Com que “Ética” Eu Vou? Neopentecostalismo e ascetismo intramundano: encontros e desencontros

29/10/2015

Por Roberta Oliveira Lima - 29/10/2015

Não adianta nem me abandonar

Porque mistério sempre há de pintar por aí

Pessoas até muito mais vão lhe amar

Até muito mais difíceis que eu prá você

Que eu, que dois, que dez, que dez milhões, todos iguais

Até que nem tanto esotérico assim

Se eu sou algo incompreensível, meu Deus é mais.

Caetano Veloso e Gilberto Gil

Introdução 

O presente trabalho pretende de forma ensaística e à luz da obra “A Ética protestante e o espírito do Capitalismo” de Max Weber bem como de alguns outros textos do referido autor e estudiosos de sua obra abordar a ascese intramundana e sua relação com o protestantismo e o neopentecostalismo, este último considerado um movimento religioso contemporâneo de linhagem protestante para alguns e místico para outros.

1. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo

A ética protestante e o espírito do capitalismo de autoria de Max Weber foi publicado a primeira vez em 1904-05 e tornou-se um marco sociológico original ao analisar a sincronia de valores religiosos com questões econômicas que emergiam no mundo ocidental do século XX.

Weber não pretendeu em sua obra analisar, em si mesmos, princípios religiosos, econômicos ou sociais mas seu brilhantismo consiste em perceber e descrever um fenômeno social e econômico que era impulsionado por uma motivação religiosa específica e como essa “combinação de circunstâncias” serviu para o florescimento do capitalismo na moderna sociedade ocidental de sua época.

A obra de Weber busca averiguar um “espírito” que fundado em condutas religiosas específicas foi capaz de favorecer o desempenho econômico do momento histórico por ele retratado. Seria este o “ethos de um sistema econômico”, o que, em seu estudo, é a relação entre “espírito da moderna vida econômica” e a “ética racional da ascese protestante”.

É adequado esclarecer que o capitalismo, fruto do ethos pontuado por Weber é o ocidental, verificado, nesse contexto, na Europa Ocidental e na América.

Weber considera, a partir disso, quatro tipos de Protestantismo ascético, quais sejam: o Calvinismo, o Pietismo, o Metodismo e as seitas originárias do movimento batista. Para o autor, nenhum deles aconteceu de forma independente, já que elaboraram conjuntamente uma só vertente protestante. A Reforma Protestante em sua concepção atinge não apenas a dimensão religiosa do homem mas elabora tipos de conduta individual/moral capazes de rearticular o modo social.

Weber observa que a religião passou a nortear-se pelo individualismo, o qual operava em uma lógica que preconizava como finalidade última do homem glorificar a Deus através de suas ações diárias. Dessa forma, por exemplo, o amor fraterno teria como objetivação a “glória de Deus”, não devendo beneficiar a carne, o que viabilizaria, para o contexto doutrinário, o cumprimento de tarefas diárias como um sinal de obediência e glorificação divina.

Utilizando-se de um exemplo um tanto quanto grotesco mas não menos verdadeiro dentro do que por hora discute-se, imagine-se que constituídos desse “espírito de glorificação divina” na elaboração das tarefas diárias uma mulher ou um homem tivessem que passar seus dias a limpar privadas. Imbuídos de tal “espirito” eles certamente poderiam ao final do dia exclamar que diante deles estavam: “- as privadas mais limpas de toda a cidade!” e que a finalidade de tanto esmero era a glorificação de Deus. Desta forma verifica-se que o empenho aplicado na execução de tal tarefa saía da esfera meramente executória de serviços para a esfera de glorificação do divino através das ações diárias.

Empregando-se a mesma prática de “ações diárias” e “glorificação divina” em outros cenários como empresas, fábricas e comércios não é difícil imaginar o quanto se empenhavam os donos desses empreendimentos e seus ascéticos empregados, contribuindo assim para a “glorificação de Deus” e o consequente alvorecer do acúmulo de capital como fruto de tal intento.

Assim, temos presente a realidade da “ascese intramundana” que será melhor estudada no capítulo a seguir.

2. Ascetismo Intramundano e Neopentecostalismo: conceituações

Visando clarificar a abordagem pretendida nesse ensaio, parte-se agora para a conceituação do que sejam os termos “ascetismo intramundano” e “neopentecostalismo”.

2.1 Ascetismo intramundano

Em um primeiro momento faz-se necessário comentar que esse ascetismo revelado por Weber está ligado ao desencantamento do caminho da salvação e o próprio desencantamento do mundo (PIERUCCI, 2013), o qual Weber enxerga como próprio do processo de racionalização da igreja.

Importante mencionar-se nesse momento a diferenciação entre ascese extramundana e ascese intramundana. A primeira pode ser observada no universo católico e reflete e condena qualquer ação neste mundo, sendo prática recorrente o afastamento em mosteiros, o enclausuramento e a reclusão. Por seu turno, como já brevemente mencionado no capítulo anterior deste ensaio, a ascese intramundana reflete-se em sua ação dentro do mundo, através do trabalho, que seja qual for, deve ser feito para a glória de Deus.

Corroborando tal pensamento tem-se que:

Quando o ascetismo foi trazido das celas monásticas para a vida cotidiana e passou a dominar a moralidade terrena, ele desempenhou um papel na construção do tremendo cosmos da ordem econômica moderna. Uma vez que o ascetismo propôs-se a modificar o mundo, os bens materiais ganharam um poder crescente e finalmente inexorável sobre as vidas humanas como em nenhum outro período anterior da história. O fulgor de seu herdeiro risonho, o iluminismo, parece também apagar-se irremediavelmente e a ideia do dever na vocação do indivíduo ronda nossas existências como o fantasma de crenças religiosas mortas. (WEBER, 2005, p. 86).

Contudo, necessário se faz o esclarecimento de que não é simplesmente estar neste mundo e, ao mesmo tempo, não estar, a noção do ascetismo intramundano implica o acolhimento de uma categoria, qual seja: “a rejeição do mundo” para “adentrar” o sagrado. Nas palavras de Weber:

Este ascetismo secular do protestantismo opunha-se assim, poderosamente, ao espontâneo usufruir das riquezas e, restringia o consumo, especialmente o consumo do luxo. Em compensação, libertava psicologicamente a aquisição dos bens das inibições da ética tradicional, rompendo os grilhões da ânsia do lucro, com o que não apenas a legalizou, como também a considerou diretamente desejada por Deus. A luta contra as tentações da carne e a dependência dos bens materiais era não uma campanha contra o enriquecimento mas contra o uso irracional da riqueza (WEBER, 2005, p. 81)

Outro aspecto importante a ser destacado quando se trata da ascese intramundana explorada por Weber está nos aspectos que tangenciam o corpo, suas necessidades, desejos e até mesmo vestimentas. Tem-se assim o caso da negação das práticas esportivas em dias de culto, dias santos ou quaisquer outros dias (dependendo do segmento de fé professado), além da negação na participação em festas profanas, danças em salões de festa e tabernas. Condenavam ainda a leitura de qualquer obra que pudesse conduzir o fiel à superstição ou à “aparência do mal”, além de poesias e canções não-sacras, sendo estas tidas como “instintos brutais ou prazer irracional”, sem falar no teatro, alvo por excelência das críticas religiosas que caracterizavam um comportamento “irracional, sem finalidade e por conseguinte não ascético, e que ainda por cima não serviam à glória de Deus mas tão somente à glória humana” (WEBER, 2005, p. 80)

Nessa busca ascética e racional pela glorificação divina é válido mencionar que Weber afirma que se pode medir o grau de racionalização de uma religião a partir de dois critérios, quais sejam: o grau de unidade sistemática que ela introduz na relação entre Deus e o mundo e suas demais relações éticas para com o mundo e pelo grau em que ela elimina a magia (SCHLUCHTER, 2014, p. 40)

Em Economia e Sociedade Weber afirma:

A criação de uma ética capitalista somente foi obra, ainda que não intencionada, do ascetismo intramundano, o qual abriu precisamente aos elementos mais poderosos e eticamente mais rigoristas o caminho à vida dos negócios e lhes apontava o êxito nessa área como fruto de uma condução da vida racional (WEBER, 1994, p. 391-392).

Após esse inicial contato com o que veio a ser a ascese intramundana, é preciso buscar um novo cenário, cujas origens remontam o final do século XX e o atual século XXI, o qual seja: o neopentecostalismo.

2.2 Neopentecostalismo

O neopentecostalismo não é um fenômeno exclusivo do Brasil mas recebeu em solo pátrio assim como em outros países tidos como subdesenvolvidos um enorme crescimento, apesar de suas origens não se darem nessas nações conforme verificar-se-á mais adiante.

Inicialmente é interessante que sejam analisados alguns dados religiosos da sociedade brasileira, para tanto e com base no artigo de Pierucci “Bye-Bye Brasil”[1] e de dados do IBGE trazidos pelo autor bem como outros coletados na referida base de dados é que se começa a tratar da questão ora abordada.

Conforme o artigo acima citado, o catolicismo vem decrescendo sempre mais no Brasil e isso não se deve apenas a uma pluralização crescente do campo religioso – deve-se também e principalmente ao crescimento vigoroso do protestantismo no maior país da “América católica”. No Brasil, as igrejas evangélicas saltaram de 13.189.282 fiéis em 1991 para 26.210.545 em 2000. Tamanho duplicado. E ao buscar-se dados ainda mais atualizados do que o do referido autor em seu artigo, chegamos ao número de 42.275.440 em 2010, conforme quadro colacionado abaixo:

Imagem 01

Figura 1 -Fonte: IBGE 2010, Censos Demográficos. 

Aclarando ainda mais a análise, diz Pierucci:

Entretanto, se o protestantismo cresce no agregado, a coisa muda de figura quando observamos cada ramo protestante em separado. Primeiro, porque assim fica claro que o protestantismo brasileiro deve esse seu dinamismo ao superdinamismo dos ramos pentecostais e neopentecostais (cf. Mariano, 1999). E segundo, porque assim se vê que alguns ramos, em vez de crescer, regridem. É o caso dos luteranos. Pode-se dizer que foi com a vinda dos imigrantes alemães no século XIX que o protestantismo entrou no Brasil de verdade, as a matter of fact. E entrou como luteranismo, tronco primordial da eclesialidade oriunda da Reforma. [...] O patrimônio étnico de que eram portadores confundia-se com sua pertença à eclesialidade luterana, fazendo-se ela vetor espontâneo de tradições comuns, de uma antiga língua comum, de uma mesma mentalidade, um mesmo ethos tradicional [...] o luteranismo brasileiro foi classificado pelos cientistas sociais como o melhor representante do chamado “protestantismo de imigração”, de resto uma espécie de protestantismo tradicionalista no sentido forte do termo.

Assim, até meados do século XX, o luteranismo era o maior dos ramos protestantes brasileiros denominados históricos fato este que vem se revertendo drasticamente e que nos dizeres de Pierucci demonstram: mais um lado do Brasil tradicional a dar mostras muito claras de uma incapacidade recém-instalada, e ao que parece invencível, de reprodução ampliada de si. (PIERUCCI, 2004, p. 7-8).

Por fim, conclui Pierucci:

Passos sólidos, foi o que pude dar, na rota da destradicionalização cultural do País. Mergulhos líquidos, valha-me a verve metaforizante de Zygmunt Bauman, nas águas inconstantes do pós-tradicional Estado-moderno, dora em diante vivido também em religião. (PIERUCCI, 2004, p. 11).

Dentro dos mergulhos líquidos experimentados por Pierucci, pode-se “pescar” o neopentecostalismo, movimento religioso cuja origem brasileira deu-se no Rio de Janeiro, através de denominações como a Igreja Universal do Reino de Deus (1977) – sua maior representante –, a Igreja Internacional da Graça de Deus (1980) e Cristo Vive (1986), conforme aponta Mariano (2004:123).

Neopentecostalismo pode ser definido da seguinte forma, segundo alguns autores abaixo colacionados:

O prefixo neo mostra-se apropriado para designá-la tanto por remeter à sua formação recente como ao caráter inovador do neopentecostalismo. Embora recente entre nós, o termo neopentecostal foi cunhado há vários anos nos EUA. Lá, na década de 1970, ele designou as dissidências pentecostais das Igrejas protestantes, movimento que posteriormente foi nomeado de carismático. Como deixou de ser empregado nas tipologias norte-americanas, não confunde nem atrapalha nossa tarefa de classificação. [...]

Nos meios acadêmicos, Ari Pedro Oro (1992: 7,9), antropólogo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, emprega o termo neopentecostalismo e o identifica à expressão “Pentecostalismo autônomo” (Mendonça fez o mesmo em 1992), cunhada por Bittencourt, para nomear as Igrejas formadas a partir da década de 1950, como Brasil para Cristo, Deus é Amor, Casa da Bênção, Universal do Reino de Deus, Internacional da Graça de Deus e Evangélica Pentecostal Cristã. Oro, porém, inclui a Igreja Quadrangular entre as “pentecostais tradicionais”. Também para José R. L. Jardilino (1994), anglicano e recém-doutor em Sociologia na PUC/SP, o neopentecostalismo “surge por volta dos anos 50” (Mariano, 1999, p. 33).

Por ser ainda recente, o neopentecostalismo carece de abordagens mais aprofundadas em vários aspectos, uma vez que pode ser categorizada como movimento religioso mas também social pelo campo das ciências sociais, uma vez que se expande em torno de uma figura carismática central (líder espiritual). O pesquisador Romeiro salienta, dessa forma, que,

[...] ao analisar os diferentes segmentos do neopentecostalismo, observamos que eles apresentam liberdade de crença e de pregação doutrinária. As Igrejas que o compõem agem de formas diferentes em todas as áreas. Na Igreja Nacional do Senhor Jesus Cristo, por exemplo, Valnice Milhomens promove e guarda o sábado, ação que a maioria das Igrejas neopentecostais rejeita. A prática de cair para trás num momento de oração é comum em muitos grupos, mas não é aceita na Igreja Universal do Reino de Deus. Nesta, apenas os maus espíritos derrubam as pessoas, por isso devem ser exorcizados. Ainda que algum grupo possa apresentar uma ou mais práticas de uma denominação, elas não são suficientes para classificá-lo como tal. Assim, o neopentecostalismo não pode ser considerado denominação, mas movimento (ROMEIRO, 2005, p. 48-49).

Para fins deste ensaio, o interesse reside na compreensão do que seja o “ethos do neopentecostalismo”. Para tanto, analisaremos algumas de suas práticas -, embora estas não sejam unânimes, conforme já comentado no parágrafo acima, mas são norteadores de uma expressiva parcela adepta de referida “prática de fé”.

Apesar das dificuldades já comentadas, é possível, ao analisar-se as abordagens de alguns pesquisadores do tema como Mendonça, Mariano, Freston, Romeiro e Campos, que a Igreja Universal do Reino de Deus simboliza este segmento e que especificamente após sua fundação este fenômeno pôde ser percebido no Brasil, não somente pelo “case” de sucesso empresarial-religioso que representa, mas porque, a partir dela e sob sua inspiração, inúmeros grupos religiosos surgem a cada dia, no Brasil e na América do Sul. Interessante nessa diapasão trazermos o  pensamento do bispo Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, segundo o pesquisador Silva-Junior:

O bispo acredita que a ruína do Cristianismo está na teologia, que para ele é o seu maior atrapalho. Para o autor, este fato é alicerçado através da valorização da experiência em detrimento da razão. A rigor, há uma tensão entre razão e emoção, no interior de toda religião, especialmente nas que estão fundamentadas numa autoridade carismática. Para o neopentecostalismo, usar a razão significa descrer da ação de Deus e do Espírito Santo. Parece muito importante para a doutrina neopentecostal excluir qualquer interação humana em assuntos relacionados à religião. Talvez a explicação do que chamaríamos de espiritualização do cotidiano, atribuindo somente a Deus as benesses da vida e ao homem, que é fruto do pecado, as desventuras (Silva-Junior, 2010, p. 54).

Esse desvencilhar da razão não se reflete em desapego ao materialismo, pois é tema frequente e importante para o movimento “a prosperidade material”. Pode-se, inclusive, considerar que um fator de grande atração ao movimento das camadas menos favorecidas economicamente seja pelo fato do neopentecostalismo ter como característica primordial motivar a promoção financeira. A Teologia da Prosperidade é classificada por Campos como

[...] um conjunto de crenças e afirmações, surgidas nos Estados Unidos que afirma ser legítimo ao crente buscar resultados, ter fortuna favorável, enriquecer, obter o favorecimento divino para a sua vida material ou simplesmente progredir. No Brasil, essa teologia está na base da pregação de várias denominações e seitas, tais como: Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Renascer em Cristo, Igreja Internacional da Graça de Deus, Comunidade Evangélica, Sara Nossa Terra e outras (Campos, 2008, p. 363)

Continuando a análise do pensamento do bispo Macedo, é preciso tocar no aspecto místico que ronda suas práticas, eivadas de sessões de exorcismo, os quais são muitas vezes televisionados e com “demônios a serem entrevistados” em rede nacional.

Essa relação dicotômica exposta na luta entre o bem e o mal, sendo os pastores da Igreja Universal e demais seguidores dessa profissão de fé, agentes de libertação, autorizados por Deus a usar desse poder para jogar fora do corpo das pessoas os demônios que, teoricamente, nelas atuam.

O último ponto, “A relação Deus-homem”, dá possibilidade de entender de forma ampla a linha de atuação de Edir Macedo e sua Igreja. Segundo sua análise, este tópico simboliza um contrato:

Por um lado, Deus prometeu, em Jo. 10,10 e no Sl. 23, textos bastante citados, uma vida em abundância. Por outro, em Ml 3,10, versículo básico, encontramos a obrigação que o homem, sem a menor falta, deve cumprir e pagar os dízimos. Macedo disse: “O dízimo foi instituído pelo Senhor, como espécie de imposto às suas criaturas” (Nos passos, p. 99). O pagamento do dízimo é o sinal da fidelidade do homem a Deus. De grande importância são as ofertas voluntárias, que são demonstrações de amor a Deus. Havendo cumprido esses requisitos, o homem está no direito de exigir de Deus o cumprimento de suas promessas. De outro modo: para receber algo de Deus é necessário arriscar alguma coisa, quanto maior o investimento, tanto maior será a vantagem. É o princípio da troca: eu te dou para que tu me dês também (Ruuth, 1985, p. 88).

Essa é sem dúvida uma das essências do pensamento neopentecostal, que mistura misticismo e materialismo e pode ser chamado de Teologia da Prosperidade e Retribuição, uma vez que em troca de sacrifícios financeiros a retribuição virá em “livramento do mal”, prosperidade material, a qual se reflete fatalmente em consumo.

Nas searas neopentecostais, ter é tão importante quanto ser e é frequente a apologia ao luxo por parte de Edir Macedo e outros televangelistas, os quais possuem patrimônios multimilionários, aviões particulares e mansões. Em 2014, por exemplo, o bispo Edir Macedo inaugurou uma réplica do “Templo de Salomão” na cidade de São Paulo e contou, inclusive, com a participação da atual presidente Dilma Rousseff e outras importantes autoridades dos mais diversos meios.

Demonstra-se assim que não apenas as camadas menos favorecidas, mas vários grupos tem engrossado as filas desses movimentos, seja por perceberem um potencial eleitorado – no caso de políticos, seja por perceberem um potencial grupo consumidor – empresários, seja por buscarem “milagres” que ocorrem com frequência diária e volumosa – para os desesperançados ou seja na busca de melhor padrão financeiro – no caso dos economicamente desfavorecidos.

Seja qual for o motivo, o fato é que o movimento tem aglutinado diversos personagens, elegido candidatos nas mais diversas esferas de atuação política, enriquecido suas lideranças e não pode ser ignorado como instrumento de inserção de transformações sociais.  O anexo deste ensaio contem, inclusive, algumas imagens recorrentes nas mais diversas mídias e que ilustram o já comentado acima.

3. A Ética do Ascetismo Intramundado e a “Ética” do Neopentecostalismo: encontros e desencontros.

Pode-se definir ethos como um conjunto de costumes e valores morais que formam a cultura de um determinado povo e que o dirige, não como norma, mas como dever moral e até mesmo religioso. Lastória (2001) entende como ethos “a regularidade própria aos fenômenos naturais [que] seja transposta para a dimensão dos costumes de uma determinada sociedade [...] a cultura promove a sua própria ordenação ao estabelecer normas e regras de conduta que devem ser observadas por cada um de seus membros”.

Assim como Weber percebeu no florescer do capitalismo ocidental uma sintonia entre uma determinada conduta religiosa e os interesses econômicos reinantes, pode-se perceber uma sintonia entre a atual fase do capitalismo – o qual passou da ênfase da “produção” para a ênfase do “consumo” e a sintonia com a conduta religiosa neopentecostal.

A impressão que se ousa ter surge em forma de indagação: Será que cada época produz a “teologia” ou o “ethos” que lhe convém? Ou esse próprio “ethos” influencia a formação de um determinado segmento social que acaba servindo de mola propulsora ao florescimento de um determinado modelo de produção econômica?

De posse de tal questionamento, nota-se que assim como Weber observou que a ascese intramundana permitia o alvorecer do capitalismo de produção, hoje intui-se que a “ética neopentecostal” relaciona-se intimamente com o que pode ser chamado de capitalismo de consumo.

Em situações como a mencionada acima, percebe-se desencontros e ao mesmo tempo, encontros, uma vez que cada tipo de “ethos” se adequa à efervescência social que a acompanha. Todavia, por ser um modelo ainda recente e carente de maiores estudos, talvez seja demasiado prematuro falar-se de um “ethos neopentecostal”, apesar da menção de tal expressão ao longo deste ensaio.

É pertinente observar que há uma sintonia entre ambas as condutas e o pensamento utilitarista. Desta maneira, o trabalho serve para o agrado de Deus, instrumento sinalizador de Sua graça e meio de se alcançar o êxito financeiro e social, uma vez que estão intimamente imbricadas as engrenagens que favorecem a espiritualidade e a vida material. É salutar observar que na “ética neopentecostal” a pobreza é vista como um mal a ser combatido e a riqueza como algo a ser perquirido.

Todavia, novamente é necessário o contraponto e observar-se que se na ascese intramundana retratada por Weber havia toda uma insegurança e desmistificação em relação à salvação, nos meios neopentecostais essa insegurança é facilmente substituída pela liquidez das crenças que tornam a salvação mais acessível, ainda que dentro de rituais próprios e que converge para a formação de pessoas que não buscam somente a salvação espiritual, mas a glória financeira, tornando-se muitas vezes verdadeiros exibicionistas e “narcisos neopentecostais” que consideram que sua crença tem poder de lhes fazer determinar vitórias, milagres e muitos ganhos financeiros. Assim, torna-se comum ver carros de luxo com adesivos em letras garrafais dizendo: “Foi Deus que me deu”, “Dirigido por mim, guiado por Deus” e etc..

É importante informar que a aquisição de carros de luxo, jatinhos particulares, roupas de grife e os mais variados bens é incentivada dentro da “ética neopentecostal”, pois consideram que tais bens de consumo sinalizam o favor de Deus sobre suas vidas. Postura esta extremamente contrária ao que vimos na ascese intramundana apontada em Weber.

A alienação de elementos culturais alheios ao que consideram a glorificação do divino é incentivada tanto no “ethos protestante” como no “ethos neopentecostal”, mas talvez com origens diferenciadas, pois no primeiro a razão ordenava a exclusão de tais elementos. Já no segundo, existe a mística de que esses elementos mundanos sejam carregados de mensagens obscuras e satânicas e que podem levar o fiel a se perder do caminho da salvação.

Considera-se como grande divisor de águas entre ambas “éticas” a questão mística, pois se com Weber aprendemos que o grau de racionalização da religião poderia ser medido, no neopentecostalismo busca-se o afastamento da razão, pois esta seria um impedimento ao “sobrenatural” agir de Deus.

Ao visitar-se mídias sociais diversas que tem o neopentecostalismo como sua base aliada ou inimiga, o que mais será possível presenciar serão rituais que podem lembrar desde as práticas espirituais da umbanda – com fiéis “rodando” no meio das igrejas como se estivessem em um terreiro; kardecismo – pastores vestidos de branco, fazendo orações e afastando “maus espíritos”; catolicismo – no qual a “infaliabilidade papal” é substituída pela “infaliabilidade pastoral” e que direciona milhares de seguidores a determinado rito de fé e prática.

Considerações Finais

Muito ainda poderia ser dito a respeito da ética presente na “ascese intramundana” estudada por Weber e a ética presente no neopentecostalismo.

Conforme já exaustivamente mencionado, a seara neopentecostal é um fenômeno recente e que carece de mais estudos e esclarecimentos, mas que tem se infiltrado e engrossado fileiras nos mais diversos setores da sociedade brasileira, possuindo um visível poder econômico e cujas influências sociais ainda carecem de mais observações e estudos.

Assim, repete-se a impressão já exarada em forma de indagação: Será que cada época produz a “teologia” ou o “ethos” que lhe convém? Ou esse próprio “ethos” influencia a formação de um determinado segmento social que acaba servindo de mola propulsora ao florescimento de um determinado modelo de produção econômica?

Por fim, ressoa a pergunta: “- Com que ética eu vou?”

Talvez com nenhuma, talvez apenas cantando os versos que iniciaram esse ensaio: “Se eu sou algo incompreensível, meu Deus é mais.”


Notas e Referências:

[1] PIERUCCI, A. Flávio. “Bye bye, Brasil” – O declínio das religiões tradicionais no Censo 2000. ESTUDOS AVANÇADOS 18 (52), 2004.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001.

CAMPOS, Leonildo Silveira. Neopentecostalismo. In: BORTOLLETO, Fernando (org.) Dicionário brasileiro de teologia. São Paulo: Aste, 2008.

LASTÓRIA, Luiz A. Calmon Nabuco. Ethos sem ética: a perspectiva de T. W. Adorno e M. Horkheimer. Revista Educação & Sociedade, Campinas, v. 22, n. 76, 2001.

MARIANO, Ricardo. Expansão pentecostal no Brasil: o caso da igreja universal. Disponível em: Estudos Avançados. 18 (52), 2004.

PIERUCCI, A. Flávio. “Bye bye, Brasil” – O declínio das religiões tradicionais no Censo 2000. ESTUDOS AVANÇADOS 18 (52), 2004.

MARIANO, Ricardo. Neopentecostais. Sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 1999.

PIERUCCI, A. Flávio. O desencantamento do mundo: todos os passos do conceito em Max Weber. São Paulo: USP. Editora 34. 2003 Rio de Janeiro: Editora UFRJ. 2014.

ROMEIRO, Paulo. Decepcionados com a Graça; esperanças e frustrações no Brasil neopentecostal. São Paulo: Mundo Cristão, 2005.

RUUTH, Anders. Iglesia Universal del Reino de Dios. Estudos de Religião, São Bernardo do Campo: Umesp/Pós-Graduação em Ciências da Religião, v. 1, n. 1, mar. 1985.

SCHLUCHTER, Wolfgang. O Desencantamento do mundo: seis estudos sobre Max Weber.

SILVA-JÚNIOR, Nilson. O Neopentecostalismo como fator de crise pastoral. São Bernardo do Campo: Umesp, 2010. Dissertação de mestrado.

WEBER, Max. A Ética protestante e o espírito do capitalismo. 2ª Ed. São Paulo: Pioneira Thompson, 2005.


Roberta Lima

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Roberta Oliveira Lima é Advogada. Doutoranda em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em Gestão de Políticas Públicas (UNIVALI). Professora das disciplinas de Direito Ambiental, Sociologia Jurídica e Antropologia Jurídica nas Faculdades Sinergia e Avantis.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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