O Brasil tem um encontro consigo mesmo jamais realizado. Uma parte da população está fora da que conta, ou que se conta a si mesma. Os pobres do interior, os moradores das franjas das pequenas e médias cidades e os inúmeros favelados que o IBGE calcula não valem, não contam.
Não se trata de esquerdismo. É uma constatação econômica. Essas pessoas são deixadas em estado tal que nem sequer podem contribuir com o crescimento do País. Manter a miséria dos miseráveis é um erro nosso que é feito perpetuar-se. Uma opinião ideologicamente insuspeita sobre o assunto, pode buscá-la no FMI:
“Se a fatia de renda dos 20% que estão no topo aumenta 1%, o crescimento do PIB fica 0,08% menor nos cinco anos seguintes, sugerindo que os benefícios não chegam aos mais pobres. Já um aumento semelhante na parcela do rendimento dos 20% mais pobres está associado a um avanço 0,38% maior” Sérgio Lamucci, Valor, 150615.
Não crescendo o PIB, estamos sempre às voltas com “contigenciamentos’’, com urgências de restauração da economia, com redução de (acanhadas) políticas sociais. É o que acontece no momento: com as devidas desculpas, a presidenta “mãe dos pobres” faz o de sempre: “economiza para depois crescer”.
Aí, vem-lhe o desgaste de popularidade. A isso se somam outros problemas: seu governo é associado a corrupção: membros do seu staff e do de seu antecessor (ambos petistas) estão na cadeia. Por fim, ela mesma, a presidenta da faxina moral, enrola-se a si própria com impropriedades de contabilidade pública.
Então, paramos a administração pública para fazer guerra por mídias. Os governistas protestavam por seu governo ladrão ser acusado em “mão única”. Queriam denúncia contra a oposição: algo como “roubamos, mas vocês roubaram também”, ou roubar é normal, pois, diz a presidenta, “a corrupção é uma senhora conhecida nossa”.
Bem, não houve provas contra a oposição, mas encurralaram o sujeito que pode instaurar um processo de impeachment contra a presidenta. Explicitaram o presidente da Câmara: contas, carros, contatos impróprio. Suponho que nisso haja roubo. Mas isso cheira a acordo geral. E o que importa fica novamente postergado.
A meu ver, uma coisa é precedente sobre todas as demais: a composição do Brasil com ele mesmo: inclusão social. Senão, como pedir que os ausentes do PIB se incluam nas normas legais? Como pedir que os barrados na porta da festança do Brasil se comportem, ou sejam legais nos dois sentidos da palavra?
Há uma letra: Charles, Anjo 45, Jorge Ben Jor, 1969. Transcrevo alguns versos: “Como vão as coisas Charles? \ Charles, Anjo 45 \ Protetor dos fracos \ E dos oprimidos \ Robin Hood dos morros \ Rei da malandragem \ ... \ Só porque um dia \ Charles marcou bobeira \ Foi sem querer tirar férias \ Numa colônia penal.”
E que acontece na sua ausência? “Então os malandros otários \ Deitaram na sopa \ E uma tremenda bagunça \ O nosso morro virou \ Pois o morro que era do céu \ Sem o nosso Charles \ Um inferno virou \ Mas Deus é justo \ E verdadeiro \ E antes de acabar as férias \ Nosso Charles vai voltar.”
E como será recebido? “Paz e alegria geral \ Todo morro vai sambar \ Antecipando o carnaval \ Vai ter batucada \ Uma missa em ação de graças \ Vai ter feijoada \ Whisky com cerveja \ ... \ Muita queima de fogos \ Saraivada de balas \ ... \ Pra quando nosso Charles voltar \ E o povo inteiro feliz \ Assim vai cantar \ Oba, oba, oba Charles.”
A canção antecipava fatos. JB, 18ago87: “Com a prisão de Dênis teria se criado, na favela, um vácuo que redundou na volta de assaltos, estupros, insegurança”. Veja, 08jan86 (editado): “Escadinha pode festejar sua nova vitória. Explosões de euforia pela volta do traficante, um dos marginais Robin Hood das favelas cariocas”.
As notícias novas somadas às velhas mostram a demora de uma situação moral e econômica explosiva. Os pobres estão insubmissos. Os governos salvadores da pátria roubaram até o próprio discurso de salvação do Brasil. Ainda bem que Charles, Anjo 45, herói do povo, controla o pavio.
Imagem Ilustrativa do Post: El Ángel Caído (Ricardo Bellver) MRABASF 03 // Foto de: Luis García // Sem alterações
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