COMENTÁRIOS AO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL: ARTIGO 1º

20/03/2020

Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto

Ouça aqui a leitura do artigo.

O desafio que resolvemos aceitar se refere à difícil tarefa de comentar o nosso Código de Processo Penal. Como temos as nossas vidas profissionais – no fórum e nas Faculdades –, sabemos que não será fácil. A ideia é comentar artigo por artigo, explorando a nossa legislação processual penal em fatias. Boa sorte para nós.

Art. 1º. O processo penal reger-se-á, em todo o território brasileiro, por este Código, ressalvados:

I – os tratados, as convenções e regras de direito internacional;

II – as prerrogativas constitucionais do Presidente da República, dos ministros de Estado, nos crimes conexos com os do Presidente da República, e dos ministros do Supremo Tribunal Federal, nos crimes de responsabilidade (Constituição, arts. 86, 89, § 2º e 100);

III – os processos de competência da Justiça Militar;

IV – os processos de competência do tribunal especial (Constituição, art. 122, nº 17);

V – os processos por crime de imprensa.

Parágrafo único: Aplicar-se-á, entretanto, este Código aos processos referidos nos nºs IV e V, quando as leis especiais que os regulam não dispuserem de modo diverso.

O dispositivo acima mencionado, de forma bastante evidente, determina, como regra geral, a aplicação do princípio da territorialidade, segundo o qual a norma processual a ser aplicada é aquela vigente no local em que se realiza o ato processual. O mesmo princípio é aplicado no Direito Penal, sendo certo que o Código Penal, em seu art. 5º, dispõe que aplica-se a lei brasileira, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no território nacional.

A expressão território brasileiro, utilizado no Código de Processo Penal, compreende o espaço físico entre as fronteiras do país, o espaço aéreo e o mar territorial. É importante lembrar que a extensão do conceito de território brasileiro adotado no art. 5º, § 1º, do Código Penal, também deve ser adotado no Direito Processual Penal. Portanto, em regra, serão aplicadas as normas deste código incluindo-se, no conceito de território brasileiro, as embarcações e aeronaves brasileiras, de natureza pública ou a serviço do governo brasileiro onde quer que se encontrem, bem como as aeronaves e as embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, que se achem, respectivamente, no espaço aéreo correspondente ou em alto-mar. Nesse contexto, é importante lembrar que o art. 5º, § 2º, do Código Penal, ensina que é também aplicável a lei brasileira aos crimes praticados a bordo de aeronaves ou embarcações estrangeiras de propriedade privada, achando-se aquelas em pouso no território nacional ou em voo no espaço aéreo correspondente, e estas em porto ou mar territorial do Brasil.

A fixação dessa relação entre o Direito Penal e o Direito Processual Penal é conveniente para que se perceba que a preocupação maior do legislador foi assegurar a soberania estatal, na medida em que as nossas leis visam a atender aos interesses nacionais, não fazendo sentido as normas penais e processuais penais serem observadas à luz de interesses de outros países. Por isso, em regra, sendo praticado o crime no território nacional, devem ser aplicadas as normas do Código Penal e do Código de Processo Penal.

Todavia, embora inegável a importância da soberania estatal, não se pode negar que existem inevitáveis relações entre os países, os quais se conectam em diversos aspectos, de modo que é natural que a primeira ressalva ao princípio da territorialidade se relacione justamente à existência de tratados, convenções e regras de Direito Internacional.

Se na época da elaboração do nosso Código de Processo Penal já se percebia a necessidade de tal ressalva, é indiscutível que tal ocorra nos dias atuais. A velocidade das relações entre os países, a facilidade de comunicação no mundo atual e as ferramentas trazidas pela rede mundial de computadores estreitam as ligações entre os países e tornam fundamental o estabelecimento de relações e compromissos que os envolvam, o que impõe o estabelecimento de normas através de tratados, convenções e regras de Direito Internacional.

Embora haja divergência quanto ao fato de os termos tratado e convenção terem o mesmo significado, a verdade é que a legislação processual penal brasileira os tratou de forma distinta. Sem a preocupação de aprofundar o tema que diz respeito mais especificamente ao Direito Internacional, é possível definir o tratado como um acordo resultante da convergência das vontades de dois ou mais sujeitos de Direito Internacional destinado a estabelecer normas específicas. De outro lado, também é possível definir a convenção como um acordo resultante da convergência das vontades de dois ou mais sujeitos de Direito Internacional destinado a estabelecer normas gerais.

Portanto, seja adotando o entendimento de que ambos os termos se equivalem[1], seja adotando o entendimento de que tratado e convenção se referem a coisas distintas[2], é inegável a importância de ambos os instrumentos, os quais – assim como as demais regras de Direito Internacional – são capazes de excepcionar o princípio da territorialidade, afastando a aplicação das normas deste código.

É importante ressaltar que cabe ao Presidente da República celebrar tratados, convenções e atos internacionais, os quais se sujeitam ao referendo do Congresso Nacional, conforme o art. 84, VIII, da Constituição Federal. Além disso, também é importante lembrar que, segundo o art. 5, § 3º, da Constituição Federal, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

A segunda exceção à aplicação das normas do Código de Processo Penal refere-se às prerrogativas constitucionais do Presidente da República, dos Ministros de Estado, nos crimes conexos com os do Presidente da República, e dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, nos crimes de responsabilidade.

Os dispositivos mencionados no Código de Processo Penal merecem atualização à luz da Constituição Federal em vigor, a qual, aliás, ampliou o afastamento das normas deste código para o julgamento de outros personagens, quando os mesmos respondem por crimes de responsabilidade.

É que o art. 52, I, da CF, dispõe que cabe ao Senado Federal processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles, enquanto o art. 52, II, da CF, dispõe que também cabe ao Senado Federal processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União nos crimes de responsabilidade.

Não custa lembrar que os crimes de responsabilidade, a rigor, constituem infrações político-administrativas praticadas por detentores de altos cargos públicos. Em se tratando de Presidente da República, tais infrações são apontadas no art. 85, I a VII, da Constituição Federal. A Lei 1079/50 também indica os crimes de responsabilidade praticados pelo Presidente da República, Ministros de Estado, Ministros do Supremo Tribunal Federal e Procurador Geral da República, impondo-se, nesses casos, o afastamento das normas deste código.

A terceira exceção à aplicação das normas deste código refere-se aos processos de competência da Justiça Militar. As especificidades da realidade militar exigem a aplicação de regras próprias. Por isso, existem um Código Penal Militar (Decreto-Lei 1001/69) e um Código de Processo Penal Militar (Decreto-Lei 1002/69) a serem aplicados especificamente no caso de crimes da competência da Justiça Militar.

Trata-se de importante ressalva a ser feita, na medida em que este código evidencia o máximo respeito à Justiça Militar, o que se percebe quando as causas de conexão e continência são abordadas pelo legislador. As mencionadas causas estabelecem, como regra, a ocorrência de um só julgamento, envolvendo diversos réus e crimes, desde que presentes as condições fixadas pelo legislador. Essa estratégia de junção de réus e de crimes facilita a produção probatória e evita a prolação de decisões contraditórias. Entretanto, ainda que presentes as causas de conexão e continência, previstas no arts. 76 e 77 do CPP, não haverá um único julgamento, se o caso envolver a jurisdição comum e a jurisdição militar, conforme o art. 79, II, do CPP, impondo-se a separação dos réus ou dos crimes, sendo certo que a parte relacionada à Justiça Militar acarretará a aplicação do Código de Processo Penal Militar, e não do CPP.

A quarta exceção à aplicação das normas deste código refere-se aos processos de competência do tribunal especial, o qual era previsto na Constituição de 1937, vigente à época do surgimento do Código de Processo Penal. O dispositivo em destaque perdeu a sua aplicação na medida em que não existe mais na nossa legislação o referido tribunal especial

A quinta e última exceção à aplicação das normas previstas neste código refere-se aos processos por crime de imprensa, os quais se relacionam à Lei 5250/67. Ocorre que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 130/DF, ocorrido no dia 30 de abril de 2009, decidiu pela não recepção do mencionado texto legal pela Constituição Federal, afastando, por consequência, a sua aplicação. É claro que, como consequência, também perdeu valor a exceção prevista no dispositivo em destaque.

Por fim, não custa salientar que o art. 1º, parágrafo único, do CPP, perdeu aplicação na medida em que apenas abordava o art. 1º, IV e V, do CPP, os quais, pelos motivos que expusemos, não têm mais aplicação, seja pelo fato de a atual Constituição Federal não prever o tribunal especial previsto no art. 122, nº 17, da Constituição de 1937, seja pelo fato de o Supremo Tribunal Federal, na ADPF nº 130/DP, ter declarado a não recepção da Lei 5250/67.

 

Notas e Referências

[1] REZEK, Francisco. Direito Internacional Público: Curso Elementar. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 7.

[2] MELLO, Celso de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1982, p 15.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Lady Justice // Foto de: jessica45 // Sem alterações

Disponível em: https://pixabay.com/photos/lady-justice-legal-law-justice-2388500/

Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura