Projeto Elas no Processo na Coluna O Novo Processo Civil Brasileiro / Coordenador Gilberto Bruschi
Encontra-se em tramitação perante a Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 4.778/2020, oriundo do Anteprojeto elaborado por Grupo de Trabalho instituído pelo Conselho Nacional de Justiça, que prevê a nova disciplina da Ação Civil Pública, reunindo o quanto atualmente disciplinado pela Lei nº 7.347/1985, arts. 81 a 104, do Código de Defesa do Consumidor e art. 2º-A, da Lei 9.494/1997.
Conquanto imbuído do intuito de “aprimorar a atuação do Poder Judiciário nas ações de tutela de direitos coletivos e difusos”, bem como de “corrigir anomalias e incoerências que geram falta de unidade do direito e potencial insegurança jurídica”[1], o Projeto de Lei tem sofrido críticas, e foi acusado de ser “um presente para os bancos, para os grandes interesses econômicos e para o Estado”[2].
Sem a mínima pretensão de esgotar o tema, serão destacadas algumas alterações promovidas pelo PL, no intuito de reforçar o debate a respeito de relevantes aspectos da possível e futura legislação, sem prejuízo de que venham a ser objeto de trabalhos posteriores, com tratamento mais pormenorizado.
1. Qual o objeto do PL nº 4.778/2020: ação coletiva ou ação civil pública?
A primeira questão para que se chama a atenção, diz respeito ao instituto disciplinado pelo Projeto de Lei. Muito embora, o art. 1º, disponha que “esta Lei dispõe sobre a nova Lei de Ação Civil Pública”, nos demais dispositivos, todas as menções são feitas às ações coletivas. Ora, como bem destacado na exposição de motivos do próprio Projeto, a Ação Civil Pública é espécie de ação coletiva[3], razão pela qual não restou claro se as suas disposições serão aplicáveis às demais ações coletivas, como o mandado de segurança coletivo, ação popular, habeas corpus coletivo e ação de improbidade administrativa, dentre outros. Até porque, neste particular, a lei foi silente.
2. Competência e prevenção
Outra relevante questão consiste na alteração da regra de competência para propositura das ações civis públicas, uma vez que o art. 14 do PL determina que “a competência para o processamento da ação coletiva é do foro da capital do Estado e, preferencialmente, de varas especializadas, sendo possível ao exequente optar pelo foro de seu domicílio para o cumprimento da sentença”. A norma em comento caminha em direção oposta ao art. 2º da Lei nº 7.347/1985, que atribui competência funcional – e, portanto, absoluta – ao juízo do local do dano, e, ainda, ao art. 93 do CDC, que indica o foro da capital apenas para danos de âmbito regional ou nacional.
Entende-se que a disciplina atualmente prevista no CDC se afigura mais adequada e preserva de forma mais efetiva os direitos dos substituídos em demandas cujo dano tenha extensão local. Ademais, a norma foi silente quanto ao cumprimento de eventuais tutelas provisórias deferidas no âmbito da Ação Civil Pública. Deveria o substituído instaurar um incidente de execução provisória em seu domicílio, ou no foro do local do dano, ou, ainda, deveria se deslocar até o foro de tramitação da ação para requerer o cumprimento da tutela à sua situação concreta?
Também resta alterado o critério de prevenção, na hipótese de propositura de ações conexas. Pela disciplina atual, “a propositura da ação prevenirá a jurisdição do juízo para todas as ações posteriormente intentadas que possuam a mesma causa de pedir ou o mesmo objeto” (art. 2º, parágrafo único da Lei nº 7.347/1985). De acordo com o art. 28, parágrafo único do PL, “a prevenção ocorre no momento da decisão que determina a citação”. Entendemos que seria mais coerente manter o critério atualmente previsto, que evidenciaria um alinhamento com o critério previsto pelo art. 59 do CPC/15, segundo o qual “o registro ou a distribuição da petição inicial torna prevento o juízo”.
3. Representatividade adequada das associações
Louvável, em nosso entender, a iniciativa do PL nº 4.778/2020 em incluir a demonstração, pela associação autora da Ação Civil Pública, da sua representatividade adequada (art. 4º, V). A exigência desse requisito como condição de procedibilidade da ação se faz necessária por um duplo aspecto. Assegura, por um lado, que defesa dos substituídos seja realizada por ente que possua qualificação necessária para tanto[4]. E evitará, por outro lado, o manejo abusivo de ações civis públicas em prejuízo do réu, que teria o ônus de se defender de uma ação proposta por uma associação inidônea.
O art. 5º do PL nº 4.778/2020 elenca, exemplificativamente, critérios para aferição da representatividade adequada. Em nosso entender, tais critérios permitem a aferição da solidez institucional, qualificação do corpo técnico e capacidade financeira da associação que proporá a Ação Civil Pública, e se afiguram corretos. Importa destacar, no entanto, que o critério elencado no inciso V – “laudo indicativo do número de pessoas atingidas pelo alegado dano” – não poderá ser considerado isoladamente, uma vez que não se presta a confirmar as características essenciais acima indicadas e consiste tão somente em elemento de reforço aos demais critérios anteriormente dispostos na norma.
4. Litispendência e controle da multiplicidade de ações
Talvez este seja o principal avanço do PL nº 4.778/2020. O art. 27, § 4º impõe expressamente que “não se admite a propositura de mais de uma ação coletiva com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, ainda que não se trate do mesmo autor”. E o parágrafo seguinte é conclusivo ao consignar que “considera-se haver litispendência no caso do parágrafo anterior, devendo a segunda ação ser extinta sem resolução de mérito”.
De acordo com a exposição de motivos do Projeto, “isto garante, entre outras coisas, que o mesmo agente econômico não seja sujeito passivo de infinitas ações coletivas com o mesmo objetivo, não se comprometendo, assim, a saúde econômica da sociedade e não se criando entrave à prosperidade do país”.
Conforme o art. 11 do PL, o CNJ deverá concentrar as informações a respeito de todas as ações civis públicas propostas no país e os seus relatórios mensais “serão necessariamente consultados antes da propositura da ação, para a demonstração do interesse processual e para evitar eventual litispendência” (arts. 11, § 2º)[5].
Em que pese o controle previsto pelo PL nº 4.778/2020 tenha sido considerado, por parte da doutrina, “medida burocratizante e dificultadora do acesso à justiça e que na prática pode se revelar inócua”[6], entendemos, ao contrário, que essa iniciativa fortalece o instituto da Ação Civil Pública, seja por impedir o manejo abusivo de inúmeras ações com pedidos idênticos pelos legitimados, seja porque os réus não mais poderão aproveitar-se da multiplicidade de ações sobre o tema para deixar de dar cumprimento às determinações judiciais.
Ademais, a simples consulta ao cadastro a ser implementado e atualizado pelo CNJ antes do ajuizamento da Ação Civil Pública não se afigura uma barreira ao acesso à justiça. Ao contrário, encerra uma providência útil àquele potencial autor coletivo que, verificando a existência de ação pretérita, poderá ingressar na qualidade de litisconsorte (art. 4º, § 2º do PL) ou assistente litisconsorcial (art. 4º, § 5º do PL).
5. Destinação dos valores de indenizações
O art. 8º do PL implementa em seus parágrafos mais uma alteração salutar para o regramento da Ação Civil Pública, encerrando a polêmica a respeito da destinação dos valores atualmente destinados ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDDD), previsto no art. 13 da Lei nº 7.347/1985 e a sua inefetividade em reparar o dano ao direito objeto da ação.
De acordo com o art. 8º, § 1º do PL nº 4.778/2020, “nas ações que versem sobre direitos coletivos em sentido estrito ou difusos, sempre que possível, o juiz determinará a destinação dos valores pedidos, para que sejam diretamente empregados na realização de obras ou atividades para restaurar o dano causado”. E, ainda, de acordo com o art. 8º, § 2º, “a destinação ao fundo de que trata o art. 31 é forma subsidiária de cumprimento de sentença”.
Na hipótese de indenizações arbitradas em ações civis públicas que versem sobre direitos individuais homogêneos, o valor da condenação será revertido para o fundo apenas se o montante for ínfimo ao ponto de a execução se tornar mais onerosa ao beneficiário (art. 8º, § 3º e art. 31, § 3º). A prioridade, como se vê, é a plena reparação do dano, de forma mais efetiva e transparente.
6. Prestígio à audiência pública
Vislumbramos, também, quanto a este tema, mais um acerto do PL nº 4.778/2020. As audiências públicas, além de um instrumento de participação democrática no processo, podem funcionar como uma excelente ferramenta de aferição da representatividade adequada dos legitimados. É uma boa oportunidade de verificação, pelo magistrado, se o substituto processual está alinhado com os interesses dos substituídos.
O art. 16 do PL prevê que “em todas as ações em que a pretensão verse sobre direito coletivo em sentido estrito e difuso, ou sobre direitos individuais homogêneos, tratados coletivamente, é cabível a participação de amicus curiae e é recomendada, de acordo com as peculiaridades do caso, a realização de, pelo menos, uma audiência pública”.
Importante iniciativa foi prever a necessidade de realização de audiência pública antes da homologação de acordo ou Termo de Ajustamento de Conduta (art. 29, §§ 2º e 6º), de modo a evitar que o ajuste não reflita os interesses dos substituídos. Importa considerar, no entanto, que a melhor interpretação das referidas normas é no sentido de impor a realização de audiência pública como requisito de validade de qualquer acordo ou TAC, e não apenas como condição de eficácia em todo território nacional.
A ressalva é válida, tendo em vista que o art. 29, § 6º do PL dispõe que “o termo de ajustamento de conduta pode ser celebrado exclusivamente pelo Ministério Público e para adquirir validade por todo o território nacional deve ser levado à homologação judicial, precedida de audiência pública”. Uma interpretação mais restritiva do cabimento da audiência pública apequenaria o instituto, e não atenderia ao objetivo de promover a checagem da representatividade adequada do substituto processual.
7. Novo regime da suspensão de liminar?
O art. 27, §§ 2º e 3º do PL nº 4.778/2020 parece contemplar um regime distinto para o instituto da suspensão de liminar previsto no art. 4º da Lei nº 8.437/92. De acordo com o PL, “a requerimento do réu, poderá o presidente do tribunal, a que competir o conhecimento do respectivo recurso, suspender a execução da medida concedida em caráter provisório, em decisão fundamentada, da qual caberá agravo para uma das turmas julgadoras, em 10 dias” (§ 2º). O § 3º dispõe, ainda, que “desta decisão caberá recurso especial ou recurso extraordinário, conforme o caso”.
As diferenças para a lei atualmente vigente são evidentes. Antes de tudo, o PL prevê que o “réu” pode formular o pedido de suspensão ao Presidente do Tribunal, ao tempo em que o art. 4º da Lei nº 8.437/92 é claro em restringir o cabimento da medida ao Ministério Público ou pessoa jurídica de direito público interessada. Ademais, a medida somente se afigura cabível nas ações civis públicas propostas “contra o Pode Público ou seus agentes”.
A lei atual prevê, ainda, que o pedido de suspensão de liminar só cabível “para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”, restrição que não aparece no PL, dando margem à interpretação de que seria cabível em qualquer hipótese de decisão desfavorável a qualquer réu.
Muito embora em ambos os instrumentos seja prevista a possibilidade de colegializar a decisão da Presidência por meio da interposição de agravo interno – no prazo de 5 dias pela lei atual e no prazo de 10 dias pelo PL –, os passos seguintes também revelam novas diferenças. De acordo com a Lei nº 8.437/92, apenas na hipótese de o colegiado referendar a decisão objeto da suspensão, caberá novo pedido de suspensão ao presidente do tribunal superior competente para conhecer da matéria. O PL, por outro lado, prevê o cabimento de recurso especial ou extraordinário, independentemente do resultado do julgamento do agravo interno.
O PL, entretanto, é silente quanto à possibilidade de manejo da medida contra sentenças, ao contrário do previsto no art. 4º, § 1º da norma atualmente vigente. Também restou silente quanto à disciplina da relação entre o pedido de suspensão e a interposição de agravo de instrumento (atualmente prevista no art. 4º, § 6º da Lei nº 8.437/92), ou mesmo sobre os efeitos da decisão que concede a suspensão, uma vez que a norma atual prevê que “a suspensão deferida pelo Presidente do Tribunal vigorará até o trânsito em julgado da decisão de mérito na ação principal” (art. 4º, § 9º da Lei nº 8.437/92).
Não ficou claro, portanto, como será o regime dessa “nova” suspensão de liminar em cotejo com a legislação atual, que não restou revogada pelo PL. Ademais, tendo em vista as considerações já feitas no item 1, tampouco está claro se esse novo regramento seria aplicável também ao mandado de segurança coletivo e ação popular, ou se para estes institutos seria mantido o regramento previsto na Lei nº 8.437/92.
8. Despesas processuais
O art. 35 do PL nº 4.778/2020 estabelece que os regimes de custas e sucumbência nas ações civis públicas deverão seguir as regras previstas no CPC. Isso quer dizer que, se a ação for proposta por associação, esta deverá arcar com as custas iniciais para seu ajuizamento, bem como honorários periciais e demais despesas, além de arcar com o ônus da sucumbência, caso seja derrotada. Sendo a ação proposta por ente público, será aplicável o regramento previsto pelo art. 91 do CPC, quanto às despesas de atos processuais, e art. 85, §§ 3º a 7º do CPC para arbitramento de sucumbência. Na hipótese de a ação ser proposta pelo Ministério Público ou Defensoria Pública, a sucumbência só será devida, de acordo com o parágrafo único do art. 35, se a propositura da ação for considerada “manifestamente infundada”, por decisão unânime.
Muito embora as inovações no regime de despesas processuais tenham recebido críticas[7], entende-se que a alteração desestimulará o ajuizamento de ações aventureiras e tornará o instituto mais confiável. Corrigirá, ainda, a distorção prevista na legislação atual, na qual apenas o réu tem riscos financeiros na ação coletiva. A previsão de riscos para ambas as partes promove a isonomia e não pode ser vista como um óbice ao acesso à justiça, afinal, o acesso de autores coletivos inescrupulosos ao Poder Judiciário, por igual, representa um desserviço. Ademais, sendo o caso, nada obsta a concessão de gratuidade ao autor coletivo.
Sem prejuízo de, futuramente, aprofundar o debate sobre as questões ora destacadas ou de abordar outras tantas que aqui não foram mencionadas – como a questão da prescrição nas ações individuais, as significativas alterações no regime da coisa julgada e a consagração da eficácia nacional das sentenças e tutelas provisórias, o que poria fim ao conflito atualmente existente entre o art. 16 da Lei nº 7.347/1985 e art. 103 do CDC –, conclui-se que o PL nº 4.778/2020 agregará relevantes e necessárias mudanças ao regramento da Ação Civil Pública, muito embora seja necessário o amadurecimento de algumas questões, sobretudo para garantir coerência e integridade com o sistema.
Notas e Referências
[1] https://www.cnj.jus.br/acoes-coletivas-cnj-entrega-ao-presidente-da-camara-anteprojeto-para-aperfeicoar-lei/. Acesso em 21.11.2020.
[2] Gidi, Antonio. O Projeto CNJ de Lei de Ação Civil Pública. Avanços, inutilidades, imprecisões e retrocessos: a decadência das ações coletivas no Brasil. Disponível em https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3724081&download=yes. Acesso em 21.11.2020.
[3] Nesse sentido: SHIMURA, Sérgio. Tutela coletiva e sua efetividade. São Paulo: Método, 2006; e CAVALCANTI, Marcos de Araújo. A Questão Terminológica: ''Ação Civil Pública" ou "Ação Coletiva"?. Revista Dialética de Direito Processual nº 132, p. 76-87.
[4] Nesse sentido, Thais Amoroso Paschoal defende que a representatividade adequada da associação autora tende a “viabilizar a adoção de técnicas coletivas que possam inspirar a adequada tutela coletiva de direitos”. Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/elas-no-jota/enfim-a-tutela-coletiva-pensada-coletivamente-29102020. Acesso em 21.11.2020.
[5] No mesmo sentido, o art. 15 determina que “Para demonstrar interesse processual, quando da propositura da ação, os legitimados alistados no art. 4º devem demonstrar terem feito, anteriormente, a consulta ao cadastro do Conselho Nacional de Justiça”.
[6] OSNA, Gustavo; FRANCISCO, João Eberhardt; AZEVEDO, Julio Camargo de; CINTRA, Lia Carolina Batista; ASPERTI, Maria Cecilia de Araújo; SOUZA, Michel Roberto Oliveira de. Primeiras impressões dos recentes projetos de ação coletiva. Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/acao-coletiva-primeiras-impressoes-dos-recentes-projetos-09112020. Acesso em 21.11.2020. Os autores defendem, ainda, que “De um lado, bastaria alguma singela modificação da causa de pedir ou do pedido para evitar a litispendência. De outro, é de se perguntar: qual seria o conteúdo desta certidão? Seria possível aferir de modo efetivo, mediante análise de uma certidão, semelhanças e diferenças entre as demandas? Ademais, trata-se de tarefa que poderia ser realizada pelas serventias, inclusive com utilização de inteligência artificial, sem a necessidade de se impor tal ônus às partes”.
[7] OSNA, Gustavo; FRANCISCO, João Eberhardt; AZEVEDO, Julio Camargo de; CINTRA, Lia Carolina Batista; ASPERTI, Maria Cecilia de Araújo; SOUZA, Michel Roberto Oliveira de. Primeiras impressões dos recentes projetos de ação coletiva (parte II). Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/primeiras-impressoes-dos-recentes-projetos-de-acao-coletiva-parte-ii-19112020. Acesso em 21.11.2020.
Imagem Ilustrativa do Post: Statue of Justice - The Old Bailey // Foto de: Ronnie Macdonald // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/ronmacphotos/8704611597
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode