Cada um no seu quadrado: o Juiz pode oferecer e homologar transação penal nos Juizados Especiais Criminais?

06/01/2016

Por Rômulo de Andrade Moreira e Alexandre Morais da Rosa – 05/01/2016

Quando o Ministério Público deixa ou nega a transação penal ao agente, no âmbito dos Juizados Especiais Criminais, cabe ao juiz: a) instar o Procurador Geral, nos moldes do art. 28, do CPP; b) Oferecer e homologar, de ofício, os termos da Transação Penal; e c) rejeitar a denúncia por ausência de justa causa?

A Turma Recursal Criminal dos Juizados Especiais Criminais do Rio Grande do Sul, ao julgar um recurso de apelação interposto pelo Ministério Público, desconstituiu decisão em que o Juiz de Direito ofertou, de ofício, transação penal, prevista no art. 76 da Lei 9.099/95. Com o provimento da apelação, o Colegiado declarou a nulidade do processo desde a audiência preliminar, determinando a renovação dos atos processuais. A decisão foi lavrada na sessão do dia 14 de dezembro. Veja como ficou a ementa:

APELAÇÃO-CRIME. RITO PROCESSUAL. INOBSERVÂNCIA. PROPOSTA DE TRANSAÇÃO PENAL OFERTADA DE OFÍCIO. ATRIBUIÇÃO EXCLUSIVA DO MP.  1. Prerrogativa exclusiva do Ministério Público, na condição de titular da ação penal pública, para propor ou não os benefícios despenalizadores da transação penal e da suspensão condicional do processo.  2. Discricionariedade decorrente de princípio constitucional, insculpido no artigo 129, inciso I, da Constituição Federal, que outorga ao Ministério Público, como “dominus litis”, a atribuição privativa de promover a ação penal pública e de dispor da coisa que lhe foi outorgada.   3. Descabimento de oferta por iniciativa do Magistrado, em atenção ao que dispõe o artigo 76, caput, da Lei 9099/95.  4. Situação que difere de hipótese em que o Magistrado adapta a proposta ministerial à realidade dos fatos, observando a capacidade do transigente, situação que se insere no poder discricionário que lhe é conferido, sem que isso caracterize alteração do cerne da oferta.  5. Ademais, ausente advogado por ocasião da audiência preliminar, há nulidade absoluta do ato, que deve ser renovado. APELO MINISTERIAL PROVIDO. RECURSO CRIME. TURMA RECURSAL”.

Correta a decisão da Turma Recursal gaúcha, pois, evidentemente, não pode o Juiz de Direito propor, e ele próprio homologar, a transação penal, sob pena de mácula indelével ao sistema acusatório. Antes de avançarmos, e apenas para relembrar, no procedimento sumaríssimo, não tendo tido êxito a composição civil dos danos, ou, ainda que o tenha, tratando-se de ação penal pública incondicionada, será aberta ao Ministério Público oportunidade para propor a transação penal, prevista na Constituição da República (art. 98, I), instituto polêmico, bem criticado por Geraldo Prado[1], e que guarda alguma semelhança com o plea bargaining (onde se transaciona de maneira ampla sobre a pena, tipo penal, conduta, etc.) e o guilty plea (onde há uma admissão formal da culpa). Não é a nossa intenção neste trabalho discutir a legitimidade da transação penal, matéria que enseja a discussão delicadíssima acerca do consenso e da barganha em um Processo Penal democrático. Recomendamos, aliás, a excelente monografia de Vinícius Gomes de Vasconcellos: Barganha e Justiça Negocial[2].

De toda maneira, no modelo processual penal brasileiro aplicável aos Juizados Especiais, por meio de barganha, não é possível aplicar ao suposto autor do fato pena privativa de liberdade, pois é absolutamente impossível, à luz do nosso direito positivo, converter-se a pena restritiva de direitos ou a multa transacionada, e não cumprida, em pena de privação da liberdade (não haveria parâmetro para a conversão no primeiro caso – art. 44, § 4º., CP; e, no segundo caso, porque o art. 182 da Lei de Execuções Penais foi expressamente revogado pela Lei nº. 9.268/96). Neste sentido, conferir o Recurso Extraordinário nº. 795567, tendo como relator o Ministro Teori Zavascki.

Aliás, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que, havendo descumprimento do acordo, devem os autos retornar para o Ministério Público oferecer denúncia (Súmula Vinculante nº. 35), situação também complicada diante da desconsideração da decisão pelo mesmo órgão julgador que a homologou (aqui).

Pois bem.

Propondo de ofício a transação penal, afasta-se completamente o Juiz de Direito dos postulados do sistema acusatório que, “en la práctica, ha demonstrado ser mucho más eficaz, tanto para profundizar la investigación como para preservar las garantías procesales”, como bem acentuou Alberto Binder[3].

Não esqueçamos que desde a Constituição da República, a pretensão acusatória é exclusiva do Ministério Público, nos termos do art. 129, I, salvo apenas a hipótese da ação penal de iniciativa privada subsidiária da pública, por expressa permissão constitucional (art. 5º., LIX). Ocorre que a grande dificuldade no Brasil é, como afirma Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, “tentar quase o impossível: compatibilizar a Constituição da República, que impõe um Sistema Acusatório, com o Direito Processual Penal brasileiro atual e sua maior referência legislativa, o CPP de 41, cópia malfeita do Codice Rocco de 30, da Itália, marcado pelo princípio inquisitivo nas duas fases da persecutio criminis, logo, um processo penal regido pelo Sistema Inquisitório. (...) Lá, como é do conhecimento geral, ninguém duvida que o advogado de Mussolini, Vincenzo Manzini, camicia nera desde sempre, foi quem escreveu o projeto do Codice com a cara do regime[4].

Imagine-se, por exemplo, a hipótese do suposto autor do fato não aceitar a proposta de transação penal formulada e homologada pelo Magistrado. O Ministério Público então, certamente, oferecerá denúncia (já que não propôs a transação penal). Pergunta-se? Qual a condição que terá este Juiz para presidir o julgamento e formular a sentença, do ponto de vista da sua imparcialidade, se ele próprio já fez um prejulgamento, ao propor a aplicação de uma sanção penal ao suposto autor do fato? Ora, a imparcialidade é um atributo indispensável ao Magistrado no Sistema Acusatório. Como diz Juan Montero Aroca, "en correlación con que la Jurisdicción juzga sobre asuntos de otros, la primera exigencia respecto del juez es la de que éste no puede ser, al mismo tiempo, parte en el conflicto que se somete a su decisión."[5]

É bem verdade que há muitos julgadores que esquecem a sua condição de Magistrados e, como verdadeiros Inquisidores medievais, vão em busca de uma tal (inalcançável) verdade real, como se ainda estivessem trabalhando sob a ótica de um processo inquisitivo no qual “em matéria criminal o estabelecimento da verdade era para o soberano e seus juízes um direito absoluto e um poder exclusivo”.[6]

A propósito, interessante transcrever um depoimento de Leonardo Boff, ao narrar os percalços que passou até ser condenado pelo Vaticano, sem direito de defesa e sob a égide de um típico sistema inquisitivo. Após ser moral e psicologicamente arrasado pelo secretário do Santo Ofício (hoje Congregação para a Doutrina da Fé), Cardeal Jerome Hamer, em prantos, disse-lhe o brasileiro: "Olha, padre, acho que o senhor é pior que um ateu, porque um ateu pelo menos crê no ser humano, o senhor não crê no ser humano. O senhor é cínico, o senhor ri das lágrimas de uma pessoa. Então não quero mais falar com o senhor, porque eu falo com cristãos, não com ateus." Por uma ironia do destino, depois de condenado pelo inquisidor, Boff o telefonou quando o Cardeal estava à beira da morte, fulminado por um câncer. Ao ouvi-lo, a autoridade eclesiástica desabafou, chorando: "Ninguém me telefona... foi preciso você me telefonar! Me sinto isolado (...) Boff, vamos ficar amigos, conheço umas pizzarias aqui perto do Vaticano..." (Revista Caros Amigos – As Grandes Entrevistas, dezembro/2000).

Enfim, não apresentada proposta de transação penal, cabe ao Juiz, conforme a Sumula n 696, do STF, valer-se da regra do art. 28 do CPP ou, reconhecendo que há direito subjetivo do agente, rejeitar a denúncia por ausência de justa causa. As opções dependem da compreensão de cada julgador, nos parecendo mais adequada a segunda, já que não se mete a dizer que há crime, nem reclamar do Ministério Público ao seu chefe. Cada um no seu quadrado. Simplesmente não recebe a denúncia. De qualquer forma, pela conclusão, está correta a Turma Recursal.


Notas e Referências bibliográficas

[1] PRADO, Geraldo. Transação Penal. Coimbra: Almedina, 2015. [2] VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Barganha e Justiça Criminal Negocial: Análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no Processo Penal Brasileiro. São Paulo: IBCCRIM, 2015. [3] BINDER, Alberto. Iniciación al Proceso Penal Acusatório, Buenos Aires: Campomanes, 2000, p. 43. [4] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. O Núcleo do Problema no Sistema Processual Penal Brasileiro, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº. 175, junho/2007, p. 11. [5] MONTERO AROCA, Juan. Sobre la Imparcialidad del Juez y la Incompatibilidad de Funciones Procesales, Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, p. 186. [6] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, Petrópolis: Editora Vozes, 1998, p. 32.


  Rômulo Moreira

Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.

 

Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC).

Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com  Facebook aqui           


Imagem Ilustrativa do Post: Jason Matlo – Aveda Eco Fashion Week – Opening Gala Feb 2011 // Foto de:  Jason Hargrove // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/salty_soul/5472503116/in/photostream/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura