As alterações introduzidas pelo legislador na Lei de Improbidade Administrativa, através da Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, vieram para cessar os excessos advindos da Lei nº 8.429/1992, vigente desde o dia 2 de junho de 1992. Ao longo da vigência da Lei de Improbidade várias atrocidades foram cometidas contra o agente público, visto o Ministério público tachava como ato de improbidade até as meras irregularidades, muitas vezes causadas pelo desconhecimento do agente público.
Com isso, no decorrer da vigência da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, inúmeros agentes públicos foram demitidos de seus cargos, tiveram seus direitos políticos suspensos, além de aplicação de multas desproporcionais em decorrência da prática de meras irregularidades.
Insta destacar que o Tribunais Superiores já vinham reformando as sentenças proferidas por Juízes de primeiro grau, ao fundamento da desproporcionalidade das decisões, argumentando, ainda, que a intenção do legislador ao introduzir a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992 foi punir aqueles que agissem com desonestidade, com o objetivo de enriquecer ilicitamente, ou de obter vantagem indevida, para si ou para outrem, ou que causasse dano ao erário, pois a intenção do legislador não era punir toda e qualquer prática de ato ilegal, mas aqueles atos praticados com desonestidade em desfavor dos interesses da Administração Pública.
Dessa maneira, agiu bem o legislador reformador ao realizar as alterações na Lei de Improbidade para corrigir os desacertos presentes no texto original, que admitia interpretações prejudiciais, que por muitas vezes afastou pessoas bem-intencionadas da vida pública, conforme será explanado a seguir.
1. BREVES COMENTÁRIOS SOBRE AS ALTERAÇÕES NA LEI DE IMPROBIDADE
Inicialmente, vale registrar que a Ação de improbidade Administrativa foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro através da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, tendo como objetivo penalizar o agente público e o terceiro em colaboração que praticasse conduta que lesionasse os interesses da Administração.
Para Cássio Scarpinella Bueno a improbidade administrativa pode ser definida como espécie do gênero imoralidade administrativa, qualificada pela desonestidade de conduta do agente público, mediante a qual este se enriquece ilicitamente, obtém vantagem indevida, para si ou para outrem, ou causa dano ao erário. Desonestidade implica conduta dolosa, não se coadunando, portanto, com o conceito de improbidade a conduta meramente culposa.[1]
Nas palavras de José Jairo Gomes, a improbidade consiste na “ação desvestida de honestidade, de boa-fé e lealdade para com o ente estatal, compreendendo os atos que, praticados por agente público, ferem a moralidade administrativa”.[2]
Dessa forma, mesmo na vigência da redação original da Lei de Improbidade Administrativa podia se dizer que o ato de improbidade era muito mais do que uma simples violação de uma norma, tendo em vista a necessidade de comprovação da deslealdade do agente público ou do particular em colaboração (artigo 3º). Entretanto, pelo fato da redação original da Lei de Improbidade Administrativa conter conceitos abertos e indeterminados, até as meras irregularidades eram classificadas como ato de improbidade, por consequência, vários agentes públicos foram condenados ou são réus em ações de improbidade, mesmo não existindo prova de que o ato administrativo praticado em desconformidade resultou em dano ao erário.
Com o advento da Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, o legislador realizou importantes alterações na Lei de Improbidade. Dentre as de maior relevância pode-se citar a seguintes: I) a adoção expressa da responsabilidade subjetiva do agente público (artigo 1º, § 3º); II) a tipificação apenas das condutas dolosas (artigo 1º, § 1º); III) o afastamento do ato de improbidade em decorrência de divergência de interpretação da lei (artigo 1º, § 8º); IV) a possibilidade de computar-se-á retroativamente o intervalo de tempo entre a decisão colegiada e o trânsito em julgado da sentença condenatória, para fins de suspensão de direitos políticos (art. 12, § 10); V) maior rigor para o deferimento de indisponibilidade de bens do acusado (nova redação do artigo 16); VI) o Ministério público passou a ser titular exclusivo da ação de improbidade (artigo 17, caput); VII) a necessidade de individualizar a conduta do réu, bem como a obrigatoriedade de apontar os elementos probatórios mínimos que demonstrem a prática do ato de improbidade administrativa (artigo 17, § 6º), VIII) maior responsabilização do parecerista (artigo 17, § 20).
O Superior Tribunal de Justiça já tinha jurisprudência firme não admitindo a responsabilidade objetiva na aplicação da Lei de Improbidade[3], pois o agente público não poderia ser penalizado pelo simples exercício de cargo público, conforme muitas vezes posicionavam os Juízes de Primeiro Grau.
A Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, pôs fim a esta discussão, ao introduzir o § 3º no artigo 1º da Lei de Improbidade Administrativa, prevendo expressamente que “o mero exercício da função ou desempenho de competências públicas, sem comprovação de ato doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade administrativa”, ou seja, a nova norma adotou expressamente da responsabilidade subjetiva.
Conforme dito linhas acima, sempre foi objetivo do legislador penalizar as condutas praticadas com dolo ou com erro grosseiro, uma vez que que, para a configuração do ato de improbidade administrativa, seria necessária a perquirição do elemento volitivo do agente público e de terceiros, não sendo suficiente, para tanto, a prática de atos com mera irregularidade.
Ora, as alterações introduzidas pela Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, afastaram por fim essa discussão, pois atualmente somente é possível a configuração do ato de improbidade administrativa a título doloso, consistente na vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos artigos 9º, 10 e 11 da Lei de Improbidade, não bastando a voluntariedade do agente. Por conseguinte, somente é possível punir o agente público ou o particular em colaboração (artigo 3º) que praticar ato o administrativo desprovido de lealdade e de boa-fé.
Diante das alterações promovidas pelo legislador reformista já surgem inúmeras críticas, notadamente por parte de membros do Ministério Público, argumentando que as inovações introduzidas na Lei de Improbidade inviabilizam o combate à impunidade no Brasil, o que não é verdade, até porque a nova redação do artigo 1º da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, estabelece que a norma tutelará a probidade na organização do Estado e no exercício de suas funções, como forma de assegurar a integridade do patrimônio público e social.
O que realmente alterou significativamente é que não mais serão penalizados os atos administrativos praticados a título culposo, conforme ocorria anteriormente. Entretanto, aqueles que agem com desonestidade, com o objetivo de enriquecer ilicitamente ou visando à obtenção de vantagem indevida, para si ou para outrem, poderão ser responsabilizados na forma da lei. Dessa maneira, não merece prosperar a alegação de que as inovações introduzidas na Lei de Improbidade inviabilizarão o combate à impunidade no Brasil.
A intenção do legislador, ao introduzir a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, foi penalizar aqueles que porventura viessem a praticar conduta desonesta no exercício de cargo público, não tendo como objetivo punir condutas destituídas de vontade livre e consciente de lesionar o patrimônio público. Ora, este entendimento já estava sedimentado na doutrina e nos Tribunais Superiores, ou seja, grande parte das alterações promovidas pelo legislador reformista já estavam sendo aplicadas quando do julgamento das ações de improbidade, vindo o legislador reformista regulamentar a matéria para evitar a propositura de ações de improbidade infundadas e, com isso, trazer segurança jurídica, notadamente para aqueles que exercem cargo público.
Com essas considerações, pode-se dizer que a ação de improbidade administrativa continua com lugar de destaque no ordenamento jurídico, na busca do combate à impunidade, tutelando a probidade na organização do Estado e no exercício de funções. O que realmente muda é que somente será possível punir aqueles que agem deliberadamente com o objetivo de causar dano ao poder público e de obter vantagem indevida. Sendo assim, não há que se falar que as alterações promovidas pelo legislador reformista prejudicam o combate à impunidade.
Sem dúvida, a alteração mais importante introduzida pelo legislador reformista foi deixar de tipificar as condutas culposas do agente público no exercício de suas funções, para penalizar tão somente os atos praticados a título doloso, isto é, quando existir a vontade deliberada do agente público e do particular em colaboração (artigo 3º) que praticar conduta para lesionar os interesses da Administração. Todavia, há outras alterações importantes, como as constantes na nova redação do artigo 17 da Lei de improbidade, que conferiu legitimidade exclusiva ao Ministério Público para propor as ações de improbidade, estabelecendo, ainda, que a ação deverá seguir o procedimento comum previsto no Código de Processo Civil de 2015. Ou seja, o Ministério Público passou a ser autor exclusivo nas ações de improbidade e não mais terá a defesa prévia, conforme era previsto na redação original.
As mudanças contidas no artigo 17 são salutares, notadamente por legitimar apenas o Ministério Público a propor a Ação de Improbidade, visto que a redação original autorizava também a pessoa jurídica interessada a ser autora da ação, o que foi maléfico para a ordem jurídica, pois, principalmente nas cidades interioranas, o Gestor, na qualidade de representante do Ente Político, determinava o ajuizamento de inúmeras ações de improbidade contra o seu antecessor e adversário político para inviabilizar futura candidatura, ou seja, houve um desvirtuamento da utilização da ação de improbidade, pois não mais era utilizada para tutelar o patrimônio público, mas para proveito pessoal, com nítido desvio de finalidade, onde o Poder Judiciário era movimentado simplesmente para satisfazer interesses escusos.
O legislador reformista também exigiu a individualização da conduta do réu, bem como fosse apontado os elementos probatórios mínimos que demonstrem a prática do ato de improbidade administrativa, a documentação suficiente que contenham os indícios suficientes da veracidade dos fatos e do dolo imputado ou com razões fundamentadas da impossibilidade de apresentação de qualquer dessas provas, sob pena de a petição inicial ser rejeitada de plano, conforme estabelece a nova redação do artigo 17 da Lei de Improbidade Administrativa, uma vez que não será admitida desatrelada de um justo motivo e da individualização da conduta do agente público e do particular em colaboração.
Em verdade, o Estado Democrático de Direito resguarda o réu de se defender de imputações certas e determinadas, para que melhor exerça as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa (inciso LV do art. 5º da CRB/88). Dessa maneira, foi cirúrgico o legislador ao exigir que a petição inicial da ação de improbidade individualize a conduta do réu e aponte os elementos probatórios mínimos.
O Ministro Gilmar Mendes, em seu voto na Pet 3240/DF[4], criticou o que chamou de “abuso” do Ministério Público no uso das ações de improbidade, por entender que muitas vezes são ajuizadas de forma genérica, com enquadramento aleatório, sem base em fatos concretos ou condutas supostamente irregulares. Para o Ministro “o sistema brasileiro não tem contracautelas ou regime de responsabilidades contra o agente que propõe ações irresponsáveis”, ocorrendo verdadeiro “festival de abuso de autoridade” nas ações de improbidade.
Ora, o Ministério Público, na condição de titular da ação de improbidade, não atua simplesmente como um mero autor, tem em vista que acima de tudo o Órgão Ministerial é fiscal da ordem jurídica e do regime democrático, consequentemente, deve ajuizar ações de improbidade apenas quando existir elementos mínimos que comprovem a prática do ato de improbidade, não podendo ser admitido o ajuizamento de ações genéricas, com enquadramento aleatório e desatrelada de um justo motivo, em homenagem à garantia constitucional do devido processo legal.
Outra mudança importante foi a nova redação conferida ao artigo 23 da Lei de Improbidade Administrativa, que apesar de majorar o prazo prescricional para oito anos, previu que a contagem iniciar-se-á a partir da ocorrência do fato ou, no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a permanência, o que é vantajoso para o acusado, tendo em vista que a redação original previa o prazo de até cinco anos. Entretanto, o início do prazo prescricional iniciava após o término do exercício de mandato, de cargo em comissão ou de função de confiança ou de até cinco anos da data da apresentação à administração pública da prestação de contas final pelas entidades referidas no parágrafo único do art. 1º da redação ordinal da Lei de Improbidade Administrativa.
Outra alteração salutar foi a forma de contagem de prazo da sanção de suspensão dos direitos políticos, prevendo que computar-se-á retroativamente o intervalo de tempo entre a decisão colegiada e o trânsito em julgado da sentença condenatória (art. 12, § 10, da Lei nº 8.429/1992), ou seja, houve uma antecipação da contagem do prazo da suspensão dos direitos políticos quando do trânsito em julgado da decisão condenatória, o que é vantajoso para o condenado, pois antes a contagem do prazo da suspensão dos direitos políticos contava-se do trânsito em julgado da sentença ou acórdão condenatória.
Por fim, não menos importante foram as alterações atinentes ao pedido de indisponibilidade de bens antecedentes ou no curso da ação de improbidade administrativa, sendo exigido do autor da ação a demonstração no caso concreto de perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo. Além disto, se houver mais de um réu na ação, a somatória dos valores declarados indisponíveis não poderá superar o montante indicado na petição inicial como dano ao erário ou como enriquecimento ilícito, o que é vantajoso para o acusado, pois em regra, quando havia vários réus determinava a indisponibilidade de bens de todos os envolvidos, sendo que o valor total bloqueado ultrapassava os valores indicados na petição inicial.
No que tange à indisponibilidade de bens, o legislador reformista estabeleceu que “indisponibilidade recairá sobre bens que assegurem exclusivamente o integral ressarcimento do dano ao erário, sem incidir sobre os valores a serem eventualmente aplicados a título de multa civil ou sobre acréscimo patrimonial decorrente de atividade lícita”, o que já era o entendimento da doutrina e de alguns Tribunais Pátrios.[5]
Lado outro, o § 11º do artigo 16 da Lei de Improbidade Administrativa, introduzido pelo legislador reformista, estabelece que a ordem de indisponibilidade de bens deverá priorizar veículos de via terrestre, bens imóveis, bens móveis em geral, semoventes, navios e aeronaves, ações e quotas de sociedades simples e empresárias, pedras e metais preciosos e, apenas na inexistência desses, o bloqueio de contas bancárias, de forma a garantir a subsistência do acusado e a manutenção da atividade empresária ao longo do processo.
As regras introduzidas atinentes à indisponibilidade antecedente ou no curso da ação de improbidade administrativa foi um grande avanço, pois a declaração de indisponibilidade de bens de forma desenfreada inviabilizava o exercício de atividade econômica, além de prejudicar a subsistência do acusado e de seus familiares.
Por outro lado, a assessoria jurídica dos órgãos públicos terá mais reponsabilidade, conforme está previsto com a nova redação do artigo 17, § 20, da Lei de Improbidade. Em que pese haver maior carga para o advogado que presta assessoria jurídica, não haverá mais espaço para aventureiros, tendo em vista que o emissor do parecer “pensará duas vezes” quando for pronunciar simplesmente para agradar aos anseios do gestor.
A grosso modo, as alterações advindas com a Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, foram vantajosas, notadamente para aqueles que exercem cargo público, pois a redação original da Lei de Improbidade possibilitava interpretações distorcidas que acabavam punindo até mesmo o agente público que agiu de boa-fé, até porque o Órgão de acusação tachava todo e qualquer ato administrativo como ato de improbidade administrativa, mesmo que a conduta do agente público não resultasse em dano ao erário.
Dessa maneira, as reformas introduzidas na Lei de Improbidade Administrativa pelo legislador reformista chegaram em um bom momento, pois, da forma que estava, pouquíssimas pessoas honestas se atreviam a exercer um cargo público, principalmente como agente político, pois a qualquer momento poderiam responder por ato de improbidade administrativa, ter seus bens declarados como indisponíveis por longos anos, ter seu nome estampado nas capas de jornais e mídias sociais como se fosse um verdadeiro bandido, mesmo que tivesse agido sem a intenção de lesionar os cofres públicos ou até mesmo sem lastro probatório mínimo. Estes acontecimentos em nada contribuíram para efetivamente combater a impunidade no Brasil. Pelo contrário, apenas afastaram da vida pública as pessoas de bem, pois estes tinham um nome a zelar e não estavam dispostos a enfrentar as armadilhas oriundas de uma norma com conceitos abertos e indeterminados, onde uma mera irregularidade poderia ser classificada como ato de improbidade administrativa e ter severas consequências.
2. A RETROATIVIDADE DA NORMA BENÉFICA NO DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR
Uma discussão que já surge com poucos dias após a vigência da Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, é se a nova lei atingirá ou não as ações de improbidade em curso, bem como os atos de improbidade já concretizados.
Ora, o artigo 17-D, introduzido pela Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, estabelece que “a ação por improbidade administrativa é repressiva, de caráter sancionatório, destinada à aplicação de sanções de caráter pessoal previstas nesta Lei, e não constitui ação civil”. Além disto, o § 4º do artigo 1º da lei em estudo estabelece que se aplicam ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador. Dessa maneira, não há duvida de que deve ser aplicado o princípio constitucional da retroatividade da norma previsto no inciso XL do artigo 5º da Constituição da República de 1988, tendo em vista o caráter sancionatório e penal da Lei de improbidade Administrativa, por consequência, a Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, deve retroagir por ser mais benéfica ao réu.
Ora, as sanções cominadas aos atos de improbidade administrativa, embora não possam ser consideradas precisamente como de tipo penal, constituem mais do que simples punição administrativa, é uma sanção política, o que justifica a especial cautela para o recebimento da ação de improbidade, bem como a cautela para proferir uma sentença condenatória por ato de improbidade administrativa.
Para o Ministro do STF, Gilmar Ferreira Mendes, as penalidades previstas para os atos de improbidade administrativa configuram verdadeiros tipos penais, aduzindo que:
[...] inaceitável é (...) a concepção que tenta vislumbrar as ações de improbidade como um simples mecanismo de responsabilização civil. De fato, não é correto tomar as sanções por improbidade como sanções de índole meramente civil. Ao contrário, as sanções de suspensão de direitos políticos e de perda da função pública demonstram, de modo inequívoco, que as ações de improbidade possuem, sobretudo, natureza penal. Não é difícil perceber a gravidade de tais sanções e a sua implicação na esfera de liberdade daqueles agentes políticos. No âmbito da ação de improbidade, em verdade, verifica-se que os efeitos da condenação podem superar aqueles atribuídos à sentença penal condenatória, podendo conter, também, efeitos mais gravosos para o equilíbrio jurídico-institucional do que eventual sentença condenatória de caráter penal. (Grifos).
Do mesmo modo, já decidiu o STJ ao julgar o AgRg no AREsp nº 27.704/RO, tendo como Relator o Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, aduzindo que a ação de improbidade, “por integrar iniciativa de natureza sancionatória, tem o seu procedimento referenciado pelo rol de exigências que são próprias do Processo Penal contemporâneo, aplicável em todas as ações de Direito Sancionador. Assim a ação deve ser rejeitada quando ausente o mínimo indício da prática do ato improbo”.[6]
No mesmo sentido foi o posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça , ao julgar o Recurso Especial nº 196.932/SP, aduzindo que “A Lei nº 8.429/92, que tem caráter geral, não pode ser aplicada retroativamente para alcançar bens adquiridos antes de sua vigência, e a indisponibilidade dos bens só pode atingir os bens adquiridos após o ato tido como criminoso”.
Vale transcrever o voto proferido pelo Ministro César Asfor Rocha, seguido pelos Ministros Barros Monteiro, Francisco Peçanha Martins, Vicente Leal, José Delgado, Fernando Gonçalves e Humberto Gomes de Barros, no julgamento do HC nº 22432, argumentando que:
A Lei nº 8.429/92 prescreve, no seu art. 12, um largo elenco de sanções de sumíssima gravidade, sendo de destacar a perda da função pública e suspensão dos direitos políticos por um lapso de 8 a 10 anos (art. 12, I); a primeira sanção (perda de função pública) é a mais exacerbada do Direito Administrativo Disciplinar e a outra (suspensão dos direitos políticos) é a mais rude exclusão da cidadania.
A meu ver, a Lei nº 8.429/92 veicula inegáveis efeitos sancionatórios, alguns deles, como a perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos, somente impingíveis por ato de jurisdição penal, o que faz legítima, ao que entendo, a aplicação da mesma lógica sistêmica que se usa nessa forma jurisdicional especializada (penal), onde não se duvida da plena fruição do foro especial por prerrogativa de função.
De menor relevo, ao que posso ver, que a Lei nº 8.429/92 denomine de civis as sanções de que cogita, pois a natureza das sanções consistentes na perda da função pública e na suspensão dos direitos políticos, por mais que se diga ao contrário, extrapolam abertamente os domínios do Direito Civil e se situam, também sem dúvida, nos domínios do Direito Penal (sancionatório).
Não há dúvida de que as ações de improbidade administrativa possuem, sobretudo, natureza penal, tendo em vista a existência de sanções como a perda da função pública, a suspensão dos direitos políticos, bem como a proibição de contratar com a Administração Pública, ou seja, as penalidades da ação de improbidade administrativa extrapolam a esfera administrativa, não possuem apenas função ressarcitória. Outrossim, o artigo 17-D da Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, prevê expressamente que a ação de improbidade administrativa não constitui ação civil, o que reforça a tese de que a mencionada ação não tem caráter civil, possuindo vários elementos do direito penal, como a justa causa, a necessidade de individualização da conduta.
O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que a Lei de Improbidade Administrativa, por ser uma nova gravosa, não poderia retroagir para alcançar fatos anteriores a 2 de junho de 1992, mesmo que os fatos tenham sido praticados após a promulgação da Constituição Republicana de 1988, vejamos:
ADMINISTRATIVO. LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. APLICAÇÃO RETROATIVA A FATOS POSTERIORES À EDIÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. IMPOSSIBILIDADE.
1. A Lei de Improbidade Administrativa não pode ser aplicada retroativamente para alcançar fatos anteriores a sua vigência, ainda que ocorridos após a edição da Constituição Federal de 1988.
2. A observância da garantia constitucional da irretroatividade da lei mais gravosa, esteio da segurança jurídica e das garantias do cidadão, não impede a reparação do dano ao erário, tendo em vista que, de há muito, o princípio da responsabilidade subjetiva se acha incrustado em nosso sistema jurídico (...). STJ, Rel. p/ acórdão Min. Castro Meira, REsp nº 121/GO, 2ª T., DJ de 15.03.2013.
Sobre a aplicação do princípio da retroatividade da lei mais benéfica ao réu no Direito Administrativo Sancionador, o Superior Tribunal de Justiça fez a seguinte ponderação nos autos do RMS 37.031/SP, veja:
DIREITO ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA AO ACUSADO. APLICABILIDADE. EFEITOS PATRIMONIAIS. PERÍODO ANTERIOR À IMPETRAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULAS 269 E 271 DO STF. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 1973. APLICABILIDADE.
I - Consoante o decidido pelo Plenário desta Corte na sessão realizada em 09.03.2016, o regime recursal será determinado pela data da publicação do provimento jurisdicional impugnado. In casu, aplica-se o Código de Processo Civil de 1973.
II - As condutas atribuídas ao Recorrente, apuradas no PAD que culminou na imposição da pena de demissão, ocorreram entre 03.11.2000 e 29.04.2003, ainda sob a vigência da Lei Municipal n. 8.979/79. Por outro lado, a sanção foi aplicada em 04.03.2008 (fls. 40/41e), quando já vigente a Lei Municipal n. 13.530/03, a qual prevê causas atenuantes de pena, não observadas na punição.
III - Tratando-se de diploma legal mais favorável ao acusado, de rigor a aplicação da Lei Municipal n. 13.530/03, porquanto o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, insculpido no art. 5º, XL, da Constituição da República, alcança as leis que disciplinam o direito administrativo sancionador. Precedente.
IV - Dessarte, cumpre à Administração Pública do Município de São Paulo rever a dosimetria da sanção, observando a legislação mais benéfica ao Recorrente, mantendo-se indenes os demais atos processuais.
V - A pretensão relativa à percepção de vencimentos e vantagens funcionais em período anterior ao manejo deste mandado de segurança, deve ser postulada na via ordinária, consoante inteligência dos enunciados das Súmulas n. 269 e 271 do Supremo Tribunal Federal. Precedentes. VI - Recurso em Mandado de Segurança parcialmente provido. (RMS 37.031/SP, Rel. Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, julgado em 08/02/2018, DJe 20/02/2018).
Ao fazer uma interpretação analógica dos julgados acima colacionados, constata-se que as alterações introduzidas na Lei de Improbidade, através da Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, devem retroagir, tendo em vista que as mudanças promovidas pelo legislador reformista são benéficas àqueles que respondem pela prática de ato de improbidade administrativa, consequentemente, deve ser aplicado o princípio constitucional da retroatividade normativa, conforme determina o inciso XL do artigo 5º da Constituição de 1988, visto que a Lei de Improbidade Administrativa possui caráter sancionatório, conforme adverte a melhor doutrina e jurisprudência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer da vigência da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, vários agentes públicos foram demitidos de seus cargos, tiveram seus direitos suspensos, multas foram aplicadas de forma desproporcional, bem como a determinação de ressarcimento, tudo em decorrência da prática de atos administrativos com meras irregularidades, onde o agente público não tinha a intenção de causar danos à Administração Pública.
Dessa maneira, as alterações introduzidas na Lei de Improbidade Administrativa pelo legislador reformista são dignas de aplausos, pois o agente público terá mais tranquilidade para exercer suas funções públicas, tendo em vista que não haverá mais penalização por atos administrativos praticados a título culposo, pois o Ministério Público não poderá mais ajuizar ações de Improbidade Administrativa em razão de atos banais, que muitas vezes nem dado efetivo causava ao Poder Público.
Não há dúvida que as alterações introduzidas pelo legislador culminarão na redução do ajuizamento de ações infundadas, que na maioria dos casos são motivadas por questões políticas ou pessoais, até porque poderá haver condenação em honorários sucumbenciais em caso de improcedência da ação de improbidade se comprovada má-fé, conforme está previsto no § 2º do artigo 23-B da Lei de Improbidade.
Uma discussão que já surge com poucos dias após a vigência da Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, é se a nova lei atingirá as ações em curso, bem como os atos de improbidade já concretizados. A meu ver ambos os casos deverão ser atingidos pelas alterações introduzidas na Lei de Improbidade, tendo em vista o caráter sancionatório e penal da ação de improbidade, por conseguinte, o réu deve ser beneficiado com a retroatividade normativa prevista no inciso XL do artigo 5º da Constituição da República de 1988.
Cabe registrar que as alterações introduzidas na Lei de Improbidade Administrativa foram benéficas para o jurisdicionado, notadamente para aqueles que agem de boa-fé, pois não haverá mais penalização por ato administrativo praticado a título culposo, conforme ocorria outrora. Sendo assim, pode-se dizer que o legislador reformista agiu certo ao introduzir as alterações para possibilitar a punir tão somente daqueles que agem deliberadamente, isto é, com vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito e, por consequência, para causar dano ao erário.
Em que pese as alegações negativas contra a redação original da Lei de Improbidade Administrativa, não quer dizer que este autor é contra moralização dos atos da Administração Pública. Pelo contrário, o Estado deve fazer investimentos para que os órgãos de controle e o Ministério Público tenham melhores condições de exercer suas atribuições constitucionais, com mais eficiência na busca da manutenção da integridade do patrimônio público e, por conseguinte, os recursos públicos sejam melhores aplicados e que os agentes mal-intencionados sejam afastados da vida pública e que os valores eventualmente desviados sejam devidamente ressarcidos aos cofres públicos. Na Administração Pública não pode haver espaço para pessoas mal-intencionadas, que praticam atos com desvio de finalidade com o objetivo de enriquecer ilicitamente ou de obter vantagem indevida para si ou para outrem, tendo em vista que aqueles que agem com a vontade livre e consciente em causar danos ao Poder Público devem ser severamente punidos.
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SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
SCARPINELLA BUENO, Cassio. Reflexões sobre Improbidade Administrativa no Direito Brasileiro, in Improbidade Administrativa - Questões Polêmicas e Atuais, Coordenadores: Cassio Scarpinella Bueno e Pedro Paulo de Rezende Porto Filho, 2001.
[1] SCARPINELLA BUENO, Cassio. Reflexões sobre Improbidade Administrativa no Direito Brasileiro, in Improbidade Administrativa - Questões Polêmicas e Atuais, Coordenadores: Cassio Scarpinella Bueno e Pedro Paulo de Rezende Porto Filho, 2001, p.86.
[2] GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral, 12 ed. São Paulo, Atlas, 2016, p. 23/24
[3] É inadmissível a responsabilidade objetiva na aplicação da Lei n. 8.429/1992, exigindo- se a presença de dolo nos casos dos arts. 9º e 11 (que coíbem o enriquecimento ilícito e o atentado aos princípios administrativos, respectivamente) e ao menos de culpa nos termos do art. 10, que censura os atos de improbidade por dano ao Erário.
Acórdãos: AgRg no REsp 1500812/SE, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, Julgado em 21/05/2015,DJE 28/05/2015. AgRg no REsp 968447/PR, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, Julgado em 16/04/2015, DJE 18/05/2015; REsp 1238301/MG, Rel. Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, Julgado em 19/03/2015,DJE 04/05/2015; AgRg no AREsp 597359/MG ,Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, Julgado em 16/04/2015,DJE 22/04/2015; REsp 1478274/MT, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, Julgado em 03/03/2015,DJE 31/03/2015; AgRg no REsp 1397590/CE, Rel. Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, Julgado em 24/02/2015,DJE 05/03/2015; AgRg no AREsp 560613/ES, Rel. Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, Julgado em 20/11/2014,DJE 09/12/2014; REsp 1237583/SP, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, Julgado em 08/04/2014, DJE 02/09/2014.
[4] STF - Plenário. Pet 3240/DF, Rel. para acórdão Min. Roberto Barroso, julgado em 10/05/2018.
[5] (...) a indisponibilidade de bens não pode incluir os valores de eventual condenação em multa, quando mais não seja, por falta de previsão legal. TRF 1ª Região. AI nº. 0047380-92.2016.4.01.0000. Rel. Des. Olindo Menezes. DJe 07/02/2017.
[6] STJ - AgRg no AREsp 27.704/RO, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, julgado em 15/12/2011, DJe 08/02/2012.
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