Cenários de risco e prevenção de violações de direitos humanos - Por Fernanda Frizzo Bragato

26/07/2016

Por Fernanda Frizzo Bragato – 26/07/2016

Nem as violações nem o respeito aos direitos humanos acontecem aleatoriamente. São fatos altamente dependentes do contexto que lhes cria um ambiente propício e das características dos sujeitos afetados. Mais do que simplesmente prepararmo-nos para reparar vítimas ou punir perpetradores, temos que aprender a pensar em prevenção. A identificação de fatores de risco para a violação de direitos humanos que, em última análise, podem acarretar a ocorrência dos nada incomuns crimes de atrocidade (genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra) é um passo fundamental nesse sentido. As Nações Unidas lançaram recentemente um Quadro de Análise para Prevenção de Crimes de Atrocidade baseado na identificação de fatores de risco[1] que, levantados a partir de uma retrospectiva dos massacres do século XX, sugerem cenários nos quais as atrocidades são mais propensas a acontecer. O documento esclarece que a configuração dos fatores de risco e a criação de ambientes para o cometimento de crimes de atrocidade não necessariamente resultarão na sua ocorrência; no entanto, nenhuma atrocidade ocorreu sem que os fatores de risco ali identificados tenham preexistido.

Para qualquer análise de risco de graves violações de direitos humanos há um ponto de partida fundamental: os sujeitos afetados ou, mais simplesmente, as vítimas. A violação dos direitos humanos é seletiva e costuma atingir seres humanos pertencentes a determinados grupos com identidades específicas, mesmo que estes sujeitos não desejem ser percebidos como pertencentes a este grupo. Estas identidades representam, em determinado imaginário social, características depreciativas que tendem a rebaixar ou desumanizar seus portadores. A elas [identidades] são atribuídos hábitos, atitudes, pensamentos, traços de personalidade negativos e baseados em preconceitos altamente arraigados e pouco questionados por aqueles que, em contrapartida, colocam-se em posição de superioridade autodenominando-se, por exemplo, “cidadãos de bem”. Os grupos caracterizados por identidades depreciadas são conhecidos como minorias, não porque sejam numericamente inferiores ao grupo dominante que lhes assigna uma posição de inferioridade, mas porque carecem de poder justamente pela posição de subordinação que o discurso desumanizante lhes reserva. Sociedades onde o racismo, a xenofobia, a misoginia, a homofobia e outros tipos de preconceito são fortemente presentes demonstram alta aptidão para a violação dos direitos destes grupos ou das pessoas pertencentes a estes grupos.

Poucos discordam do princípio de legitimação dos direitos humanos segundo o qual todos os seres humanos são igualmente dignos e merecem os mesmos direitos, mas muitos discordam sobre quem conta como ser humano. Para estes, as chamadas minorias são compostas de sub-humanos, de modo que as mais diversas violências perpetradas não são vistas propriamente como violações de direitos humanos: ou porque não chocam ou porque são percebidas como merecidas. Vejamos, no Brasil, os massacres contra os indígenas em razão das disputas sobre suas terras ou os altos e incomparáveis índices de homicídio que afetam os jovens negros ou as pessoas transexuais e travestis.  Proteção ou violação de direitos humanos têm a ver com a condição de poder do sujeito de direitos. Por isso, direitos humanos tornaram-se um assunto incômodo: questionam e desafiam relações de poder que visam beneficiar sempre o mesmo grupo.

Porém, desde o fim da Segunda Guerra Mundial - onde o processo de desumanização e de gravíssimas violações de direitos humanos ocorreram de forma sistemática e escandalosa contra determinados grupos (judeus, homossexuais, ciganos, comunistas e outros) -, a comunidade internacional resolveu adotar certos compromissos com a proteção de direitos humanos especialmente atento às minorias. Com isso, iniciou-se um processo de identificação e de construção de condições institucionais, políticas, econômicas e sociais capazes de oferecer um ambiente propício à efetivação destes direitos. O cenário do século XX e do início do século XXI pouco tem coincidido com essa aspiração, embora avanços tenham ocorrido a partir da luta por direitos destes grupos estigmatizados. Mas já se pode, com certa clareza, entender por quê e como graves violações de direitos humanos ocorrem, tornando possível, ao menos em tese, ações de prevenção.

Voltando ao supramencionado documento da ONU, ele apresenta categorias de risco e, dentro destas, os indicadores de fatores de risco para crimes de atrocidade. Os que se aplicam em comum a todos os crimes são:  1. Situações de conflito armado ou outras formas de instabilidade; 2. Registro de graves violações dos direitos humanos internacionais e direito humanitário; 3. Debilidade das estruturas do Estado; 4. Motivos ou incentivos; 5. Capacidade para cometer crimes atrozes; 6. Ausência de circunstâncias atenuantes; 7. Ativação de circunstâncias ou ação preparatória; 8. Fatores desencadeantes. O “Framework” também estabelece fatores de risco e indicadores que podem ser exclusivos para cada crime de atrocidade. Fatores de Risco 9 e 10, por exemplo, referem-se ao genocídio e fatores de risco 11 e 12 referem-se a crimes contra a humanidade, ambos passíveis de ocorrer tanto em contextos de guerra quanto de paz.

O que interessa notar é que, a despeito de haver diferentes indicadores de risco para cada fator e de não haver necessidade da presença de todos para que uma ação preventiva se torne necessária, existem lógicas que perpassam o surgimento de ambientes propícios para o cometimento de crimes de atrocidades que são o ápice de uma escalada de graves violações de direitos humanos. Uma rápida análise nos permite identificar fatores políticos, institucionais, econômicos e socioculturais envolvidos na formação deste cenário.

Fatores políticos[2]. Abrangem uma gama variada de fatores de risco e têm a ver com a forma como se estruturam e se desenvolvem as relações de poder entre o Estado e a sociedade civil. Sociedades muito plurais com déficit de representatividade dos diversos grupos que as compõem, por exemplo, não criam cenários favoráveis para o respeito aos direitos humanos. Governos com alta concentração de poder e pouca fiscalização por parte da sociedade podem levar a regimes autoritários e ao sistemático descumprimento das leis. Por outro lado, governos com pouco poder ou liderança e altamente instáveis constituem risco para cometimento de violações de direitos humanos porque, via de regra, não têm controle sobre as forças de segurança, interferências externas e grupos criminosos e são frequentemente alvos de descrença e desconfiança. A ausência ou a ruptura de diálogo com a comunidade internacional, por meio, por exemplo, da quebra de compromissos assumidos, também criam ambientes desfavoráveis.

Fatores institucionais[3]. A ausência de instituições capazes de assegurar o cumprimento equitativo, imparcial e transparente das leis, ou que promovam a aprovação de leis tendentes a restringir direitos de grupos ou indivíduos mais vulnerabilizados, contrariando o direito internacional e restringindo liberdades civis, ou, ainda, incapazes de criar leis e políticas que fomentem a participação política, a distribuição de recursos e o reconhecimento destes grupos criam ambientes altamente favoráveis para a violação de direitos humanos.

Fatores econômicos[4].  Interesses econômicos estão altamente implicados na origem das sistemáticas e generalizadas violações de direitos humanos e o Estado é, muitas vezes, o agente destes interesses. Daí a importância da pluralidade de participação nos espaços de poder oficial. Graves violações ocorrem em contextos de resistência dos grupos afetados que detêm o domínio ameaçado de bens almejados para uso ou destinação econômica. Não havendo mecanismos de proteção dos bens desses grupos ou indivíduos (como leis, por exemplo), aliados à aptidão e à vontade do Estado em fazê-los valer, ambientes de perpetração de violação de direitos humanos são altamente prováveis. Os fatores econômicos desfavoráveis também se revelam em quadros de desigualdade social em que a riqueza e os bens são altamente concentrados enquanto grande parte da população experimenta condições de limitação de recursos e pobreza, gerando as mais diversas formas de insegurança e violência.

Fatores socioculturais[5]. Estes fatores operam no interior das relações sociais e revelam como se exerce o poder baseado nas características culturais que marcam as diferentes sociedades. Assim, são extremamente importantes para a configuração dos grupos minoritários marcados pela ausência de poder em relação aos grupos reputados superiores. Essas assimetrias vêm retratadas nos preconceitos, ações discriminatórias (conscientes ou inconscientes), discursos de ódio, práticas de invisibilização, entre outros. Para a ocorrência de genocídio, por exemplo, a existência de um grupo perseguido por razões de cunho étnico, racial, nacional ou religioso é essencial. Genocídio requer, antes de tudo, relações assimétricas de poder no interior de dada sociedade baseadas nestes fatores identitários. Porém, genocídio é o ápice de processos de violações de direitos que podem afetar de forma prolongada e sistemática indivíduos pertencentes a grupos considerados inferiores. Assim, outras instituições não oficiais, como a mídia, por exemplo, podem ter um papel fundamental na disseminação do ódio e da intolerância por meio da manipulação da informação e do uso da propaganda.

No Brasil tem-se assistido a profundas mudanças em todos os fatores acima enumerados, especialmente no campo político e sociocultural, onde propostas de leis e crescente retórica inflamatória contra minorias têm criado ambientes altamente propícios para o cometimento de graves violações de direitos humanos protegidos pela comunidade internacional. Passar a interpretar o surgimento destes cenários sob a perspectiva do risco pode nos auxiliar a ir mais além da dimensão da crítica e da denúncia, levando-nos ao espaço da ação especialmente preventiva.


Notas e Referências:

[1] UNITED NATIONS. Framework of Analysis for Atrocity Crimes: a tool for prevention. United Nations: 2014. Disponível em: <http://www.un.org/en/preventgenocide/adviser/pdf/framework%20of%20analysis%20for%20atrocity%20crimes_en.pdf>. Acesso em: 04 ago. 2015.

[2] Tais circunstâncias vêm retratadas, no Quadro de Análise da ONU, nos indicadores de risco 3.5, 3.10, 4.1, 4.3, 4.5, 7.1, 7.2, 7.3, 7.5, 7.6, 7.9, 7.10, 8.4 a 8.6, para citar apenas alguns.

[3] A título de exemplo estes fatores aparecem nos indicadores de risco 2.7, 3.1, 3.2, 3.3, 3.6, 3.7, 3.9, 6.4 a 6.7, 6.9 e 7.8.

[4] O quadro de análise da ONU aponta, como indicadores de risco, alguns fatores econômicos, a saber: 1.8, 1.9, 4.2, 5.7, 8.9 e 8.10.

[5] O quadro da ONU aponta estes fatores socioculturais, dentre outros, nos indicadores 1.11, 4.7, 4.9, 5.4, 6.1, 6.2, 7.12, 7.13, 7.14, 8.7, 8.11.


Fernanda Fizzo Bragato. Fernanda Fizzo Bragato é graduada em Direito pela UFRGS, Mestre e Doutora em Direito pela UNISINOS e Pós-doutora no Birkbeck College da Universidade de Londres. Atualmente, é professora do Programa de Pós-graduação em Direito e coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos (NDH), ambos da Unisinos. E-mail: fernandabragato@yahoo.com.br


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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