Categorias jurídicas e filosóficas

14/10/2018

No artigo “Da categoria filosófica à natureza jurídica” (http://emporiododireito.com.br/leitura/da-categoria-filosofica-a-natureza-juridica) já foi exposto que os conceitos fundamentais do pensamento científico e filosófico são as categorias, as quais são dependentes do sistema de ideias adotado. Foi sustentado, ainda, que a categoria gnosiológica fundamental é o Logos, que significa a unidade do conhecimento, simbólica e real. Do Logos permitiu-se chegar às categorias específicas do sistema jurídico.
“Portanto, da categoria filosófica, o Logos, ou holonomia, que rege o holomovimento, chega-se à natureza jurídica das coisas e fenômenos, como lícitos ou ilícitos, legais ou ilegais, jurídicos ou antijurídicos, justos ou injustos, que são a categoria jurídica fundamental.”
As categorias também se relacionam, mais concretamente, aos modos de se cortar a realidade, que definem os ramos do conhecimento científico, dentro de um sistema mais amplo de conhecimento, um sistema filosófico.
Segundo o positivismo, no aspecto jurídico, por exemplo, as categorias são o legal e o ilegal, e uma vez que válida a norma, segundo o procedimento normativo previsto para sua edição, posta pela autoridade competente de acordo com o mesmo sistema de normas, o legal será automaticamente justo.
Esse entendimento positivista pode ser considerado simplista e insuficiente, porque segundo essa linha de ideias o julgamento de Nuremberg, o tribunal que julgou os nazistas por crimes contra a humanidade, estaria fora do parâmetro de legalidade.
Necessário, assim, um critério mais amplo de juridicidade, além do que seja mera e formalmente legal, critério mais amplo ligado a conceitos de justo e injusto, com suas necessárias implicações filosóficas, ou seja, que esteja dentro de uma visão mais ampla da realidade.
Portanto, pode-se dizer que existem as categorias normativas mais restritas “legal” e “ilegal”, e as categorias jurídicas mais amplas “justo” e “injusto”, que também dizem respeito às anteriores, legal e ilegal. Há que se destacar, destarte, que o justo e o injusto possuem critérios normativos a eles inerentes de legalidade e ilegalidade, porque o justo e o injusto filosóficos decorrem de uma descrição lógica e racional da realidade como um todo, em seus variados aspectos, em que se colocam as questões da normatividade, porque a atividade filosófica autêntica abarca todos os parâmetros de mundo, do mais concreto ao mais abstrato.
Dessa forma, a filosofia positivista destaca como objeto da ciência do Direito o estudo da norma e da autoridade competente para editá-la e para aplicá-la, deixando de lado as questões morais e de justiça substantiva que possam ser levantadas, de modo que da forma legal, segundo essa postura filosófica, decorre o conteúdo de justiça, não se podendo buscar esse conteúdo fora da legalidade formal. Assim, para o positivismo, o legal é justo e o ilegal é injusto, não havendo situações que possam ser consideradas legais e injustas ou ilegais e justas.
De outro lado, há as concepções filosóficas segundo as quais a legalidade meramente formal não é o critério final de justiça, devendo a legalidade observar parâmetros materiais ou qualitativos de vida para que o legal seja também tido como justo, concepções como a ideia de direito natural e, atualmente, a chamada hermenêutica jurídica com seu relativismo ontológico.
Para o positivismo jurídico, a substância da ciência jurídica é a legalidade formal, de modo que o conteúdo da norma não está vinculado a uma concepção prévia de mundo, podendo ser considerado direito qualquer sistema normativo, com qualquer conteúdo, formalmente colocado pela autoridade competente.
Segundo a hermenêutica jurídica, por sua vez, o conteúdo do direito deve respeitar o sentido passado pela tradição jurídica, não havendo, contudo, uma realidade objetiva definitiva que determine o significado último do justo, do que decorre que o justo é o que o discurso tradicional atualizado formalmente estabelece como tal, segundo o sentido nominal do texto, pois não há essência de mundo associada à linguagem, mas a aparência, ou fenomenologia, de justiça e normatividade, em sua relatividade linguística.
Contudo, a autêntica Filosofia, a partir de uma concepção integral de mundo, pela experiência recebida dos antepassados e pelo conhecimento histórico integrado à vida comunitária, chega a uma determinada concepção jurídica de mundo, que deve estar presente na legislação. A noção moderna de democracia decorre, nesse sentido, de um longo processo de consolidação filosófica, dentro da tradição Cristã, o que também vale para o conceito de dignidade humana. Os direitos humanos, portanto, que serviram de base para o julgamento de Nuremberg, decorrem de uma posição filosófica específica de mundo, que transcende o mero formalismo normativo, fundada em valores absolutos, como a vida e dignidade humana.
As ciências, para análise de determinados fenômenos da natureza, como salientado, cortam aspectos da realidade, e desses aspectos fazem suas substâncias de estudo. Em análise linguística, esses aspectos são os substantivos estudados, os seres ou entes objetos de estudo, caso em que os demais aspectos ou qualidades, os adjetivos, são descartados, porque pertencentes a outros ramos abordagem científica.
Um animal, por exemplo, pode ser estudado por seu peso, segundo a física, por seus compostos moleculares, pela química, por seu tempo de desenvolvimento, na biologia etc. O que é substantivo em um ramo científico pode ser adjetivo para outro, e vice-versa, no sentido de que uma ciência pode ter por objeto de estudo aspectos de mundo que são questões acessórias ou secundárias para outra ciência.
Assim as qualidades secundárias ou adjetivas de uma ciência são substantivas para outra, sendo necessário que haja coerência científico-filosófica entre esses adjetivos ou qualidades acessórias de uma ciência e os substantivos ou conteúdos principais de outra, para que o conhecimento seja integral, consistente, e, desse modo, verdadeiramente científico.
Na vida cotidiana, os aspectos de mundo são considerados em sua totalidade, o que ocorre dentro do chamado senso comum, ao contrário do que se dá na ciência especializada, que abstrai de sua análise algumas questões do mundo. Contudo, algumas dessas questões abstraídas, ou deixadas de lado, são aspectos essenciais ou vitais das vidas das pessoas e que, na prática, quando não devidamente observados, podem levar à morte de seres humanos, ou levar a discursos inconsistentes, porque claramente dissociados da realidade da vida.
A vida surge da união de um casal, um homem e uma mulher, o que a ciência não pode negar. O furto, o roubo e o homicídio causam danos à população, especialmente a mais carente. Aquele que pratica esses atos não é visto pela população como uma vítima do sistema, ainda mais quando a vítima dos atos criminosos é vizinha do agressor, tão carente como este.
Com base em dados como esses, pode-se dizer que uma filosofia de mundo que não considera tais dados da realidade, e não constrói um sistema de pensamento que se adéqua à realidade da vida, torna-se ideologia, no sentido negativo do termo, como manipulação artificiosa do mundo, e, por isso, mais cedo ou mais tarde, não terá sustentação social.
E também com base nesses dados, e pelo que se consegue avaliar pelos conhecimentos científicos e históricos, é que se pode dizer que o Cristianismo é a filosofia de mundo mais perfeita já desenvolvida, porque dois mil anos depois de suas primeiras formulações, sem considerar a base anterior judaica de mil anos, continua apta a sustentar a sociedade.
Para o Cristianismo, tudo é ideia encarnada, porque há um só Corpo e um só Espírito, e integramos esse Corpo e esse Espírito, e tudo está conectado, tudo está dentro dos planos de Deus:
“Não se vendem cinco pardais por dois asses? E, no entanto, nenhum deles é esquecido diante de Deus! Até mesmo os cabelos da vossa cabeça estão todos contados. Não tenhais medo: pois valeis mais do que muitos pardais...” (Lc 12, 6-7).
Hoje também se pode dizer que tudo está conectado, tudo é relação, e daí a relatividade, pois estamos em campos gravitacionais que se influenciam, em campos eletromagnéticos e quânticos que se interferem reciprocamente, e a relação é tanto local como não local, conforme ensina a orgânica quântica, sendo a não localidade uma localidade onipresente, simultaneamente local e não local. Filosoficamente, portanto, tudo é duplo, local e não local, partícula e onda, ou ideia encarnada, manifestação do Espírito no Corpo, em totalidade indivisível.
Toda parte é integrante de um todo a que ela pertence, é parte de algo, e é apenas em função do conhecimento desse algo que a parte pode ser identificada e fazer sentido. Um braço está vinculado a um corpo, de um organismo, de uma espécie, da vida, do planeta Terra. Um artigo está em uma lei, de um sistema jurídico, de um povo, com específicos valores e concepções de mundo, que determinam a identidade daquele povo, a função do sistema jurídico, a validade da lei e o sentido de seus dispositivos.
Existe, portanto, um conhecimento de mundo que transcende em muito a mera legalidade, que se vincula à totalidade da existência, e por isso é possível dizer que o jurídico vem depois, é consequência de uma determinada visão de mundo, da qual também decorre o conceito de legalidade, e o problema do mundo atual é não entender o que vem antes do legal e antes do jurídico, por não se debater a hermenêutica teológica, que engloba todos os aspectos da realidade.

 

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