Breves apontamentos sobre a busca domiciliar nos crimes permanentes

17/07/2017

Por Núbio Pinhon Mendes Parreiras - 17/07/2017

A presente quadra da história brasileira, na seara penal, é caracterizada por uma evidente intensificação repressiva, com demasiadas investigações, prisões e condenações. Contudo, poucas soluções práticas esta postura proporcionou, sobretudo porque, atualmente, temos a quarta maior população carcerária do mundo, que só tende a aumentar.

E neste horizonte se apresenta, com um papel de destaque, a chamada “Guerra às Drogas”, sendo, à evidência, o carro-chefe da repressão penal, se evidenciando no sensacionalismo da “grande mídia”, passando pela criminalização primária – com o recrudescimento punitivo da Lei 11.343/06 –, pelas agências penais – órgãos de investigações e acusação pública – até a manipulação punitiva que cativou o Poder Judiciário.

E neste diapasão se sobressai entre as discussões mais importantes a questão da busca domiciliar nos crimes permanentes, sobretudo por se enquadrar o comércio ilícito de drogas nesta classificação (crime permanente).

Neste contexto, começo a analisar a realidade prática que até poucos anos era consolidada; em seguida, entendo importante analisar as críticas, que já vêm influenciando os julgamentos dos Tribunais.

Muito bem, a análise acerca da busca domiciliar deve sempre iniciar pela Constituição Federal de 1988 (CF), que, dentre os direitos fundamentais, prevê a privacidade como fundamento da regra geral da inviolabilidade do domicílio, logo no artigo 5º, XI.

Como se observa, a própria redação do referido dispositivo legal já traz as exceções à dita regra geral, de sorte que, o que nos interessa ali, dentro desta proposta de discussão, é, principalmente, tanto o “consentimento do morador”, quanto o “flagrante delito”.

Assim, levando em consideração que o Código de Processo Penal nos apresenta duas modalidades de buscas, a domiciliar e a pessoal (art. 240), vamos nos focar mais na primeira, que, conjugada com o referido artigo 5º, XI, da CF, pode ser realizada, dentro do que nos interessa, naquelas duas exceções à inviolabilidade.

A respeito do consentimento do morador, este, a princípio, não nos apresenta nenhuma dificuldade, uma vez que, desde que seja manifestado de forma expressa e sem qualquer pressão externa, é tida como válida.

Mas a questão se mostra mais complexa em casos de flagrante delito, ainda que quando conjugado com o consentimento do morador.

Pois bem, a origem da terminologia “flagrante” veio da expressão latina “flagare”, que indicava o sentido de ardência, crepitação ou flagrância. Daí que a prisão em flagrante sempre foi concebida na situação em que se está praticando o crime, no momento da prática, como prevê o inciso I, do artigo 302 do CPP. Mas o legislador preferiu ampliar o campo de incidência, incluindo outras situações, como a do inciso II do artigo 302 do CPP, que imputa situação de flagrante quando acaba de ser cometido o crime. Estes dois citados incisos compõem o flagrante próprio.

Os demais incisos (III e IV) preveem o flagrante impróprio ou quase-flagrante.

Agora, no que toca ao flagrante, uma especificidade merece ser estudada à parte, sendo exatamente em relação aos crimes ditos permanentes. É que, nestes, em que a “situação típica se prolonga no tempo” (SANTOS, 2012, p. 57), a ponto de o bem jurídico ser continuamente agredido (como no sequestro e cárcere privado do art. 248 do CP; na associação criminosa do art. 288 do CP; no tráfico de drogas do art. 33 da Lei 11.343/06; no crime de ocultação de bens, direitos e valores do art. 1º da Lei 9.613/98; nos crimes de porte e posse irregular de arma, dos artigos 12 e 14, da Lei 10.826/03; no crime de evasão de divisas, na forma “manutenção” de depósitos não informados no exterior, do art. 22, parágrafo único da Lei 7.492/86 etc.).

Para tanto, o artigo 303 do CPP prevê uma diferenciação:

Art. 303.  Nas infrações permanentes, entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência.”

Por questões lógicas, enquanto perdurar a infração, há possibilidade de efetuar a busca domiciliar e, dependendo da situação, até a prisão em flagrante!

E sempre vinha sendo este o entendimento da doutrina e jurisprudência brasileira, legitimando buscas domiciliares em casos de flagrantes delitos em crimes permanentes.

Assim, via de regra, em casos de flagrantes em crimes permanentes, naturalmente, não há que se falar nem mesmo em autorização para realizar a busca domiciliar.

Ocorre que, principalmente com o aumento da prática do tráfico de drogas, e a consequente atuação policial em seu combate, tornou-se comum, diante da prisão em flagrante do indivíduo, quando em outro lugar que não sua residência, realizar a busca domiciliar.

A partir daí que se instaurou uma nova questão, de sorte que, muito embora se tratar de crimes permanentes, em muitos casos, nada garantia que realmente havia algo a apreender na residência do indivíduo, situação em que levou a doutrina a exigir que: “É preciso que o flagrante esteja visualizado ex ante. Inexiste flagrante permanente imaginado.” (LOPES JR., 2017, p. 517). Ou seja, é indispensável “que o flagrante esteja posto e não imaginado pelos agentes públicos que podem cercar a casa e requerer ao juiz competente, o mandado de busca e apreensão (ROSA, 2016, p. 272).

Mas aí, começou-se a argumentar que tanto o preso quanto sua família consentiam com a busca domiciliar. Mas a questão é que os mesmos questionavam, posteriormente, afirmando que permitiram tão somente por se sentirem pressionados pela prisão, o que soa, a propósito, bem plausível.

Assim sendo, nestes casos de busca domiciliar em crimes permanentes, muitos (LOPES JR., 2017; ROSA, 2016) têm entendido pela indispensabilidade de indícios de que o indivíduo possua em sua residência objetos do crime imputado (como drogas ou armas), não sendo suficiente a simples prisão em flagrante do mesmo. É por isso que as doutrinas e jurisprudências mais preparadas têm consideradas nulas tais buscas e apreensões, como bem destacou Moreira (2017) sobre recente mudança de entendimento do STF.

Já em relação aos indícios de prática de crime permanente, tem-se entendido que devem ser bem definidos, não sendo suficientes denúncias anônimas ou mesmo informações extraoficiais, mas sim provas concretas como testemunhas identificadas, gravações etc.

Exemplos práticos são julgamentos como o paradigma do TJRS (Apelação Criminal de nº 70058172628 de 2014) e o mais recente TJMG (HC 1.0000.16.084753-9/000 de 2017), em que o Des. Alexandre V. de Carvalho foi voto vencido em entender pela nulidade da busca.

Neste sentido, muito embora este entendimento não tenha se difundido tanto ainda, é uma tendência que merece ser confirmada, de modo a assegurar a garantia constitucional mencionada alhures da inviolabilidade do domicílio (art. 5º, XI, CF).

E mais, este entendimento acaba por aprimorar e prestar maior eficácia à distinção entre busca pessoal e domiciliar, de sorte a impedir a “extensão automática” da apreensão pessoal à busca domiciliar, por serem, via de regra, completamente independentes.

Por fim, forçoso reconhecer que o reconhecimento de nulidade em buscas domiciliares fora destes limites serve igualmente para prevenir práticas de denunciações caluniosas (art. 339, CP) das chamadas “denúncias anônimas”, não raras vezes inverídicas.

E mais, pode igualmente servir de aviso para as agências penais começarem a se adaptar à esta realidade, a fim de prevenir futuras nulidades em buscas domiciliares a partir de flagrantes de crimes permanentes.


Notas e Referências:

BARROS, Flaviane de Magalhães; MACHADO, Felipe Daniel Amorim. Prisão e Medidas Cautelares. Belo Horizonte: Del Rey, 2011.

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 14ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Disponível em: <http://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisaNumeroCNJEspelhoAcordao.do;jsessionid=F60EC608EFD13B63DC9643200F8177E7.juri_node1?numeroRegistro=1&totalLinhas=1&linhasPorPagina=10&numeroUnico=1.0000.16.084753-9%2F000&pesquisaNumeroCNJ=Pesquisar>. Acesso em: 14/03/2017.

MOREIRA, Rômulo de Andrade. O STF e a violação do domicílio: enfim, uma decisão conforme a Constituição Federal. Justificando, 2017. Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2017/04/24/o-stf-e-violacao-domicilio-enfim-uma-decisao-conforme-constituicao-federal/>. Acesso em: 12/07/2017.

RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/busca/search?q=70058172628&proxystylesheet=tjrs_index&client=tjrs_index&filter=0&getfields=*&aba=juris&entsp=a__politica-site&wc=200&wc_mc=1&oe=UTF-8&ie=UTF-8&ud=1&sort=date%3AD%3AS%3Ad1&as_qj=&site=ementario&as_epq=&as_oq=&as_eq=&partialfields=n%3A70058172628&as_q=+#main_res_juris>. Acesso em: 14/03/2017.

ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto de processo penal conforme a teoria dos jogos. 3. Ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.

SANTOS, Juarez Cirino dos. Manual de Direito Penal: parte geral. 2ª Ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012.


Núbio Pinhon Mendes Parreiras. . Núbio Pinhon Mendes Parreiras é Especialista em Ciências Penais, IEC-PUC Minas. Secretário-Geral da Comissão de Direitos e Prerrogativas do Advogado da 34ª Subseção da OAB/MG - Itaúna. Advogado. Email: nubiomendes@yahoo.com.br. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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