Cidadão Comum Refém  

13/04/2021

Coluna Justa Medida

Os cenários são tão incríveis quanto corriqueiros. De repente, acaba a energia, e o trabalho vai por água abaixo. É o que basta para que a liderança faça comentários que seriam piadas se não fossem incrivelmente desagradáveis. Cabelo de um, cinto de outro, rosto suado de alguém ali no fundo. E de repente a liderança do setor faz cara feia e cruza o braço. Por quê vocês não estão rindo? Reclamar não é “condizente com a atitude de um bom colaborador”, não é mesmo?

Todo mundo já ganhou um prêmio “engraçado” na festa de fim de ano. Às vezes parece que o ambiente de trabalho é o The Voice das piadas do pavê, e você foi colocado no meio do concurso sem assinar contrato com a Globo. Todo mundo ri de você; a graça, você procura, e nunca acha.

É um ambiente ocupado. Não há tempo para nada; e dar tempo para si é algo visto por todos. Talvez usar fralda seja melhor que aguentar os julgamentos na caminhada para o banheiro, no centro do escritório. E pensando no eco do cubículo, essa pode ser a única opção para fugir das piadinhas; pelo menos desta vez você não trouxe a água de casa, e como não tem bebedouro no local, ao menos não precisa pensar nisso.

O RH atualizou o dresscode. Agora todos usarão uniformes; pelo menos, você não precisa mais usar roupas justas. Mas agora, as mulheres devem usar saias. O ar condicionado está estacionado na Sibéria, mas saia e camiseta é o dresscode. As unhas e maquiagem, padronizadas, serão fiscalizadas diariamente. Os sapatos devem ter no mínimo 7 cm de salto. E você vai ter de suportar tudo isso, mesmo com o ligamento rompido. Agora você precisa acordar 3 horas mais cedo; o cabelo tem que estar liso. “Adequado para um profissional sério”, disse o colega ao lado, que sempre olha feio para sua cabeça.

E o uniforme agora precisa ser vigiado. O ideal é colar a camiseta na sua mão com Super Bonder. A equipe é fã de pegadinhas, e se tem algo que você não quer, é encontrar mais uma mensagem sobre a sua pessoa escrita no meio da camiseta - e ainda ter o salário descontado por isso. Porque a chefia acredita que você quis declarar em camiseta que seu cabelo é feito de palha de aço.

Enquanto isso, a carga de trabalho aumenta; sua lista de tarefas sempre parece mais longa e mais impossível que a do colega, e a sensação de que o setor cai cada vez mais na sua cabeça aumenta a cada dia. A equipe de segurança acredita que o andar é mal assombrado; você vive lá nas madrugadas, cumprindo longas horas pós expediente, que nunca se refletem no holerite.

Mais um dia se passa. Agora, o feno rola sem parar na sua caixa de tarefas. Sua agenda está vazia há semanas. Ou meses; faz tanto tempo que você bate o ponto para não trabalhar que nem sabe mais em que ano você está. Não há uma razão; a chefia sempre sorri, e continua andando. Ninguém mais nota sua existência. E todos os dias, lá está você, na sua estação de trabalho, esperando o expediente encerrar.

Estas – e outras, similares em teor e intento – são cenas comuns em todos os setores produtivos. O assédio moral é um dos maiores e mais antigos problemas do ambiente de trabalho, e tem destaque justamente pela repercussão na saúde do trabalhador, e na toxicidade do ambiente de trabalho como um todo. Num cenário de precarização das relações de trabalho, condutas como estas ficam cada vez mais agressivas.

O assédio moral é a exposição dos trabalhadores a situações humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas durante a jornada e no exercício das funções, desestabilizando a relação da vítima com o ambiente de trabalho e forçando a desistência do emprego. Parece fácil, correto? Não é.

Um mito bastante disseminado é de que somente a chefia pode praticar assédio moral. Isto não procede. O assédio é inserido na dinâmica organizacional da empresa; todos são adeptos. Pode ser verificado de forma horizontalizada, entre os colegas de trabalho. É violência simbólica e psicológica pura, desenhada para reforçar, na cadeia produtiva, o padrão universal de normalidade. Não se trata de um comportamento individual, mas de um conjunto coletivamente aplicado de gestos, palavras e condutas, costuradas na dinâmica organizacional. É sutil, entre sorrisos e gentilezas. Como a onça caçando no cerrado; só sabemos o que ocorre quando o bote está dado.

Os estereótipos de gênero, raça e sexualidade tornam pessoas negras, indígenas, não-brancas, mulheres e a população LGBTQIA+ mais vulneráveis ao assédio moral, prática que deriva das violências simbólicas tratadas por Bordieu. O racismo recreativo, a misoginia e a homotransfobia são instrumentalizados pela violência corporativa. E por isso, a cadeia de comportamentos identificada como assédio moral é bem parecida com a cadeia de relacionamento abusivo, usando elementos como o isolamento, o microgerenciamento excessivo e a desvalorização do trabalhador.

A invasão de privacidade também é amplamente institucionalizada. Afinal, o que é o dresscode, senão uma lista de insights não solicitados sobre vida, aparência e atributos do trabalhador, distorcendo sua aplicabilidade para o trabalho e pressionando a adaptação?

A mulher negra não precisa alisar os cabelos para estar adequada a uma vaga de trabalho. Pela mesma razão, o homem negro não precisa cortar os cabelos, a mulher trans não precisa  ser forçada a padrões masculinos, a homem trans não precisa ser forçado a padrões femininos, a mulher não precisa ser hipersexualizada, pessoas muçulmanas não devem ser forçadas a abandonar vestes e ritos - pessoas judaicas não o são.

As culturas organizacionais devem se atentar às violências sistemáticas que impingem em sua força de trabalho para obter esta imagem padronizada, de funcionários modelos masculinos, brancos, atléticos e jovens, em detrimento da diversidade que nos cerca.

Cumpre ressaltar que há uma certa admiração por ambientes de trabalho tóxicos, glorificados em programas de TV como House M.D. e filmes como O Diabo Veste Prada. Há conexão social com estas figuras opressoras, e uma naturalização de suas condutas, algo que pode ser facilmente explicado pela dinâmica histórica de violências simbólicas na qual se insere o Brasil. É a regra da terra, desde 1500; aqui só se produz com violência. E ver esta violência acolhida na TV é, para muitos, signo e símbolo de sua positividade, para desespero do trabalhador, cada vez mais violado, violentado e precarizado.

Quanto o trabalhador não é respeitado, o consumidor também não é respeitado. A cultura organizacional que naturaliza a violência e a opressão deixa de reconhecer o elemento humano, e com isso, cessa sua função social, enxergando o inimigo em tudo que a ela não apetece; é assim que corporações se tornam ameaças à sociedade, quando estão tão removidas da Humanidade que se sentem autorizadas a espancá-la até a morte.

 

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