Na Antiguidade o conhecimento foi categorizado em sete artes liberais, formadas pelo trivium (lógica, gramática e retórica) e pelo quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia). Os pensadores antigos dominavam essas sete artes para pensar as questões perenes, isto é, as questões levantadas, em maior ou menor medida, em todas as gerações e em todas as épocas: Deus (ou deuses), Natureza, Homem, Sociedade e História[i]. Daí porque é frequente que os pensadores antigos sejam classificados contemporaneamente, de modo anacrônico, como pensadores de várias áreas do conhecimento: filósofos e matemáticos e políticos, etc. Esses pensadores exercitaram a potência do pensamento de modo integrado, ou seja, se valeram de todos os conhecimentos de que dispuseram para pensar as questões perenes, com as limitações inerentes ao saber no contexto espaço-temporal em que viveram.
No Medievo, com o surgimento das primeiras universidades no Ocidente, às sete artes liberais foram acrescentadas as artes mecânicas e as artes superiores. As artes mecânicas tratavam da fabricação, estratégia militar, vestuário, alimentação e comércio, ainda que com nomes distintos dos conhecidos na atualidade (como metallaria em vez de metalurgia). As artes superiores eram compostas pelas três principais áreas do saber: medicina, direito e teologia.
A categorização do conhecimento na Antiguidade possivelmente teve a finalidade de facilitar a compreensão daquilo que pertencia a cada uma das artes e, assim, tornar mais fácil o estudo desses conhecimentos. Contudo, no Medievo podemos perceber uma hierarquização do conhecimento. Talvez não na oposição entre artes liberais e artes mecânicas, pois ambas parecem concebidas como igualmente relevantes, mas no estabelecimento de “artes superiores”. Adjetivar algumas artes de “superiores” é um critério de diferenciação em relação as outras artes. Dito de outro modo, eram chamadas de “superiores” porque eram consideradas mais importantes que as sete artes liberais e que as artes mecânicas.
Na Modernidade foi cunhada a concepção moderna de ciência: conhecimento universal e generalizável segundo explicações dos efeitos a partir da pretensa compreensão das causas em conformidade com métodos pré-estabelecidos. Duas importantes concepções científicas, fruto das transformações do antigo realismo e do antigo idealismo, surgiram: o empirismo e o racionalismo, respectivamente. O empirismo teve como principal nome o filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626) e o racionalismo o filósofo francês René Descartes (1596-1650). A partir das concepções empiristas e racionalistas, filósofos, físicos, matemáticos e outros estudiosos pretenderam explicar fenômenos universais por meio das conclusões a que chegaram em estudos de particularidades. Nesse sentido, por exemplo, experimentos sobre o momento da morte passaram a ser utilizados como argumentos para explicar o fenômeno “morte”, não apenas em relação aos mortos estudados, que podiam ser pássaros, humanos ou outros seres vivos, mas em relação a todos os seres vivos. Obviamente, as conclusões muitas vezes estavam limitadas a grupos menores, como porcos, cães ou gatos. Isso fez surgir uma especialização cada vez maior do conhecimento, com desdobramentos na forma de novas disciplinas. Exemplo disso é que, anos depois, da medicina, área geral do saber médico, foram criadas a medicina humana e a medicina veterinária; da matemática, foram criadas a geometria, a álgebra e outras. E assim ocorreu noutras áreas do saber.
Desde então foram formadas novas disciplinas, isto é, novas áreas do conhecimento categorizadas com nomes especializados. O discurso de justificação dessa proliferação de novos saberes é frequentemente o da impossibilidade de saber tudo sobre tudo. Daí existiria uma necessidade de segmentar o conhecimento em áreas e subáreas, de modo a permitir que os especialistas alcancem um extenso conhecimento sobre objetos cada vez mais circunstanciados por precisas e limitadíssimas fronteiras. O incremento da complexidade é óbvio. Surgiram novos métodos, novas teorias e novas perspectivas (também chamadas de quadros de referência), bem como novos objetos híbridos, imateriais. Os quadros de referência (positivismo, fenomenologia, estruturalismo, funcionalismo etc.) produziram um duplo efeito. Por um lado, permitiram uma explicação segundo critérios próprios, mais ampla e menos incompleta. Por outro lado, permitiram o diálogo entre mais áreas do conhecimento para abranger estudos mais complexos.
Esse percurso pode, grosseiramente, ser reduzido a um duplo movimento. Primeiro, uma segmentação do conhecimento para um melhor aperfeiçoamento. Segundo, um reagrupamento do conhecimento para uma explicação mais ampla. Isso não quer dizer que há uma homogeneidade. Como não poderia deixar de ser, sempre existiram discursos de resistência a essas transformações, portanto, não necessariamente todas as áreas do conhecimento passaram por esse percurso. De todo modo, interessa neste texto esse movimento de reagrupamento, que pode ser tanto uma recategorização quanto uma descategorização do conhecimento.
Na Contemporaneidade os estudos assumiram um viés que excede às categorias modernas do conhecimento, às chamadas áreas da ciência, por força da limitação dos estudos disciplinares para explicar os objetos. Surgiram os estudos chamados de multidisciplinares (uso de várias abordagens disciplinares para estudar um mesmo objeto), interdisciplinares (pressuposto epistemológico que tem no diálogo entre diversas áreas disciplinares a pretensão de estudar um objeto tradicionalmente associado a outra área do conhecimento) e transdisciplinares (uso de conhecimentos de duas ou mais áreas para estudar um objeto, ultrapassando as fronteiras disciplinares). Estudos multidisciplinares e interdisciplinares configuram uma recategorização do conhecimento, enquanto estudos transdisciplinares configuram uma descategorização.
Daí em diante proliferaram estudos sobre diversos objetos desde múltiplas perspectivas. No pano de fundo permanece a tentativa de fornecer a melhor explicação, embora existam os ingênuos que pensam poder explicar a totalidade. Dentre esses estudos temos, por um lado, conhecimentos de qualidade e relevância, mas, por outro lado, fragilidades e produção de conhecimentos extensivos superficiais, carentes de profundidade teórica e conceitual. Em alguns casos a fragilidade é de tal envergadura que alguns tentam utilizar um conhecimento supérfluo ou do qual não têm domínio para “estudar” algum objeto. Muitas vezes é uma fraude destinada à comercialização de livros e/ou à justificação de um conhecimento desprovido de consistência filosófica, ou científica suficiente. O problema é intensificado na medida em que tais conhecimentos não alcançam a habilidade dos discursos de autoajuda. Dito de outro modo, algum conhecimento relevante é colonizado e/ou subjugado para que sirva de adereço retórico destinado à comercialização de livros. Afinal, estamos inseridos num modo de vida fundamentado no voraz consumo de novidades, sejam elas quais forem. No que concerne ao mercado editorial, os editores têm ciência de que há muitos leitores, caracterizados pela ansiedade em relação a novidades literárias, filosóficas, científicas. Tais leitores também são caracterizados pela leitura aligeirada, desprovida de criticidade e de esforço reflexivo em relação ao que leem. Nietzsche já os havia identificado em sua lapidar autobiografia “Ecce Homo” como “zeros somados”, incapazes de uma leitura atenta e reflexiva[ii]. Apenas consomem novidades, títulos, capas, autores...
Temos assim uma passagem da lógica qualitativa para a lógica quantitativa. Isso porque na Modernidade a fragmentação do conhecimento serviu não apenas à qualidade do conhecimento produzido, mas também a interesses econômicos. Os trabalhadores foram despojados das ferramentas de trabalho e do conhecimento integral do processo produtivo para trabalhar em fábricas na condição de assalariados, como o filósofo prussiano Karl Marx (1818-1883) denunciou. Na Contemporaneidade temos muitas vezes um retorno a um conhecimento descategorizado, mas a qualidade nem sempre é o mote. Sobretudo em razão da lógica neoliberal, aos trabalhadores remanescentes, cuja maioria será substituída por máquinas e computadores, é sugerido que devem dar um salto, talvez impossível a quase todos, rumo à condição de empreendedores, de “empresários de si”. Em busca do “Deus Dinheiro”[iii], os cultos da economia impõem um conhecimento integral de processos produtivos para melhor empreender. A segmentação das atividades econômicas é realidade global, mas a maioria das pessoas não pode se dar ao luxo de saber apenas umas poucas coisas, relacionadas ao segmento da atividade econômica em que trabalham, mormente diante da ameaça de substituição de milhões das pessoas por robôs[iv]. É também conforme à lógica neoliberal a busca por incremento nos lucros e a concorrência: é preciso inovar para ser empreendedor; e escrever algo diferente, ainda que utilizando conhecimentos como adereços para “encher linguiça”, é uma inovação.
Enfim, esses conhecimentos, a pretexto de uma abordagem excedente das disciplinas tradicionais, vendem e iludem. E, evidentemente, sempre há editoras dispostas a lucrar com a cobrança pela publicação de livros com conteúdo supérfluo. Caso não sejam vendidos, os custos de produção e os lucros esperados já foram pagos pelos autores. “O que vier é lucro!”.
Estamos diante de uma condição paradoxal. Temos à disposição uma infinidade de fontes de informação, de revistas, de jornais (eletrônicos sobretudo), mas, ao mesmo tempo, campeia entre parcela significativa de indivíduos a desinformação, o desconhecimento e, por extensão, o embrutecimento e a intolerância. Estamos diante de uma espécie de derrota do pensamento que demonstra de forma inequívoca que os seres humanos não evoluem, ou progridem como seres humanos. Continuam sempre os mesmos como há milhões de anos, quando nossos ancestrais mais primevos desceram das árvores, ou se preferirem a via criacionista, quando Deus expulsou Adão e Eva do paraíso. Ou seja, somos capazes de ações altruístas, mas dependendo do contexto cometemos as piores atrocidades em relação aos nossos semelhantes.
É por estas e por outras que o ser humano necessita de boa educação informal e excelente educação formal. Sobretudo precisa aprender a ler, a exercitar a paciência necessária à compreensão adequada dos conceitos, das teorias e das ideias. Este é o único caminho para exorcizar o obscurantismo, a pretensão de genocídio dos diferentes, a acefalia cognitiva. É preciso que nossos representantes no Congresso e no Executivo aprovem urgente a posse de livros. Ou seja, que cada brasileiro possa comprar e portar livremente bons livros. Somente assim construiremos uma civilização plural, humana, demasiadamente humana, portanto, apta a conviver com a diferença e a respeitá-la.
Notas e Referências
[i] Sobre as questões perenes: BAUMER, Franklin Le Van. O pensamento europeu moderno. Volume I. Séculos XVII e XVIII. Trad. Maria Manuela Alberty. Rio de Janeiro: Edições 70, 1990, p. 27-35.
[ii] NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo. Como alguém se torna o que é. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
[iii]https://blogdaboitempo.com.br/2012/08/31/deus-nao-morreu-ele-tornou-se-dinheiro-entrevista-com-giorgio-agamben/
[iv]https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2019/02/03/pesquisa-da-unb-mostra-que-30-milhoes-de-empregos-serao-substituidos-por-robos-ate-2026.ghtml
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