Carta de Vitória é importante instrumento para a concretização do direito à saúde – Por Clenio Jair Schulze

29/08/2016

A prestação de saúde aos brasileiros poderá ser fortemente abalada se for aprovada a Proposta de Emenda Constitucional – PEC 241/2016 que permitirá o congelamento dos gastos mínimos em saúde nos próximos 20 (vinte) anos.

Tal proposta, de duvidosa constitucionalidade, é somada a várias outras políticas empreendidas sob o argumento da necessidade de ajustar as contas públicas. E tudo é realizado como se a saúde estivesse no mesmo patamar de importância de outras despesas governamentais menos relevantes (publicidade, fundo partidário, renúncias fiscais, entre outras).

Este tema e inúmeras outras questões que envolvem o direito à saúde foram objeto de intenso debate entre os 500 participantes do 4º Congresso Brasileiro Médico e Jurídico realizado na cidade de Vitória/ES entre os dias 24 a 26 de agosto de 2016.

Neste evento foi produzido o seguinte documento que materializa propostas para a concretização do direito à saúde:

Carta de VITÓRIA

Nós, participantes do 4º Congresso Brasileiro Médico e Jurídico, reunidos em Vitória/ES entre 24 e 26 de agosto de 2016, aprovamos a seguinte carta com o propósito de auxiliar na construção de um sistema de saúde justo e adequado, nos seguintes termos:

  1. Financiamento.

O dever de gasto mínimo em ações e serviços públicos de saúde (ASPS) previsto no artigo 198 da Constituição não é apenas uma equação matemática que vincula porcentual da receita a um determinado conjunto aleatório de despesas. Há conteúdo e finalidades substantivas a serem cumpridos por meio do dever de aplicação mínima de recursos em saúde, dentro de um arranjo federativo que prima pela redução das disparidades regionais e pelo rateio equilibrado das responsabilidades e receitas entre os entes.

No nosso ordenamento, a primária fonte do que deveria ser o conteúdo material do piso em ações e serviços públicos de saúde (quiçá “mínimo existencial”) reside na pactuação das obrigações e responsabilidades de cada ente da federação no SUS por meio das Comissões Intergestores Tripartite e Bipartite, posteriormente aprovada pelos conselhos de saúde, ao que se somam os planos nacional, estaduais e municipais de saúde.

Diante de tal compreensão sistêmica, cabe lembrar que as receitas vinculadas à seguridade social e o piso de gasto em saúde é instrumento de proteção orçamentário-financeira de direito que não pode ser minorado ou negado sob o pálio da Constituição de 1988. 

  1. Políticas públicas de saúde.

É premente a melhoria das políticas públicas de saúde, com a qualificação da gestão e da qualidade dos serviços prestados, em todos os níveis e esferas.

Em que pese a natural limitação de recursos, cabe ao Estado conferir melhor tratamento à população, principalmente aos mais necessitados, a fim de reduzir as angústias decorrentes dos problemas de saúde.

A integralidade, a universalidade e os demais princípios que orientam o núcleo essencial do direito fundamental à saúde exigem maior respeito por parte do Estado, sob pena de tornar letra morta os direitos e as garantias asseguradas no texto da Constituição, sendo indispensável que as políticas de saúde já previstas no Sistema Único sejam efetiva, adequada e tempestivamente prestadas pelo Estado brasileiro.

  1. CONITEC.

A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS – Conitec desempenha papel de extrema importância para a melhoria da saúde brasileira, devendo-se respeitar suas deliberações nas instâncias administrativa e judicial. As análises para incorporação de novas tecnologias exigem estrutura adequada e independência funcional, a fim de bem desempenhar sua função com celeridade e imparcialidade quanto aos estudos de novas tecnologias em saúde, constituição ou alteração de Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas - PCDT.

  1. Medicina Baseada em Evidências - MBE.

A Medicina Baseada em Evidências – MBE é um poderoso instrumento para qualificar o sistema de saúde no Brasil. Fomenta a ideia de prestígio às tecnologias em saúde que apresentem comprovação científica da sua eficácia, segurança, eficiência e custo-efetividade.

A MBE deve ser adotada com maior ênfase pelos atores do sistema de saúde, bem como pelos atores do sistema de Justiça, na qualificação da judicialização da saúde.

  1. Tecnologias.

União, Estados, Distrito Federal e Municípios devem ampliar o uso da Tecnologia da Informação – TI para facilitar, agilizar, fiscalizar e aperfeiçoar as atividades no sistema de saúde, permitindo maior celeridade e eficiência na prestação dos serviços.

  1. Federalismo na saúde.

Cabe ao Congresso Nacional e ao Poder Executivo Federal maior atuação na concretização do federalismo na saúde. É indispensável o fomento a redes de atuação que permitam o diálogo imediato e a troca de informações e de experiências entre os órgãos federais, estaduais, distrital e municipais de saúde pública. O isolacionismo no SUS causa enorme prejuízo à população. A formação de Consórcios Estaduais ou Regionais é iniciativa que deve ser amparada, divulgada e implementada pelo Poder Executivo, como ferramenta de gestão, de economia, de transparência e de eficiência na aquisição de medicamentos.

Igualmente, é indispensável conferir-se maior agilidade aos processos administrativos de ressarcimento entre os entes públicos, principalmente em decorrência das condenações na judicialização da saúde, sob pena de agravar ainda mais a dificuldade orçamentária dos Municípios e dos Estados.

  1. Judicialização da saúde.

O acesso à Justiça é cláusula pétrea, cabendo ao Judiciário o controle equilibrado e sem excessos da atuação dos entes públicos e das operadoras de planos de saúde. Deve-se fomentar, assim: (a) a racionalização da judicialização da saúde; (b) a adoção dos meios alternativos de resolução de litígios, como a mediação e a conciliação; (c) a atuação cooperativa dos atores e das instituições do sistema de Justiça e do sistema de Saúde.

  1. ANVISA.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária é autarquia que merece mais atenção do Poder Executivo a fim de permitir maior agilidade nas suas atividades, seja com a ampliação da sua estrutura física e de pessoal, seja com a agilização da atividade de controle sanitário de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária.

  1. Parcerias.

Com o reconhecimento da constitucionalidade das parcerias no setor de saúde pelo STF (ADI 1923 e RE 581.488), cumpre ao Poder Público e às entidades parceiras incorporar a seus instrumentos de ajuste, em especial o contrato de gestão e a concessão administrativa, mecanismos de controle e transparência que permitam à população o acompanhamento dos resultados obtidos, bem como a comparação entre os diversos provedores.

Nesse sentido, somam-se às recomendações acima expressas:

  1. O repensar da Judicialização da Saúde envolve a valorização das instâncias de incorporação de tecnologia, como CONITEC; Núcleos de Apoio Técnicos dos Tribunais, Medicina Baseada em Evidências, protocolos clínicos e os meios não judiciais de solução de conflitos;
  2. O direito à saúde é marcado por vocação expansiva, a denotar tanto a constante renovação de seu sentido, quanto à necessidade constante de refletir (e estabelecer) seus limites;
  3. Mecanismos de otimização de dispensação de medicamentos, inclusive os adquiridos em demandas judiciais, tais como o fracionamento de medicamentos (com a utilização de embalagens menores, com quantidades mais adequadas às necessidades) e a permissão de utilização de excesso de medicamentos para outros pacientes (aproveitando-se o medicamento obtido para um paciente em quantidade além de que necessita em favor de outro), visando reduzir o desperdício.
  4. A discussão sobre o acesso à saúde não pode ser limitada à redução de custos, mas também ao próprio arranjo federativo, ao respeito do piso constitucional em todos os níveis e ao processo de elaboração e execução das leis orçamentárias.
  5. As listas de preços máximos de medicamentos estão a exigir revisão, dada a existência de discrepância elevada de valores entre aqueles praticados pelo mercado e os valores listados.
  6. Reconhecer a necessidade de criação de lista de preços máximos de OPME, mediante a aprovação do Projeto de Lei nº 17/2015, do Senado Federal, de regulação deste mercado.

Tais medidas são indispensáveis para a concretização do direito fundamental à saúde, da democracia e da universalidade do SUS.

A Carta de Vitória merece destaque e ampla divulgação, pois se trata de importante instrumento criado para disseminar a ideia da importância da ampliação das políticas públicas de saúde no Brasil.


 

Imagem Ilustrativa do Post: Saúde // Foto de: Adreson Vita Sá // Sem alterações

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