COISA JULGADA – 1ª PARTE: DISTINÇÃO ENTRE PRECLUSÃO E COISA JULGADA

17/12/2019

 

1. Breve introdução

Coisa julgada continua a ser um tema dos mais complexos da processualística. Isto se deve não só ao tema em si mas também a outros que lhe são correlatados, como a eficácia da intervenção, prevista no art. 123, CPC, e a imutabilidade fixada no § 6° do art. 304, CPC, a quem, noutro texto, denominei de imutabilidade das eficácias antecipadas. Nesse contexto, é de frisar que o CPC vigente aumentou essa complexidade.

Por este e por outros motivos, vários trabalhos vêm sendo publicados. Menciono, aqui, sem necessariamente desmerecer outros, os de autoria de Antonio do Passo Cabral, Alexandre Senra, Renan Faria Thamay, Luiz Guillherme Marinoni, Marcos Cavalcanti e Ricardo Alexandre.

Dentro do viés informal dos textos publicados aqui na Coluna, tentarei dar alguma contribuição para essa temática.

Daí a série que ora se inicia. Os textos sempre terão por base um problema mais específico.

Neste primeiro, demonstrei por que coisa julgada e preclusão, conquanto, de algum modo, se relacionem, não podem ser enquadradas num mesmo gênero.

 

2. Eficácias jurídicas positivas e negativas

Tanto coisa julgada quanto preclusão são efeitos jurídicos: a primeira, por metonímia; a segunda, propriamente. O viés eficacial da coisa julgada será demonstrado num texto próprio.

Nesse sentido, sabe-se que as diversas eficácias possíveis de um fato jurídico podem operar das formas mais distintas. Dentre outros, há fatos jurídicos que geram algo (eficácia positiva) e outros que retiram algo (eficácia negativa).

Quando o fato jurídico tem eficácia negativa, esta opera de plano: produz seu efeito e se esvai. É o que se dá nas preclusões e noutras caducidades: ocorrido o fato jurídico preclusivo, algo (como um direito ou um poder), no mundo jurídico, é desconstituído. Não há, assim, prolongamento no tempo da eficácia jurídica negativa.

Já numa eficácia de tipo positivo, há, no mínimo, a possibilidade lógica de ela (per)durar no tempo. Por um contrato de mútuo, o mutuante adquire um crédito (decorrente de uma eficácia positiva). Este último, até ser desconstituído por algum fato juridicamente relevante (como o pagamento), prossegue no tempo.

A coisa julgada situa-se no primeiro tipo. Isso porque sua eficácia é atributiva a determinados sujeitos processuais (como as partes, um terceiro interessado e, até mesmo, o Estado-juiz) de situações jurídicas que se espraiam no tempo. Estas, por ser vistas oportunamente, baseiam-se na indiscutibilidade. Não é por outro motivo que se entende haver interesse de agir na obtenção da coisa julgada: eis o fundamento para o beneficiário de título executivo extrajudicial, deixando de lado o seu direito à via executiva direta, ir buscar a formação do título judicial, por intermédio de uma sentença condenatória. Isto, que já era plenamente dedutível do sistema, tal como defendo de há muito, encontra-se, no âmbito do CPC vigente, em previsão expressa (art. 785, CPC). Ora, só é buscável judicialmente aquilo que possa agregar algo a quem o busca.     

 

3. Coisa julgada e preclusão: uma distinção necessária

É corrente, especialmente nos últimos tempos, enquadrar a coisa julgada como um tipo de preclusão, uma “preclusão máxima” dir-se-ia. Não me parece, porém, correto tal entendimento. Preclusão é perda. Mais especificamente, perda de uma situação jurídica. Em regra, de um direito. Por exemplo, transcorrido o prazo para a interposição do recurso, perde-se o direito de recorrer.

A preclusão, portanto, decorre de uma eficácia jurídica negativa. Ou seja, ao invés de agregar algo a alguém, retira-lho: quem tinha direito de contestar, perde-o pelo transcurso do prazo; quem tinha direito de recorrer, perde-o por ter cumprido o comando decisório etc.

Diante disso, nada pode ter a ver com o conceito de coisa julgada, pois, como visto, esta gera algo para alguém. Refere-se, como explicado, a uma eficácia jurídica positiva. Esse algo é a indiscutibilidade na forma descrita e os efeitos que dela advém. Numa linguagem mais afeita à da processualística (José Carlos Barbosa Moreira, acima de todos), a coisa julgada é situação jurídica nova.

Logo, é fácil entender que preclusão e coisa julgada estão em módulos distintos. Devendo-se, por isso, analisar cada uma segundo bases analíticas próprias.

Ademais, é possível ocorrer uma sem que ocorra a outra. Por exemplo, decisões irrecorríveis, visto que não há algo a ser extinto, não dão causa à preclusão, mas geram, e de imediato, coisa julgada. Já as decisões dadas a título provisório (como as antecipatórias da tutela) dão azo à preclusão, já que, com o transcurso do prazo, se perde o direito de delas agravar; não são aptas, contudo, a formar coisa julgada, uma vez que são plenamente discutíveis, para ser modificadas ou revogadas, a qualquer tempo (art. 296, CPC).

A coisa julgada, todavia, pode ter a preclusão como seu pressuposto, caso da coisa julgada formada pela preclusão do poder de recorrer de decisões dadas a título definitivo.

Ao menos em duas situações, porém, a distinção acima precisa ser mais bem fundamentada. A primeira se dá na chamada preclusão das questões decididas, prevista no art. 507, CPC; a segunda, na eficácia preclusiva da coisa julgada (art. 508, CPC).

 

3.1. O problema da preclusão das questões decididas

O texto do art. 507, CPC, diz que a parte não pode discutir em juízo questões decididas a cujo respeito se operou a preclusão.

O dispositivo, entretanto, só tem relevância para a hipótese de, diante de uma decisão dada a título definitivo, a parte não poder (re)discutir questões acobertadas pela coisa julgada, quando esta for causada pela preclusão do poder de impugnar a decisão.

Assim, se se transcorreu o prazo para a interposição do recurso contra uma decisão parcial (nos moldes do art. 356, CPC), a rediscussão é vedada, primeiramente porque a parte perdeu o direito ao meio procedimental hábil à rediscussão, mas, acima de tudo, porque, por ser a título definitivo, a decisão é apta a formar coisa julgada.

Deve-se, com isso, entender por decisão preclusa[1] como aquela que, recorrível, transita em julgado em virtude da perda do poder de recorrer (preclusão como pressuposto da coisa julgada). 

É de se (re)frisar que, sendo a decisão dada a título provisório, a simples preclusão do poder de dela recorrer não pode ocasionar a incidência do art. 507, CPC, por insuficiência na concreção do suporte fático. Por outro lado, o dispositivo não tem sentido para as decisões irrecorríveis, pois nelas, (até) por não haver nenhum tipo de preclusão, a coisa julgada forma-se automaticamente.   

 

3.1.1. Uma situação que, embora relevantíssima, não está (expressamente) prevista no texto em comento

O mesmo art. 507 veda à parte rediscutir questões. Não menciona, porém, a hipótese de o juiz não poder (re)analisar as decisões que proferiu. Não obstante a lacuna, por analogia é possível a construção da regra.

A questão gira em torno da preclusão judicial, mais especificamente a de tipo consumativo. Se dadas a título definitivo, o juiz não pode, salvo nas hipóteses dos incisos do art. 494, CPC, rever as decisões que proferiu, tanto para revoga-las como até mesmo para revogá-las. Tais decisões, embora não aptas, por si sós, a transitar em julgado, geram esse tipo de preclusão para o juiz, conquanto, se recorríveis, não gerem preclusão para parte. É o caso, e. g., da decisão que indefere a produção de uma prova pericial. Isso também se aplica às decisões (definitivas) de admissibilidade proferidas no curso do processo, como o famoso “despacho saneador”.

 

3.2. A eficácia preclusiva da coisa julgada

De outro modo, a coisa julgada pode funcionar como base de preclusões. Ou seja, os diversos fatos jurídicos referentes à coisa julgada podem ter, em sua eficácia (e por ela), a ocorrência de preclusões. Eis a chamada eficácia preclusiva da coisa julgada, prevista no art. 508, CPC.

A (imensa) problematicidade deste dispositivo será analisada em outro momento. De logo, porém, reproduzo aquilo que se tem por consolidado: a ocorrência da coisa julgada desconstitui todas as situações jurídicas que as partes teriam, no caso do autor, para fundamentar (o que, a meu ver, não inclui outras causas de pedir deduzíveis), ou, em se tratando do réu, se contrapor ao pedido formulado. Nessas situações jurídicas se incluem desde o poder de alegar determinado fato (como ocorrência do pagamento de uma dívida), até exceções substanciais (como a de contrato não cumprido) e direitos potestativos (como o de compensar).  

 

Notas e Referências

[1] Em rigor, nenhuma decisão é preclusa. Preclusão não é uma qualidade de decisões, nem de qualquer fato jurídico; é efeito jurídico consistente na extinção de algo. O que uma decisão pode ser é indiscutível. Basta isto para se poder identificar que, ontologicamente, coisa julgada e preclusão não pertencem ao mesmo gênero, pois, se esta não é uma qualidade, aquela, visto ser indiscutibilidade, consiste exatamente numa qualidade decisional.

 

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