Coluna O Novo Processo Civil Brasileiro / Coordenador: Gilberto Bruschi
INTRODUÇÃO
O processo civil é o meio pelo qual se efetua a aplicação do direito civil material e para alcançar a sua finalidade é necessário adequar os meios utilizados, por este motivo o CPC/2015 traz consigo a tendência da flexibilização dos procedimentos processuais, refletindo nas modalidades de saneamento e organização do processo.
O presente artigo tem como escopo abordar o saneamento e a organização processual, analisando as alterações mais relevantes no código vigente, assim como as posições doutrinárias que tratam do tema.
- O escopo do processo civil
“A finalidade do processo civil é a de solucionarem-se as controvérsias proclamando-se e realizando-se a ordem jurídica.” (MEDINA, 2016, p.107-108).
Note que o direito material sem o procedimento adequado para efetivá-lo, é o mesmo que prever um direito abstrato, pois não possui utilidade prática, mas apenas teórica, sendo o processo civil imprescindível para a concretização do direito material. [1]
O atual CPC/2015 admite a insuficiência legislativa em prever um procedimento a cada situação material e confere ao magistrado e às partes o poder para supri-la, conforme será demonstrado. [2]
A ideia é gerir o processo em harmonia com o princípio da eficiência, o qual está atrelado ao princípio da razoável duração do processo. [4] O legislador escolheu o princípio da eficiência como fundação do processo civil e, consequentemente fez surgir a necessidade de criação de novos instrumentos capazes de proporcionar ao processo o resultado útil no tempo adequado.
- Do saneamento e organização do processo
O saneamento e a organização do processo é o momento que, exceto no caso de julgamento do processo no estado em que se encontra, ocorrerá após o contraditório entre as partes, e antes da instrução e julgamento. [3]
Essa é a fase processual em que se corrigem os eventuais defeitos e organizam os autos, assim como, ao fim, é o momento em que se declara que o processo está saneado e organizado. [4]
Na vigência do CPC/1973 a organização do processo e o saneamento ocorriam no “despacho saneador”, nomenclatura equivocada, pois o seu conteúdo é claramente decisório. [3]
No atual Código o juiz proferirá uma decisão solucionando as questões processuais ainda não resolvidas, analisará os impedimentos à sua apreciação de mérito, delimitará as questões de fato que serão objetos de produção probatória, especificará os meios de provas admitidos, determinará a distribuição do ônus da prova e os pontos de direito relevantes para a decisão de mérito, e havendo necessidade, designará a audiência de instrução e julgamento. [5]
Essa decisão é dividida em duas partes: i) a do saneamento (art. 357, I do CPC), que compete à solução de questões processuais que podem estar pendentes e a declaração de saneamento, que consiste em declarar a ausência de vícios; ii) e a da organização do processo (art. 357, II a V) em que o magistrado delimita as questões de fato e de direito importantes para resolver o mérito[5], o que, consequentemente, evita a produção de provas irrelevantes e estimula as partes a focarem no que realmente importa. [5]
Por isso, esse é o momento processual ideal para o magistrado distribuir o ônus probatório, evitando que as partes sejam surpreendidas ao fim da instrução probatória de que possuíam o ônus de produzir alguma prova. [6]. Entretanto, conforme o art. 357, III do CPC, a não distribuição do ônus probatório nesse momento, não gera preclusão ao juiz, que poderá distribui-lo posteriormente. [6].
O CPC/2015 ampliou positivamente o conteúdo da decisão saneadora, pois, atualmente, as partes encerram a audiência de saneamento e organização processual, cientes de seus ônus na fase instrutória, assim como das questões de direito relevantes à decisão de mérito, podendo focar nas matérias que serão objetos de provas, evitando a discussão de pontos irrelevantes. [8]
Ademais, outra mudança relevante na fase saneadora é a desvinculação da tentativa de autocomposição das partes que, geralmente, restava infrutífera. [6]. Até mesmo porque, normalmente, o processo já estava próximo do fim e, consequentemente, as partes já haviam empregado muito dinheiro e tempo, tornando a conciliação desinteressante. [8]
O CPC/2015 também inovou ao prever que, após ser proferida a decisão de saneamento, as partes poderão requisitar esclarecimentos ou ajustes no prazo de cinco dias, conforme o art.357, III do CPC.
Ainda, surgem discussões atinentes aos efeitos da decisão saneadora. Para alguns, a decisão promove a estabilização do objeto de cognição, concluindo o contraditório que se tornará imutável, exceto quando tratar de matérias não preclusivas, ou fatos novos. [5] No entanto, essa preclusão não vinculará as partes que poderão rediscutir a matéria em sede recursal. [5]
Para outros, o magistrado tem o poder de rever a sua decisão, consoante o art. 370, parágrafo único do CPC/2015, mesmo que após a fase instrutória, desde que respeitado o contraditório prévio. [9]
Após a decisão saneadora, caso seja necessário, o juiz designará a audiência de instrução e julgamento, conforme o inciso V do art. 357 do CPC. [6].
Caso exista pedido de produção de prova testemunhal, o juiz fixará o prazo comum e não superior a quinze dias para que as partes arrolem suas testemunhas, conforme o §4º do art. 357 do CPC, observado o §6º e §7º do mesmo diploma.
Ainda, em caso de prova pericial, o §8º do art. 357 do CPC dispõe que o juiz deverá observar o disposto no art. 465 e estabelecer, desde logo, a calendarização para a sua realização.
- Das modalidades
O saneamento e a organização do processo poderão ser operados: i) ordinariamente (art. 357, caput, e §1º do CPC); ii) em audiência (art. 357,§3º do CPC); c) por negócio processual (art. 357,§2º do CPC). [1]
- Ordinária
Trata-se da decisão escrita e proferida pelo juiz, nos termos do art. 357, do CPC, que deverá ser fundamentada, afastando a incidência do §3º do art. 357 do CPC. [9]. Para tanto, é desnecessário que as partes tenham tomado quaisquer providências anteriormente. [10].
Por esse motivo, o despacho habitual do juiz que determina que as partes especifiquem as provas a serem produzidas, se mostra irrelevante. Isso porque na inicial e na defesa já devem estar especificadas, motivo pelo qual a sua inobservância não gera preclusão ao direito de produção de provas. [9].
Ainda, o juiz deverá realizar unilateralmente o saneamento e a organização do processo somente quando possuir clareza sobre os meios de provas necessários e relevantes para comprovação das matérias controvertidas. [10].
Após esta fase, as partes poderão solicitar esclarecimentos ou ajustes, no prazo comum de cinco dias, antes da estabilização.
- Compartilhado ou em cooperação
Essa modalidade é uma das grandes inovações trazida pelo CPC/2015 de 2015 que embora, ainda, privilegie o saneamento e a organização processual na forma escrita, disciplina que nos processos que houver complexidade quanto à matéria de fato ou de direito, o juiz designará audiência para que o saneamento seja realizado em cooperação com as partes, e ainda, se for o caso, convidará as partes para que integrem ou esclareçam suas alegações (art. 357, §3º do CPC).
Essa previsão legal é louvável, uma vez que concede as partes o contato direito com o juiz, em uma fase que, superados os vícios e defeitos processuais, passará a fixar os pontos controvertidos que deverão ser matérias de produção probatória. [4]
Também caberá ao juiz buscar soluções consensuais nas matérias controvertidas que serão objetos de provas, bem como estimular os esclarecimentos e complementações das alegações das partes.
Desta forma, haverá uma contribuição das partes nesta decisão que, consequentemente, refletirá na redução dos interesses recursais. [4] e na celeridade processual, pois evitará atos probatórios inúteis, assim como poderá resultar na autocomposição das partes. [8]
Nesse contexto, observa-se que o CPC/2015 opta pela possibilidade de flexibilização procedimenta. [2]. Por esse motivo, apesar do texto legal mencionar a audiência saneadora quando a causa for complexa, nada impede a sua designação em causas que não sejam. [11]
Neste sentido o Fórum Permanente de Processualistas Civis já elaborou o seguinte enunciado:
Enunciado nº 298: (art. 357, §3º) A audiência de saneamento e organização do processo em cooperação com as partes poderá ocorrer independentemente de a causa ser complexa. (Grupo: Petição inicial, resposta do réu e saneamento).
Entretanto, paira a dúvida se na prática jurisdicional este dispositivo será realmente observado.
Note-se que o §3º do artigo 357 do CPC não prevê uma mera faculdade ao juiz, mas um dever que, se desrespeitado, não será suficiente para acarretar a nulidade processual, mas poderá ensejar em embargos de declaração. [9]
Ademais, a audiência de saneamento e organização processual também é ideal para a calendarização que, resumidamente, se trata de negócio processual que prevê o agendamento para a realização dos atos processuais. Embora as partes possam acordar sobre isso a qualquer tempo, a cooperação que se instaura na audiência poderá facilitar a calendarização. [12]
Outra discussão refere-se aos pedidos de esclarecimentos e ajustes feitos pelas partes. Há quem sustente que precluirá ao fim da audiência de saneamento o direito das partes de requisitá-los. [3]. De outro lado há, também, quem fundamente que é possível realizar o pedido de esclarecimentos e ajustes na própria audiência, como já ocorria no código anterior, com o extinto agravo retido em audiência. [12]
Em contraposição, há o pensamento mais acertado de que, apesar das partes cooperarem com o saneamento e a organização do processo, a decisão final é do magistrado, de maneira que a mera cooperação não justifica a supressão da única forma de manifestação à decisão, considerando que não é cabível nenhum recurso imediato, salvo no caso em que se discute a distribuição do ônus da prova, em que caberá agravo de instrumento. [6]
Por fim, com o intuito conceder a atenção devida à audiência de saneamento e organização processual, o CPC também regulamentou o tempo mínimo de uma hora de intervalo entre audiências. [6]
- Princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo civil e os negócios processuais
A liberdade é um direito fundamental, disposto no “caput” do artigo 5º da Constituição Federal. Em seu conteúdo de eficácia há o princípio do respeito ao autorregramento, que se trata do direito de regular ou definir o que é juridicamente ideal para si.
Deste princípio decorrem os negócios processuais, que podem ser atípicos ou típicos.
O atípico é aquele em que as partes podem decidir independentemente dos tipos legais, regulando-o às suas vontades e necessidades. [13], podendo ser unilateral, bilateral ou até mesmo plurilateral.
O negócio jurídico típico é aquele em que a lei prevê o regime, disciplinando-o, dispensando o empenho das partes em prevê-los. Também podem ser bilaterais, unilaterais ou plurilaterais. [13]
- Organização consensual
A “organização consensual do processo” é uma espécie de negócio processual típico [5], onde as partes poderão apresentar ao juiz a definição de alguns pontos da organização do processo.
Caso o magistrado homologue o referido negócio, tais definições integrarão o processo a ser aplicado.
Trata-se de uma relevante inovação do CPC/2015, considerando que a atividade de organização do processo, até então, era realizada exclusivamente pelo juiz. [15]
Nesse negócio processual, as partes, consensualmente, delimitam as questões de fato sobre as quais recaíram as atividades probatórias, especificam os meios de provas admitidos, bem como delimitam as questões de direito relevantes à decisão de mérito.
Diante deste cenário, caberá ao juiz utilizar de seu poder de controle de validade, e da verossimilhança dos fatos consensualmente havidos como acontecidos, homologando o negócio processual ou não. [15]
Ademais, paira uma dúvida na doutrina se tais acordos devem observar os requisitos legais do art. 190 do CPC. [6] No entanto, as regras específicas do negócio típico não obstam ou afastam a, aplicação das regras formais gerais dispostas no art. 190 do CPC [6], pois o juiz deverá observá-las em todos os negócios processuais, inclusive na organização consensual.
Respeitados tais requisitos, poderão as partes estipular os fatos que integrarão o suporte fático que será admitido na decisão de mérito, além disto, poderão fixar a hipótese normativa de incidência ou o regramento do qual ela deverá ser retirada, de modo que as partes poderão conduzir a atividade cognitiva e decisória do juiz. [15]
Assim como as partes poderão acordar sobre a possibilidade de trazer aos autos novos fatos que não haviam sido mencionados antes, pois se as partes podem delimitar o objeto da atividade jurisdicional, também podem ampliar o conjunto fático que poderá ser considerado na decisão de mérito antes da fase probatória. [15]
Este negócio jurídico difere-se da regra geral do art. 190 do CPC, visto que requer a homologação do juiz como condição de eficácia.
Nesta fase processual, o magistrado fará o controle de verossimilhança, considerando que se vinculará ao negócio processual após a sua homologação, e não poderá concordar com fatos tidos como ocorridos, sendo eles absurdos. [15]
No entanto, o magistrado se resumirá a homologar ou não o negócio processual, pois não é admitida a sua interferência, até mesmo porque, se fosse possível, tratar-se-ia de saneamento compartilhado e não de organização consensual. [15]
Após a homologação, o negócio processual estabilizará, vinculando-os em todas as instâncias.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O CPC/2015 foi influenciado pela flexibilização dos procedimentos e pelo princípio do respeito ao autorregramento da vontade das partes, contribuindo para que o processo civil alcance a sua finalidade.
O atual código trouxe inúmeras inovações atinentes ao tema, dentre elas a supressão da audiência de conciliação na fase saneadora, a possibilidade de um saneamento compartilhado, bem como a organização consensual.
No decorrer da pesquisa compreendeu-se que o CPC/2015 buscou aumentar a participação das partes nesta fase processual, inclusive na decisão de saneamento e organização do processo unilateral, em que as partes podem solicitar esclarecimentos ou ajustes.
Observou-se que existem várias discussões doutrinárias quanto à estabilização da decisão saneadora e o prazo para esclarecimentos quando a organização do processo ocorrer em cooperação.
No mais, ainda nota-se a discussão referente à organização consensual, onde se questiona se deverá ser observada a regra geral do art. 190, “caput” e parágrafo único do CPC. No entanto, não é coerente afastar a regra geral que sequer colide com a contida no art. 357, §2º do CPC.
No deslinde da pesquisa, observou-se que o legislador ampliou positivamente a participação das partes nesta fase processual, bem como demonstrou a devida relevância a esta fase processual, o que repercutirá no alcance do objetivo do processo civil.
Ao fim, constatou-se que o CPC/2015, ao prever várias formas de saneamento e organização do processo, flexibilizou os procedimentos processuais, adequando esta fase processual ao caso concreto, bem como contribuindo ao alcance do escopo do processo civil.
Notas e Referências
[1] MEDINA, José Miguel Garcia. Direito processual civil moderno. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.
[2] ABREU, Rafael Sirangelo de. A igualdade e os negócios processuais. In: coordenador geral: DIDIER JUNIOR., Fredie. Coordenadores: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios Processuais, 2 ed. Salvador: Ed. Juspodivm, 2016.
[3] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Curso de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. v. 2.
[4] WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil: Cognição jurisdicional (processo comum de conhecimento e tutela provisória). 16ªed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.
[5] CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2016. [5]
[6] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. Vol. único. 9. ed. Salvador: Ed. Juspodivm, 2017.
[7] CARPES, Artur Thompsen. Ônus da prova no novo CPC: Do estático ao dinâmico. 1.ed. e-book. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.
[8] FERNANDES, Luís Eduardo Simardi. Do saneamento e organização do processo. In: Coordenadores: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; DIDIER JUNIOR, Fredie; TALAMINI, Eduardo; DANTAS, Bruno. Breves comentários ao Novo Código de Processo Civil. 3.ªed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.
[9] ASSIS, Araken de. Processo Civil Brasileiro. VIII. 2.ed. e-book. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.
ANGHER, Anne Joyce (org.). Vade Mecum acadêmico de direito Rideel. 24. ed. atual. ampl. São Paulo: Rideel, 2017.
SÃO PAULO. Enunciados do fórum permanente de processualistas civis. Disponível em: < http://www.cpcnovo.com.br/wp-content/uploads/2016/06/FPPC-Carta-de-Sa%CC%83o-Paulo.pdf>. Acesso em 29 de agosto de 2017.
[10] MENDES, Anderson Cortez. Saneamento no Novo Código de Processo Civil. Revista de Processo (RePro). São Paulo, v.266, abril. 2017.
[11] GOUVEIA, Lúcio Grassi de. A possibilidade de realização da audiência de saneamento e organização no Novo Código de Processo Civil Brasileiro. In: Coordenador geral: DIDIER JR, Fredie. Novo CPC doutrina selecionada. V.2.: Procedimento comum. Salvador: Editora Juspodivm, 2016.
[12]DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de direito processual Civil: Introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 18.ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2016.
[13] DIDIER JUNIOR, Fredie. Princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo civil. In: coordenador geral: DIDIER JUNIOR., Fredie. Coordenadores: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios Processuais, 2 ed. Salvador: Ed. Juspodivm, 2016.
[14] CUNHA, Leonardo Carneiro da. Negócios jurídicos processuais no processo civil brasileiro. In: coordenador geral: DIDIER JUNIOR., Fredie. Coordenadores: CABRAL, Antonio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios Processuais, 2 ed. Salvador: Ed. Juspodivm, 2016.
[15] SIQUEIRA, Marília; LIPIANI, Júlia. O saneamento consensual. In: Coordenador geral: DIDIER JR, Fredie. Novo CPC doutrina selecionada. V.2.: Procedimento comum. Salvador: Editora Juspodivm, 2016.
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