Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco
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Seguimos comentando os artigos do Código de Processo Penal, dando continuidade às nossas colunas anteriores elaboradas neste sentido.
Art. 24. Nos crimes de ação pública, esta será promovida por denúncia do Ministério Público, mas dependerá, quando a lei o exigir, de requisição do Ministro da Justiça, ou de representação do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo.
§1º No caso de morte do ofendido ou quando declarado ausente por decisão judicial, o direito de representação passará ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão.
§2º Seja qual for o crime, quando praticado em detrimento do patrimônio ou interesse da União, Estado e Município, a ação penal será pública.
O art. 24, caput, do CPP, trata da ação penal de iniciativa pública. Não é novidade afirmar que as ações penais, no que se refere à iniciativa para o seu exercício, podem ser classificadas em ações de iniciativa pública e de iniciativa privada. O legislador tratou as mencionadas espécies em dispositivos distintos, razão pela qual agora apenas abordaremos a ação penal de iniciativa pública, deixando para abordar, no momento oportuno, a ação penal de iniciativa privada.
Com a preocupação de sermos didáticos, não nos custa lembrar que a ação é o direito de se dirigir ao Estado apresentando o conflito de interesses, a fim de que o mesmo seja examinado e decidido pelo órgão judicial competente. Por isso, atua de forma equivocada aquele que afirma que vai entrar com uma ação. O que, verdadeiramente, se pretende afirmar é que alguém exercerá o seu direito de ação, materializando o seu exercício através de uma petição, a qual, por sua vez, deflagrará a instauração do processo judicial.
Nessa medida, quando o art. 24, caput, do CPP, afirma que, nos crimes de ação pública, esta será promovida por denúncia do Ministério Público, o intérprete deve entender que o legislador conferiu o direito de ação ao Ministério Público, ao qual caberá exercê-lo através da apresentação em juízo da petição inicial que a própria lei nomina de denúncia.
É certo que existem muitos sentidos para a palavra denúncia. Talvez por isso, é comum as pessoas afirmarem que foram à delegacia de polícia denunciar determinada pessoa. Mas, a rigor, em se tratando de processo penal, a palavra denúncia só pode ser utilizada para nominar a petição inicial apresentada em juízo pelo Ministério Público.
Feito esse esclarecimento básico, é importante registrar que o dispositivo em estudo trata da regra aplicável no processo penal brasileiro, segundo a qual a legitimidade ativa é conferida, quase sempre, ao Ministério Público. Evidentemente, podia ter sido outra a opção do legislador, o qual podia ter atribuído a legitimidade ativa, em regra, para a vítima ou para qualquer outro órgão estatal. Veja-se que, em verdade, a legitimidade o Ministério Público está consagrada no art. 129, I, da Constituição Federal, o qual dispõe que ao Parquet cabe promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei. Feita essa escolha constitucional, é fácil compreender porque em todas as varas criminais do país existe um número de processos deflagrados pelo Ministério Público muito maior do que o número de processos deflagrados pela vítima, através da apresentação da queixa-crime, sobre a qual falaremos oportunamente.
Nessa medida, o art. 24, caput, do CPP, dispõe que – em regra – cabe ao Ministério Público oferecer a denúncia em juízo sem a necessidade da concordância de ninguém. Para tanto, basta que o promotor de justiça examine os autos do inquérito policial e forme o seu convencimento. Caso ele conclua pela existência da justa causa, não lhe cabe consultar a vítima do crime ou quem quer que seja. Basta que ele ofereça a denúncia em juízo.
Eis, portanto, a regra que prevê a chamada ação penal de iniciativa pública incondicionada. Mas o mesmo dispositivo, em sua parte final, registra que o Ministério Público dependerá, quando a lei o exigir, de requisição do Ministro da Justiça, ou de representação do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo. Nessas duas situações, o caso é de ação penal de iniciativa pública condicionada à requisição do Ministro da Justiça e de ação penal de iniciativa pública condiciona à representação da vítima.
Considerando que a regra é a ação penal de iniciativa pública incondicionada, cabe ao legislador indicar as hipóteses excepcionais, ou seja, quando será necessária a requisição ou a representação. Normalmente, essa situação excepcional é indicada no próprio dispositivo que prevê o crime (por exemplo, no crime de ameaça: art. 147, caput, do CP), ao final do capítulo no qual se encontra o dispositivo que prevê o crime (por exemplo, no crime de dano: art. 163, caput, do CP, e art. 167, caput, do CP) ou ao final do título que prevê o capítulo no qual se encontra o dispositivo que prevê o crime (por exemplo, no crime de calúnia: art. 155, caput, do CP, e art. 182, caput, do CP). Mas existem situações ainda mais excepcionais nas quais sequer é possível aplicar essa lógica, já que o legislador, sem qualquer critério, ressalva o tipo de ação penal (por exemplo, no crime de lesão corporal leve: art. 129, caput, do CP, e art. 88, caput, da Lei 9099/95).
A requisição do Ministro da Justiça compreende a sua manifestação no sentido de ver oferecida a denúncia em juízo. Convém salientar que, embora o legislador se refira ao Ministro da Justiça, à época da elaboração do Código de Processo Penal, por força da Lei 23, de 30 de outubro de 1891, o respectivo ministério se chamava Ministério da Justiça e Negócios Interiores, passando a ser chamado de Ministério da Justiça apenas por força do Decreto-lei 200, de 25 de fevereiro de 1967. Registre-se que, atualmente, por força da Medida Provisória 870, de 1º de janeiro de 2019, convertida na Lei 13844, de 18 de junho de 2019, o referido ministério passou a ser chamado de Ministério da Justiça e Segurança Pública, o que significa dizer que a requisição esperada pelo legislador deve ser feita pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública, o qual atua como auxiliar do Presidente da República, conforme dispõe o art. 84, II, da Constituição Federal.
Em se tratando de uma manifestação a ser exarada por uma alta autoridade, exige-se que a requisição seja formal, registrando expressamente o propósito de ver deflagrado o processo criminal. A requisição tem natureza jurídica de condição de procedibilidade, mas não obriga o promotor de justiça a oferecer a denúncia. Em outras palavras: o promotor de justiça não pode denunciar sem a requisição do Ministro da Justiça, mas a requisição, por si só, não impõe o oferecimento da denúncia porque cabe ao promotor, após a apresentação da requisição, verificar se existe justa causa para embasar o oferecimento da denúncia. A requisição não se sujeita a qualquer prazo, podendo ser oferecida em qualquer momento, mas perde o efeito prático, por exemplo, se tiver decorrido o prazo prescricional. Por analogia ao art. 25, caput, do CPP, entendemos que a requisição seja retratável até o oferecimento da denúncia, sobretudo porque exercida por um ator político, o qual pode rever a sua conveniência, se for o caso.
De outro lado, a representação da vítima pode ser informal, já que não se pode esperar que todas as pessoas tenham conhecimento jurídico. Por isso, ainda que não se refira ao termo representação, a vítima pode deixar claro o seu propósito de ver oferecida a denúncia (prestando depoimento incriminando o autor do crime, submetendo-se a algum exame médico, afirmando que aguarda a adoção das providências devidas etc), o que é suficiente para autorizar o Ministério Público a oferecer a denúncia. Da mesma forma que a requisição do Ministro da Justiça, a representação da vítima também tem natureza jurídica de condição de procedibilidade e não obriga o promotor de justiça a oferecer a denúncia. Sem a representação, o promotor de justiça não pode denunciar. Mas ele não é obrigado a denunciar pelo fato de a vítima apresentar a representação, cabendo, após receber a representação, examinar se existe justa causa para embasar o oferecimento da denúncia. A representação submete-se ao prazo decadencial que, em regra, é de seis meses, conforme dispõe o art. 38, caput, do CPP. Nada impede que outro prazo seja previsto pelo legislador. A título de exemplo, o art. 240, § 2º, do CP, que tratava do crime de adultério, revogado pela Lei 11106/05, previa o prazo decadencial de um mês. Por expressa autorização do art. 25, caput, do CPP, a retratação pode ser retratada até o oferecimento da denúncia, sendo certo que o art. 79, caput, da Lei 9099/95, autoriza a retratação até mesmo após o oferecimento da denúncia, o que apenas pode ocorrer no sistema dos Juizados Especiais Criminais.
Hipótese interessante refere-se à chamada retratação da retratação, a qual ocorre quando a vítima apresenta a sua representação, depois se retrata da representação e, ao final, se retrata da retratação, o que equivale a uma nova representação. Entendemos que isso – retratação da retratação – é possível desde que (i) o prazo decadencial não tenha expirado e (ii) não tenha sido declarada extinta a punibilidade por força da retratação. Vale o exemplo. Se a vítima é ameaçada no dia 01/01/2020, apresenta retratação no dia 01/02/2020 e retrata-se da representação no dia 01/03/2020, ela poderá retratar-se da retratação até o término do prazo de seis meses previsto no art. 38, caput, do CPP. Todavia, se antes do término desse prazo o juiz declarar extinta a punibilidade por força da retratação, a vítima não poderá se retratar da retratação após a declaração de extinção da punibilidade, ainda que não tenha sido encerrado o referido prazo de seis meses.
A representação pode ser apresentada pela própria vítima ou por seu representante legal, caso a vítima não tenha capacidade para tanto. Em outras palavras, se a vítima tiver menos de 18 anos, o seu representante legal poderá apresentar a representação em seu nome. Caso o seu representante legal fique inerte, o prazo decadencial começará no dia em que a vítima completar 18 anos, uma vez que raciocínio diverso imporia à vítima um tratamento flagrantemente injusto, além de propiciar uma indevida impunidade do autor do crime.
Por seu turno, o art. 24, § 1º, do CPP, trata do direito de sucessão relativo à representação, permitindo que o cônjuge, o ascendente, o descendente ou o irmão da vítima possa representar diante de sua morte ou de sua ausência.
É importante enfatizar que tal sucessão relativa ao direito de representação obedece à mesma lógica empregada na sucessão relativa ao direito de queixa, a qual é estabelecida no art. 36, caput, do CPP. O caso é de evidente analogia. Portanto, se comparecer mais de um sucessor, tem preferência o cônjuge, depois o ascendente, o descendente e o irmão da vítima, nesta ordem. Cabe lembrar, na hipótese de um sucessor exercer o direito de representação e depois retratar-se, que nada impede que o próximo sucessor – observada a ordem indicada – apresente a representação, desde que, obviamente, não tenha expirado o prazo decadencial. Na nossa avaliação, em se tratando de norma híbrida, já que tem reflexos penais e processuais, não se pode admitir o emprego da analogia, razão pela qual onde se lê cônjuge não se pode ler convivente, companheiro ou qualquer outro tipo de relação afetiva. Embora possa ensejar situações injustas, não concebemos a possibilidade de uma norma com carga (ainda que parcial) penal admitir o emprego da analogia em desfavor de quem supostamente pratica o delito.
Além da hipótese em que a vítima morre, também a declaração de sua ausência autoriza a sucessão relativa ao direito de representação. Nesse caso, a declaração de ausência deve ser buscada no juízo cível, sendo certo que a sucessão apenas tem lugar após o trânsito em julgado da sentença declaratória da ausência. Isso significa que, em razão da exiguidade do prazo decadencial – que não se suspende enquanto pendente o processo que busca a declaração de ausência –, dificilmente a sucessão relativa ao direito de representação ocorrerá nesse caso. De toda forma, havendo a ausência declarada por sentença transitada em julgado, aplica-se o mesmo raciocínio desenvolvido para o caso da morte da vítima.
Por fim, o art. 24, § 2º, do CPP, corretamente determina que a ação penal é de iniciativa pública incondicionada quando o crime for praticado em detrimento do patrimônio ou interesse da União, Estado e Município. Nada mais natural que o Ministério Público poder atuar nesses casos, mesmo em eventual desacordo de quem quer que seja, já que, em verdade, se busca proteger o patrimônio e o interesse da coletividade que, em última análise, é a ofendida quando o crime é praticado contra a União, o Estado e o Município. Não seria razoável que os representantes de tais pessoas jurídicas tivessem o poder de autorizar, ou não, a deflagração do processo penal.
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