Eu pensava na palavra sorte e fui bater no Rubicão. Era um riozinho que comandantes romanos, por razões de controle político e militar, estavam proibidos de atravessar. Um limite à tentação. Se um general o cruzasse, entendiam, se capacitaria a pôr em risco a estabilidade do poder central.
Júlio César cruzou-o com suas legiões. Ele sabia perfeitamente que estava conflitando com o Senado e deflagrando uma guerra cujos resultados se poriam além do seu controle ou do controle de quem quer que fosse. Então, a frase famosa: alea jacta est. O mais todo mundo sabe: César passou a história de Roma e a história do mundo a limpo. César tornou-se o dono do mundo.
Alea jacta est significa, em tradução literal, os dados estão lançados. Mas dados como jogo, como o imponderável, daí a palavra alea ser traduzida como sorte e passar a significar sorte. “A sorte está lançada”: a Wikipédia diz que a expressão é “utilizada quando os fatores determinantes de um resultado já foram realizados, restando apenas revelá-los ou descobri-los”.
Ou seja, a expressão diz de um ato praticado e irreversível por tão só haver sido executado, e do qual decorrerão necessariamente outros, porém aleatórios. Seja para o bem, seja para o mal (aliás, dificilmente haverá bem ou mal que atendam o interesse geral), a marcha dos acontecimentos será indiferente a quem quer que seja.
Enfim, sorte são os acontecimentos do mundo nos quais me insiro e talvez interfira, mas não a ponto de determiná-los. Os dicionários concordam: sorte é a “força invencível a que se atribuem o rumo e os diversos acontecimentos da vida” (Houaiss); ou a “combinação de circunstâncias ou de acontecimentos que influem de um modo inelutável” (Priberam); ou, ainda, a “força que intervém em todos os acontecimentos da vida” (Mor).
Voltando do Rubicão para o que eu, ao dar com ele, pensava sobre a palavra: é que sorte passou a ser usada como antônimo de azar (que também, como sorte, pode ser sinônimo de acaso, mas isso é outra história). Sorte tornou-se boa sorte, deixou de ser apenas sorte.
Eu pensava sorte como aleatório, acidental, contingente. Eis que me acode uma preleção trazida por Gresiela Nunes da Rosa: "É necessário algum desenvolvimento intelectual para se acreditar no acaso; o primitivo, o ignorante e com certeza uma criança já sabem atribuir uma razão para tudo o que acontece" (Freud, A feminilidade).
Quer dizer, o boçal pega um acontecimento que resulta de uma complexa inter-relação de variáveis incidentes – aleatórias e administradas, com as administradas, à sua vez, sofrendo a influência de inúmeras outras variáveis imponderáveis – e elucida tudo, buscando inspiração em alegadas vontades das estrelas, das divindades, dos espíritos.
Interpreta-se o sentido do presente com base nessas “leituras” das intenções ocultas, sempre o justificando, numa espécie de profecia sobre o passado: lê-se o passado e se o explica depois de ele já ser presente e, então, já esclarecido, se o esclarece. Um simplismo que apazigua os desprovidos de hipóteses complexas.
E, interessante, ainda se fazem mapas para o devir. Por meio de cartas de baralho, borra de café, velas, adivinhações, jogos de Tarô, marcas das mãos, alguma miçanga, é vaticinado o futuro. Claro, o resultado, para os faltos de sensatez, acontece em conformidade, ainda que não seja igual, mas para isso sempre cabe justificação, pois “deus escreve certo por linhas tortas”.
As pessoas sofrem horrores à frente do fortuito. Essa falta de gosto em face do aleatório me apoquenta. O bom da vida me parece ser exatamente esse amanhã incerto: ao acordar, se o acordar acontecer, seremos o mundo e eu, e aí vamos ver. O vamos ver é o tempero do existir.
Ruminava meu aborrecimento com quem gosta de um desenho para seus passos quando a boa sorte me aparece com Marina Santana, amiga artista que muito prezo. Principio o diálogo: – Que importância dás ao aleatório? – Toda. – Assim, tudo? – Creio que sim. – Não crês que incida algo de vontade tua? Entregas-te totalmente à sorte?
Percebo que ela se dá alguma meditação, e então prossegue: – Vai algo da minha vontade, sim. Talvez seja impossível o inteiramente aleatório, mas, em alguns momentos, entrego-me ao possível. – Seja à sorte boa, seja à sorte má?
Nova pausa de reflexão, depois completa: – O interessante do aleatório é a possibilidade, as descobertas. Mas não me entrego a qualquer coisa que venha. Eu deixo a vida correr e, então, administro o aleatório, mas, às vezes, exponho-me de propósito às possibilidades. – Ah... isso me inspira! Queres saber da minha inspiração? – Eu quero.
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