. Para reforçar a nossa convicção, não custa lembrar que a palavra ou foi inserida no final do art. 28-A, IV, do CPP.
Notas e Referências
[1] COUTO, Ana Paula; COUTO, Marco; CHINI, Alexandre; FLEXA, Alexandre; ROCHA, Felippe Borring. Juizados especiais cíveis e criminais: Lei 9099/1995 comentada. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2019.
[2] MITTERMAIER, Carl. Tratado prova em matéria criminal. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1879, p. 329.
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