Caos e o desassossego da escuta    

20/05/2022

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

Cadê os Yanomami? Justiça para Moïse! Quem mandou matar Marielle Franco? Onde está o Amarildo?

O ano de 2022 iniciou imerso em caos, a lista é grande. As mudanças climáticas não podem ser ignoradas, experimentamos temperaturas próximas aos quarenta graus em Porto Alegre e chuvas intermináveis em Minas Gerais. Chuvas que, misturadas aos rejeitos da extração de mineral fizeram-nos viver sob ameaça de novos rompimentos de barragens em níveis preocupantes que põem a vida em estado de mal-estar incessante. Ver diversas famílias desalojadas em razão das chuvas, em razão do mercado da justiça e do domínio de multinacionais têm trazido consequências para nosso cotidiano, onde o sofrimento se instala. Os muitos casos de covid após a abertura para as comemorações natalinas e de ano novo, o aumento da taxa de mortalidade na cidade em que vivemos fez gerar um desassossego, um incerto fantasma espreita e ali paira dia-a-dia. Mesmo assim, não é pouco perguntar, em meio a tanto desassossego, velhas perguntas. Quem foi mesmo que mandou matar Marielle? Hoje, dia 16 de maio de 2022, fazem 50 meses, 1.524 dias sem resposta. E quantos mais teremos de contar?

Este seria um pouco do fardo de viver o Brasil, sua tendência à morte, seus extermínios e apagamentos. Estas zonas de não-direito entre o claro-escuro de uma guerra civil nem tão silenciosa, além de nos colocar em angústia, moldam os desafios de insistir em outra existência, em outras condições de vida e dignidade. No entanto, para que seja possível recuperar uma cultura política não se poderá declinar de nossos questionamentos e anseios por justiça. Pois, toda vez que declinarmos deste desejo reaparecerão anestesiadores hostis e oportunistas variados.

Se o genocídio permanece em curso, a realidade nunca cessou de ocultá-lo em uma dinâmica que altera sua intensidade conforme se logra amortecer nosso estado de excitação. Desejamos dias melhores, mas ainda empacados, presos em questões técnicas já monopolizadas.

As análises que nos falam sobre o bolsonarismo e seu investimento anti-intelectual (DUNKER, 2020), apontam um certo declínio da linguagem, um declínio da escuta, em que os movimentos emancipatórios e qualquer raciocínio transformador é alvo de silenciamento. Estes ataques constantes e deliberados dos setores conservadores minam cada vez mais nossas capacidades de pensar e sentir. A obediência intelectual se inscreve não só como ajuste institucional do pensamento, mas também como barramento da indignação e da circulação do sentimento de injustiça.

Se escutar é um ato sensível em declínio, talvez esta seja nossa tarefa para recompor o campo dos conflitos políticos e sociais.

Em ritmo constante e repetido, escutamos o trem passar pesado e estridente aqui em Itaúna. O som corta a cidade, carregando os cortes que fez nas montanhas, nas paisagens, nos rios, nas pessoas. O barulho do trem, concreto no ar, materializa um tipo de espoliação legalizada, sempre acompanhada de violações que, longe dos nossos olhos, ocorrem nos territórios brasileiros. Lugares que abrigam nascentes, correntes de águas que abastecem as cidades. Lugares onde moram populações tradicionais que defendem a biodiversidade, as florestas... a vida! – em sua extensão ecológica.

Por suas riquezas, estes lugares são alvos da mais cruel e gananciosa ação humana. E não se trata de caso isolado, senão um saque contínuo e cada vez mais intenso. No mês de abril deste ano, a Terra Indígena Yanomami veio a nos apresentar o mais alto grau de violência a que está submetida a terra espoliada e a população que a habita. Multiplicaram-se denúncias de crimes bárbaros cometidos por garimpeiros contra a população indígena. As lideranças das lutas que ocorrem nestes lugares passaram a divulgar casos de assassinatos, prostituição, abuso sexual de mulheres adultas e abuso sexual de crianças, indução ao consumo de bebidas alcoólicas e ingestão de substâncias tóxicas, como gasolina.

O pico de violência contra os Yanomami, sem dúvida, foi a morte de uma menina de doze anos que após ter sido estuprada, foi morta pelos garimpeiros juntamente a uma criança de três anos de idade. Depois desta barbárie os Yanomami, sem qualquer auxílio por parte do Estado brasileiro, foram se retirando de seu próprio território.

Mesmo antes da violência se intensificar devido ao garimpo ilegal nas terras Yanomami a perspectiva para o ano de 2022 não era das melhores. Às vésperas do encerramento de 2021, o presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuana (Condisi-YY), Júnior Hekurari Yanomami, declarou: “Enquanto o mundo se prepara para receber o ano de 2022, o meu povo Yanomami segue lutando para sobreviver contra malária e desnutrição”.  Ele se referia especialmente ao caso de uma menina de 5 anos e pesando apenas 8,6 kg devido à situação de desnutrição, mais um dentre outros diversos casos de desnutrição e malária.

A situação não é novidade para o Estado brasileiro, nem para a grande mídia, mesmo que tenha se intensificado nos últimos anos, o garimpo ilegal de ouro ocorre desde a década de 1980 nas terras Yanomami. Eis que se trata da maior reserva indígena do Brasil, situada entre os estados de Roraima e Amazonas, tendo parte no território venezuelano, lá vivem 30 mil indígenas em mais de 370 comunidades.

O conhecido xamã e porta-voz dos Yanomami, Davi Kopenawa, no início deste ano de 2022 fez um pedido de ajuda em nome da Mãe Terra, quando declarou:

“Estamos muito preocupados, tristes e revoltados. O ano de 2021 foi muito ruim para os povos indígenas. Na Terra Yanomami, aumentaram as xawaras [doenças] e também a quantidade de invasores. São mais de 20 mil garimpeiros rasgando todos os dias nossas comunidades para extrair ouro e ganhar dinheiro fácil. Por onde eles passam, deixam um rastro de destruição, violência, drogas, prostituição e morte. Em 2022, a invasão vai continuar. Bolsonaro não está tomando as providências para expulsar os garimpeiros. Ele não quer tirá-los de lá — muito pelo contrário! E não só da Terra Yanomami. Existem vários projetos de invasão das terras indígenas no Brasil. Eu sou xamã e não estou sozinho. Só os xamãs sabem a visão do futuro do Brasil e do mundo. O Tɨtɨri [Espírito da Floresta] se comunica com os xamãs. Somos ligados à terra e à floresta. Todos nós, povo do planeta, vamos sofrer, como já estamos sofrendo. O nosso mundo, o Planeta Terra, está totalmente ameaçado. Milhões já morreram com a doença Krukuri sɨkɨ wai [Covid-19]. O não indígena da cidade pensa que não vai adoecer, mas vai. A poluição traz a xawara, que já está toda espalhada, na floresta e no mar. O mundo está cheio de problemas. O povo da cidade pensa que o planeta está bem, mas no fundo, nós que conversamos com Tɨtɨri, sabemos que não. O Planeta Terra está gritando, pedindo socorro para que a floresta seja protegida. O povo da cidade não consegue escutar o pedido de socorro da Mãe-Terra (...).[1] grifo nosso.

Insistimos em perguntar, perguntar cada vez melhor e sem fugir do que nos angustia: o que aconteceu para que fechássemos os ouvidos para violações de pessoas que em seus territórios defendem com suas vidas o que nos é comum? E se abríssemos os ouvidos, seríamos capazes de imaginar outra política, outras relações que nos pusessem a pensar de forma mais aguda, mais atuante?

E se as palavras pesquisa ou teoria significassem algo mais que se juntar ao jogo de espelhos de uma institucionalidade das ideias? E se por detrás deste algo estivesse uma sensibilidade propositiva e atenta, perguntemos: quem se beneficia desta cultura jurídica anestesiada? De que vale cada palavra nossa escrita?

Talvez escrevamos por ainda não conseguir escutar, nem a nós mesmos, nem a um planeta que grita. Poderíamos, então, aprender a gritar por ele, se desaprendemos a gritar por nós mesmos?

 

Notas e Referências

DUNKER, Christian. Paixão da ignorância: a escuta entre Psicanálise e Educação. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020.

RODRIGUES, Caíque; OLIVEIRA, Valéria. Imagem de criança Yanomami com desnutrição expõe descaso na maior reserva indígena do país. Combate Racismo Ambiental, disponível em https://racismoambiental.net.br/2021/12/31/imagem-de-crianca-yanomami-com-desnutricao-grave-e-malaria-expoe-descaso-na-maior-reserva-indigena-do-pais/. Acesso em: 16 mai. 2022.

YANOMAMI KOPENAWA, Davi. A mãe terra pede socorro. Combate Racismo Ambiental, disponível em: https://racismoambiental.net.br/2022/01/04/a-mae-terra-pede-socorro-por-davi-kopenawa-yanomami/. Acesso em: 16 de mai. 2022.

[1] Fragmento da fala de Davi Kopenawa o inteiro teor pode ser encontrado em: A Mãe-Terra pede socorro. Por Davi Kopenawa Yanomami* | Combate Racismo Ambiental. Acesso no dia 16/05/22 às 13:09.

 

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