Que a humanidade consome 30% a mais do que a capacidade de renovação da Terra está dado, segundo o Ministério do Meio Ambiente brasileiro[1]. Assim, em menos de 50 anos precisaremos de dois planetas para saciar o consumo energético, hídrico e alimentar. Ok, mas é “só” disso que se trata a sanha consumista? Da prática de um consumo consciente como constante minimização de danos ambientais e, por óbvio, econômicos e sociais?
Gostaria de pensar um direito do consumidor ecocidadão. Não uma mera superficialidade de conscientização da ação individual, como insiste a racionalidade jurídica nos termos de um sujeito de direito. Este consumidor reproduzido na forma jurídica vive na fantasia de proteção, retirado e retirando-se da arena da cidadania, ou melhor, incluído na cidadania de reprodução automática da modernidade periférica e excluído da cidadania verdadeiramente ecológica, no sentido de revitalizar as dinâmicas sociais exauridas do colapso que habitamos.
O devir social compulsivo da modernidade instaurou um fluxo constante e obsessivo de classificar, projetar, limitar, editar, organizar, identificar... uma constante prática de solidificação de certezas[2]. Neste movimento de ordem e (auto-)disciplinamento as atividades humanas passam a ser controladas por meio de uma convivência modelada/modeladora[3]. Neste caminho globalizado, pode-se assistir o triunfo do capitalismo como hiper-realidade, ou seja, como adoção do seu modo de vida. A sociedade sufocada pela pressão do consumo configura-se em um espetáculo civilizatório vazio de sentimentos, vivido de simulacros e banalidades[4].
Juan Ramón Capella sustenta que a crise iniciada pela crescente expansão da lógica consumista-capitalista entrava a construção da consciência. O caráter de artificialidade e manipulação das ações humanas decompõe uma possível colaboração entre os homens, apresenta-se, sim, uma colaboração objetiva, fracionada de tal forma que se torna insignificante a relação social entre o executor da ação e aqueles que usufruirão dela. Instaura-se uma interdependência global, uma rede de ações labirínticas que são constantemente ignoradas nos seus resultados e consequências, o que acaba por impossibilitar a reflexão da própria ação[5]. Para não responder à falta de sensibilidade sem sensibilidade, Criolo se propõe a tratar das “benesses” sociais da sociedade de consumo da alta estirpe com seu “Cartão de Visita” no álbum Convoque Seu Buda.
Acende o incenso de mirra francesa
Algodão fio 600, toalha de mesa
Elegância no trato é o bolo da cereja
Guardanapos gold agradável surpresa
Pra se sentir bem com seus convidados
Carros importados garantindo translados
Blindados, seguranças fardados
De terno Armani, Loubotin sapatos
Temos de galão Dom Pérignon
Veuve Clicquot pra lavar suas mãos
E pra seu cachorro de estimação
Garantimos um potinho com pouco de Chandon[6]
No glamour do consumo, Criolo dá a letra para a classe esclarecida que leva de brinde imãs de geladeira com Sartre e Nietzsche. A parafernália de luxo da classe gloriosa só pode ser sustentada pelo parcelamento dessa gente indigesta que habita as ruas e os recantos periféricos. Se “nem tudo que brilha é relíquia, nem jóia” para onde vai o excesso de elegância? A custa de que(m) desenvolve-se este encanto num mundo já desencantado que anunciada Weber?
Iury Honorato entregou algumas pistas do outro lado da moeda. Mas como aprendemos – seja com Iury ou com Criolo – “o governo estimula, o consumo acontece”. “O opressor é omisso e o sistema cupim. E se eu não existo, por que cobras de mim?” Passa da hora de “Em frente a shoppins, marcar rolêzins, Debater sobre cotas, copas e afins”[7]. E do pavor dos rolêzins, os espaços sagrados dos shoppins reza-se aos templários das togas negras, num passe de mágica a segurança (jurídica) coloca em ordem a ecologia consumista[8].
No mundo de mercadoria e busca pela satisfação ilusória permanente, a vida admite um sentido de lucro, onde o dinheiro é ordem primária, trata-se de um desvario compartilhado, onde o desejo transforma-se em desejo de consumo. Ser humano confunde o Outro como objeto, dando-se o direito de explorar e descarta-los se assim lhe convir[9]. Desta forma, os laços comunicativos encontram-se deteriorados devido às imposições significativas dos sistemas pré-estabelecidos e a supressão da subjetividade. A sociedade arrisca viver em um constante estado de indiscriminação com relação à massa geral das sensações[10].
A ecologia destrutiva apoiada pelo direito sem política, sem práxis, sustenta uma constante forma de fuga da vida, a máxima ingerência do prazer na cultura, de um Eu impossibilitado de estabelecer seu processo de realidade, impedido de efetuar o combate contra o externo repressivo, como diria Warat. Se “o opressor é omisso”, forcemos a inversão dos tempos e dos termos. De ecologia consumista à cidadania ecológica ciente da necessidade do consumo. Consumidor não como categoria do sujeito de direito, mas sim, como processo ativo e social de cidadania. O brotamento desta atuação no social se dará na construção sensível do consumidor contra a reprodução cega da sociabilidade capitalista. Que a semente do Vínculo possa construir nossa identidade a partir do Outro. Consumidor que se sabe consumidor do Outro, do planeta. Enfim, conscientização de que consumir é, também, consumir-se.
O Cartão de Visita está entregue.
NOTAS
[1] http://www.mma.gov.br/informma/item/7591-o-que-%C3%A9-consumo-consciente
[2] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
[3] ELIAS, Norbert. O processo civilizador, volume: 2: formação do estado e civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1993, p. 195.
[4] WARAT, Luís Alberto. O futuro de dinossauro: Ou a hiper-realização da história. In: Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 116-117.
[5] CAPELLA, Juan Ramón. Os cidadãos servos. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1998, p. 40-41.
[6] GOMES, Kleber Cavalcante; CHAGAS, Tulipa Ruiz (Part.). Cartão de Visita. In: Convoque Seu Buda. Oloko Records. 2014, faixa nº 3.
[7] Idem.
[8] CATALAN, Marcos. Defendam Jerusalém! O rolezinho e a fragmentação do direito nos tribunais brasileiros. Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Curitiba, 2017, vol. 9, n. 16, Jan.-Jun. p. 71-84.
[9] WARAT, Luís Alberto. Manifesto para uma ecologia do desejo. In: Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade, Florianópolis: Boiteux, 2004, p. 224-226.
[10] WARAT, Luís Alberto. Manifesto para uma ecologia do desejo. In: Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade, Florianópolis: Boiteux, 2004, p. 234.
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