CANTEM, FILMEM, NÃO, NÃO FILMEM: UMA LIGEIRÍSSIMA NOTA ACERCA DA INDÚSTRIA CULTURAL, DA PROTEÇÃO DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE NO BRASIL E DE MAIS UMA PATACADA EM BRASÍLIA  

01/03/2019

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

Esta semana circulou através da mídia brasileira o conteúdo de um e-mail enviado pelo Ministro da Educação às escolas do Brasil impondo – segundo alguns, aconselhando – a leitura de uma carta que entre outros pontos fazia alusão ao slogan de campanha do atual governo e a execução do Hino Nacional, a ser cantado por estudantes que deveriam ser perfilados para serem filmados. E tais vídeos deveriam ser enviados à pasta ou à secretaria de comunicação do Planalto.

Quantas violações ao Direito cabem em um fato tão singelo?

No que toca a meu campo de estudo e investigação científica – o direito privado – posso identificar clara violação aos direitos da personalidade garantidos tanto no Código Civil brasileiro como no Estatuto da Criança e do Adolescente e, especialmente, na Constituição Federal, direitos, aliás, marcados por inegável fundamentalidade.

A imagem, intimidade e privacidade são direitos tutelados no Brasil. São direitos, expressamente, protegidos em nosso país há algum tempo. Permita-me o leitor destacar aqui a clareza do comando constitucional previsto no artigo 5, inciso X: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Creio que a regra não deixa dúvida alguma no que toca a sua mais adequada leitura: quase sempre indissociáveis, imagem, vida privada e intimidade têm proteção jurídica e, também por isso, a imagem de alguém não pode ser capturada, invadida, senão em situações bastante pontuais descritas na codificação civil de 2002.

No mais, a situação difundida pela mídia brasileira tampouco toca quaisquer das exceções textuais previstas na lei e dentre as quais estão: (a) a necessidade de administração da justiça, (b) a manutenção da ordem pública e (c) a permissão prévia daquele que tem a imagem capturada. O ponto aqui, descartados os dois primeiros contextos descritos anteriormente, é que não há como obter a permissão dos infantes para este fim.

Explico: a declaração de vontade dos pequeninos, normalmente, deve ser substituída – às vezes, somada – pela manifestação de seus representantes legais, normalmente, os pais, mas isso deve ocorrer apenas nas ocasiões em que se presuma o seu interesse. O que quero dizer com isso é que não só a ausência de manifestação dos representantes legais vicia o ato e torna as gravações ilegais, como mesmo que permissões possam ser eventual e pontualmente obtidas, no caso, não existe interesse da criança ou do adolescente que possa ser considerado merecedor de promoção, afinal, além do explicitado interesse governamental, que motivo merecedor de proteção jurídica estaria contido na divulgação da imagem e (ou) da voz de crianças e adolescentes, talvez, vestidos em verde e amarelo, a cantar o hino nacional?

É preciso identificar que o que parece ter informado a ordem ministerial foi a necessidade, o desejo ou a pretensão de espetacularização de questionáveis ações governamentais buscando promover o resgate patriótico e que isso seria feito por meio de campanhas publicitárias – sim publicidade, não propaganda – a serem moldadas com recurso a algumas das muitas ferramentas de convencimento e sedução elaboradas ao longo das últimas décadas pela Indústria Cultural tendo como personagens principais crianças e adolescentes em formação marcial alegremente a cantarolar alguns dos mais nobres sons da amada pátria.

O que não se percebeu – ou o que talvez tenha sido intencionalmente desprezado, o que seria muito mais grave – é que ao contrário do que habitualmente costumava ocorrer na vigência da Ditadura, a voz da autoridade, no Estado Democrático de Direito, não prevalece em detrimento de garantias constitucionalmente consagradas à custa de muita dor e muito sangue.

E preciso dizer ainda que o Estatuto da Criança e do Adolescente reforça a percepção que ora buscamos problematizar ao ditar em seu artigo 17, na tentativa de contextualizar o que é respeito à criança e ao adolescente, que “o direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”, robustecendo, portanto, nossa linha de argumentação, mormente porque, os destinatários da regra são o Estado, a Sociedade e a Família.

Aliás, o artigo 18 – também do Estatuto da Criança e do Adolescente – ratifica a afirmação ao dispor ser “dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”, regra aqui pinçada também por vivermos um tempo no qual, em boa medida, ânimos se acirram facilmente – não apenas na política brasileira, é preciso anotar – no acoplamento do alcance e velocidade atingidos por percepções pessoais externadas através da Internet com a pacóvia superficialidade e densidade que, comumente, informam a sua construção.

Daí que, ainda que nos termos da Lei 5.700 de 01.09.1971, o hino nacional deva ser entoado nas escolas públicas e particulares pelo menos uma vez por semana – regra com duvidosa efetividade nos cenários contemporâneos –, me permito afirmar com muita convicção que o ato de capturar as imagens das crianças e dos adolescentes nas escolas, consoante sugerido pelo Min. Vélez, implica a violação do direito de imagem e, a depender do contexto, também na violação do direito à intimidade e ambas as situações são aptas a ensejar, sem prejuízo de outras sanções, o nascimento do dever de reparar danos extrapatrimoniais exigíveis tanto do Estado, como, também da escola que filmou garotos e garotas que poderiam estar experimentando a construção de outros saberes.

Talvez por isso el Ministro – que parece conhecer bem pouco, tanto o Direito como o coração e a alma do povo brasileiro – tenha se apressado em reconhecer a sua inconteste patacada e inegável equivoco, desdizendo aquilo que outrora havia dito, consoante amplamente divulgado pela mídia na última terça feira.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Toronto // Foto de: Ana Paula Prada // Sem alterações

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