Ciência, Filosofia Moral e Direito

09/06/2015

 Por Atahualpa Fernandez - 09/06/2015

"Una filosofía al margen de la ciencia es la cosa más aburrida y menos sexy que uno pueda imaginar"

J. Mosterín

Que as ciências sociais têm vivido os últimos decênios de costas aos espetaculares logros dos recentes estudos procedentes das ciências que buscam entender em que consiste nossa natureza como espécie é algo tão óbvio, que somente a prova do contrário resultaria relevante. Ainda surpreende a muitos que alguém pretenda estabelecer algum vínculo forte entre as ciências sociais normativas, a psicologia evolucionista, a antropologia e biologia evolutiva, a primatologia e a neurociência, sendo tão comum como é a aceitação de que o  social  e o natural  percorrem por caminhos de desencontro, mais ainda se cabe em uma era  de perversa e demencial (super) especialização que aparentemente torna impossível não já salvar o hiato entre âmbitos tão distintos senão, inclusive, a tentativa de evitar a crescente compartimentalização em ilhas autárquicas de disciplinas tradicionalmente unificadas.

Não é menor a influência que exerceu sobre esta concepção separatista da ciência o auge insólito do chamado pós-modernismo e do construtivismo social. Hoje em dia, a defesa teórica de que aquilo que é o conhecimento – e nomeadamente o conhecimento propriamente científico – é uma representação que não provém diretamente da realidade, nem corresponde necessariamente com esta, senão que está socialmente construído, se atreveu a transpassar os âmbitos da sociologia, do direito e da psicologia  para adentrar-se sem cuidados, e com não pouca arrogância,  nos da física, da química e da biologia.

Assim, não só a autoridade, a segurança, a hermenêutica, a enfermidade, o incesto, a desigualdade social, a pobreza ou a liberdade estão socialmente construídos, senão que também o são a realidade, as emoções, os fatos, o gênero, o conhecimento, a natureza e a própria natureza humana. O que não deveria ser mais que propostas marginais, ao menos por sua inconsistência lógica,  transformou-se em um mainstream do pensamento (pseudo) científico atual.

Nada obstante, a extraordinária proliferação de investigações e publicações que nas duas últimas décadas dirigem seus interesses a reflexionar sobre as relações entre a ciência cognitiva e a sociologia, a ciência cognitiva e a filosofia social normativa, a ciência cognitiva e a evolução cultural, ou a neurociência e a biologia evolutiva com todas elas,  tem posto em um sério aperto a defesa teórica de uma inexorável fragmentação do território da Ciência, assim como da delirante ideia de que não existe uma realidade independente de causas sociais, isto é, que toda ela está socialmente construída.

Desgraçadamente, boa parte da filosofia moral (e jurídica) contemporânea, por muito venerada que seja no âmbito acadêmico, continua desinteressada em adquirir uma compreensão mais profunda do por que os seres humanos são seres sociais e morais e do que nos predispõe a abordar os problemas de nossos vínculos comunitários, quer dizer, insiste em rejeitar qualquer aproximação científica com o naturalismo para entender a base da moralidade humana (P. Churchland). A maioria dos filósofos permanece crítica e hostil em relação às evidências que procedem do estudo da natureza humana, pese a que, de maneira óbvia, os resultados obtidos supõem uma nova fonte de conhecimento relacionada de uma forma muito direta com as questões que sempre interessaram ao mundo da filosofia desde Platão e Aristóteles a John Rawls e Noam Chomsky.

Parece que há uma deliberada ignorância acerca do fato de que, nos últimos anos, a moralidade se transformou em uma zona de convergência para diversos pesquisadores no âmbito das Ciências e Humanidades. A quantidade de investigação experimental destinada a entender o comportamento moral se incrementou rapidamente, ao igual que a diversidade de métodos empregados. Por primeira vez, os avanços dos estudos científicos sobre a origem e o valor das normas morais nas sociedades humanas oferecem propostas capazes de situar a reflexão humanística e científico-social sobre uma concepção da natureza humana como objeto de investigação empírico-científica e não mais fundada ou construída a partir da mera especulação abstração metafísica.

Desde um ponto de vista científico, este (ainda tímido) câmbio de perspectiva implica que para compreender os fundamentos da moralidade e do direito é necessário dilucidar em que consiste a natureza do ser humano: quem somos, o que nos motiva, por que nos comportamos da forma como o fazemos, por que desenvolvemos as estruturas sociais em que nos movemos, o que significa para o animal humano “atuar como agente moral”, de onde vem nossa predisposição natural para produzir juízos morais e a forte inclinação para construir sistemas normativos sociais e legais.

Particularmente com relação ao direito, embora não exista a menor dúvida acerca do fato de que este pode ser apreciado de diferentes formas, é provável que no último degrau da aceitação dos estudos científicos da natureza humana se encontrem os juristas. De fato, uma das vias possíveis para analisar o fenômeno jurídico consiste em analisar o objeto, a função e o propósito do direito moderno sob uma perspectiva naturalista, convertendo em viável a proposta (e inclusive a exigência) de novos critérios para que os setores do conhecimento no direito sejam revisados à luz dos estudos e investigações que continuamente emergem das ciências que tratam de dar uma explicação mais empírica, diligente e robusta acerca da natureza humana. Por esta via, e somente por esta, a pergunta sobre a origem, o sentido e a finalidade da justiça e do direito conduz inexoravelmente à busca dos fundamentos naturais da conduta moral humana.

Que dúvida cabe que o sujeito moral kantiano já deixou seu lugar ao ser humano produto da evolução por seleção natural? Não somos seres exclusivamente morais ou portadores de uma racionalidade absoluta que se nos impõe e converte nossas vidas e agrupações em realização de um fim predeterminado, senão uma espécie que descobriu que determinados comportamentos e vínculos sociais são necessários para resolver problemas adaptativos relativos à sobrevivência, ao êxito reprodutivo e à vida em comunidade, e aceitou a necessidade de assegurá-los e controlá-los mediante um conjunto de normas e regras de conduta. Longe de ser um processo descendente em que formulamos os princípios e valores e logo os impomos à conduta humana, nossos valores e imperativos morais/jurídicos emergem de um processo ascendente, uma parte da história natural da espécie humana e fruto de nossas interações sociais diárias.

É certo que os juristas ainda não conseguiram superar o grande problema da tradição jurídica filosófica e da ciência do direito: pensar como se os seres humanos somente tivessem cultura (uma variedade significativa), nenhuma história evolutiva ou cérebro. Ainda há uma forma dominante de pensar que produz resistência, inclusive fobia ou rechaço, ante o fato de que o ser humano é uma espécie biológica. Daí que no âmbito do jurídico quase sempre se relega a um segundo plano – ou simplesmente se ignora - a devida atenção à natureza humana e, muito especialmente, ao fato de que para compreender o que somos e como atuamos, devemos compreender o cérebro e seu funcionamento. (R. Llinás & P. S. Churchland)

Mas não somente isso. Quando abordam o estudo do comportamento humano e do direito, os juristas têm o costume de sustentar a presença de diversos tipos de explicações – como as sociológicas, antropológicas, normativas ou axiológicas – limitadas e ajustadas às perspectivas de cada uma das respectivas disciplinas e áreas de conhecimento; quer dizer, sem sequer considerar a possibilidade de que exista somente uma classe de explicação para a compreensão do fenômeno jurídico e de sua projeção fenomenológica. O problema é que tal explicação unitária de base existe, sempre e quando se parta de um cenário mais crível da emergência do direito e que esteja devidamente sustentado em um modelo darwiniano sensato sobre a natureza humana. (M. Rose)

Por fortuna, alguns juristas começam a entender que lhes convêm inteirar-se do que oferecem os conhecimentos científicos acerca da natureza humana. Pouco a pouco, a filosofia jurídica começa a indagar sobre o sentido, a validez e a função do direito desde uma perspectiva antropológica e naturalista em relação aos dados existenciais do ser do homem, como os problemas do livre-arbítrio, da racionalidade, da responsabilidade, do bem e do mal, da alteridade, da igualdade, etc...etc. Já há indícios de alguma disposição para estabelecer um debate entre as ciências que se ocupam da natureza e da conduta humana e a tradição dos filósofos e teóricos do direito, no sentido de admitir que a partir da aceitação dos melhores dados disponíveis acerca de como são os seres humanos será possível reconstruir, sobre bases empiricamente mais sólidas e seguras, os fundamentos do direito e da justiça.

Destaca-se cada vez mais a consciência de que como o direito e a ética carecem das bases de conhecimento verificável acerca da condição humana - indispensável para obter predições de causa e efeito e juízos justos baseados nelas -, é necessário, para compor o conteúdo e a função do direito e da justiça, tratar de descobrir como podemos fazê-lo a partir do estabelecimento de vínculos com a natureza humana que, de forma direta ou indireta, condiciona e limita nossa conduta, nossos juízos morais e os vínculos sociais relacionais que estabelecemos.

Embora não haja uma resposta simples à pergunta de se a moralidade, o direito e a justiça são um fenômeno cultural ou um fenômeno biológico, o certo é que a importância da mútua relação entre evolução biológica e a emergência de uma conduta moral e jurídica mais complexa, nos momentos em que a espécie humana estava desenvolvendo suas capacidades cognitivas e a linguagem articulada, parece estar fora de toda dúvida razoável. O processo evolutivo proporcionou ao ser humano a habilidade e os requisitos para desenvolver uma moralidade (que por sua vez deu origem a juridicidade), assim como um conjunto de necessidades, de emoções e de desejos básicos que, com o passo do tempo e graças a maleabilidade do cérebro humano, a epigenética e o papel regulador que jogam as experiências na conectividade sináptica, deram lugar a nossa atual e aparentemente mais ampla riqueza moral e jurídico-normativa.

Este parece ser o ponto fundamental a partir do qual já não mais parece razoável tentar dissimular ou negar a necessidade de se estabelecer um diálogo interdisciplinar que nos permita sair dos limites de nossas próprias disciplinas para aprender das ciências vizinhas, ainda que assumindo os riscos e as dificuldades teóricas e metodológicas de qualquer programa de investigação integrador.

A importância da pergunta pela condição humana é um problema fundamental da Filosofia em general e, especialmente, da Filosofia Jurídica. Hoje, mais que nunca, se impõe a convicção de que nenhuma filosofia ou teoria social normativa, por pouco séria que seja, pode permanecer distanciada ou isolada fingindo desconhecer os resultados dos descobrimentos procedentes dos novos campos de investigação científica que trabalham para estender uma ponte entre o natural e o social, o biológico e o cultural, o inato e o adquirido, em forma de uma explicação científica da mente, do cérebro e da conduta humana. Nenhum filósofo ou teórico do direito consciente das implicações práticas que sua atividade provoca deveria desconsiderar esta emergente e inovadora proposta de estabelecer determinadas implicações jurídicas a partir de uma compreensão realista da natureza humana.

Isto não significa, sobra dizer, nenhum intento de substituir a condição social humana por sua condição biológica, senão, e tão somente, admitir que o direito ainda não teve sequer um êxito relativo como ciência e que segue à deriva do verdadeiro conhecimento científico, vagando «por una selva oscura» com sua enorme massa de observações e construções mal digeridas, com um espantosamente imponente corpo de parafernália filosófica barroca e com um superlativamente avultado número de teorias de nível médio entrelaçadas que se expressam em léxicos (técnicos ou não) delirantemente babélicos. E quanto mais tempo nos resistamos a aceitar que isto é certo, mais difícil será (re) construir um direito que funcione para os seres humanos e mais tenderá a converter-se em um mito continuo de justiça, normas e postulados separado da realidade e corrompido em uma ilusão.


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España


Imagem Ilustrativa do Post: A Touch of Science // Foto de: Mars P. // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/mars_p/4257968097/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


 

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