A Constituição da República estabelece no artigo 53, §2º, a denominada imunidade formal ou processual, a partir da qual expressamente se proíbe a prisão dos membros do Congresso Nacional, salvo em flagrante de crime inafiançável, hipótese em que os autos de prisão em flagrante deverão ser remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.
Tal imunidade está inserida no chamado “Estatuto dos Congressistas” (artigos 53 a 56 da CR), cuja finalidade, ao contrário do que se propala no senso comum, não é atribuir privilégios aos cidadãos que exercem cargo político, mas, sim, “assegurar o livre desempenho do mandato e prevenir ameaças ao funcionamento normal do Legislativo”[1][2].
Como ressaltado pela Excelentíssima Ministra Cármen Lúcia, no HC 89.417, “a regra limitadora do processamento do parlamentar e a proibitiva de sua prisão são garantias do cidadão, do eleitor para a autonomia do órgão legiferante (no caso) e da liberdade do eleito para representar, conforme prometera, e cumprir os compromissos assumidos no pleito. Não configuram aqueles institutos direito personalíssimo do parlamentar, mas prerrogativa que lhe advém da condição de membro do poder que precisa ser preservado para que preservado seja também o órgão parlamentar em sua autonomia, a fim de que ali se cumpram as atribuições que lhe foram constitucionalmente cometidas”.
Trata-se, portanto, de garantia pautada no ideal democrático e republicano, objetivo nuclear do poder constituinte de 1988 após árduo período ditatorial.
Como cediço, as hipóteses que permitem a prisão em flagrante delito são restritas e estão delimitadas no artigo 302 do Código de Processo Penal, assim como é reduzido o rol dos crimes inafiançáveis[3].
Pode-se afirmar, desse modo, que a prisão do parlamentar será possível somente quando for flagrado em prática gravemente atentatória ao regime republicano e democrático assegurado pelo “Estatuto dos Congressistas”, representada pelo flagrante delito de crime inafiançável. Ainda nessas limitadas circunstâncias, a manutenção da prisão provisória do parlamentar dependerá de referendo da respectiva Casa em que exerce mandato popular.
Interessante notar, nessa perspectiva, que esta regra constitucional já estabelecia a precariedade da prisão em flagrante, cuja natureza jurídica não é outra senão a de medida pré-cautelar, o que veio a ser consolidado na legislação infraconstitucional apenas em 2011, por meio da Lei 12.403.[4]
Em outras palavras, a prisão em flagrante delito não tem o condão de, per si, manter o flagrado em prisão provisória, mas e tão somente o poder de fazer cessar o crime que está acontecendo e/ou arrecadar o máximo possível de elementos probatórios acerca do fato, haja vista a visibilidade do delito.[5]
Vale dizer, a prisão em flagrante, que pode, inclusive, ser realizada por qualquer cidadão (art. 301, CPP), sempre dependerá de averiguação da sua legalidade e de subsquente conversão em medida propriamente cautelar, sendo a prisão preventiva a de ultima ratio. Ordinariamente, quem faz o controle de legalidade e o respectivo exame acerca da aplicabilidade da medida cautelar é o poder judiciário, nos termos do artigo 5º, LXIII, da CR. Excepcionalmente, nos casos dos parlamentares tal controle é exercido pela Casa Parlamentar onde exerce seu mandato, pelas razões acima delineadas, às quais se pode acrescentar, o princípio da separação dos poderes.
Não obstante, verifica-se no âmbito do Supremo Tribunal Federal certa flexibilização das normas contidas no Estatuto dos Congressistas, em especial, da regra estampada no artigo 53, §2º, da Constituição Federal, da que são exemplos os casos do senador Delcídio do Amaral (AC 4039), do Deputado Eduardo Cunha e também do senador Aecio Neves, cada qual com sua específica fundamentação.
Dada a limitação do presente artigo, não cabe aqui explorar de forma verticalizada os acórdãos prolatados nos casos acima mencionados, porém, pode-se afirmar, com certo grau de segurança, que todos eles, em alguma medida, implicaram em afastamento da regra constitucional, cujo exemplo, quiçá mais expressivo tenha sido a do então senador Delcídio do Amaral, haja vista a “decretação judicial do flagrante delito combinado com a prisão preventiva”.[6]
O fato é que, a despeito dos relevantes argumentos políticos levantados pela Suprema Corte para relativização das normas que asseguram a imunidade processual dos parlamentares, juridicamente tais decisões representam um rompimento com Estado Constitucional de Direito[7], compreendido enquanto limitação do poder por meio das normas positivadas no ordenamento jurídico.
Vale dizer, a invocação de argumentos extrajurídicos, por mais louvável que seja o fim almejado – por exemplo, o combate a corrupção, etc – não deixa de configurar estado de exceção, no sentido da suspensão de direitos e garantais consolidados na Constituição da República e na legislação infraconstitucional.
A questão denota ainda maior preocupação ao se olhar para o aspecto da “legitimação” das atuações jurisdicionais em primeiro e segundo graus de jurisdição no País, pouco ou nada afeitas à legalidade e às garantias constitucionais. Sim, pois, se a Suprema Corte, guardiã máxime da Constituição, pondera com as regras constitucionais em situações que envolvem representantes do Congresso Nacional, qual o recado transmitido, senão o de que, sim, é permitido ponderar com a legalidade?
De outro vértice, inegável o atual contexto de crise dos poderes institucionais, de crise de legitimidade dos poderes legislativo e executivo federal que, por sua vez, causa nítido abalo ao princípio da separação dos poderes, estrutura base do nosso Estado Constitucional de Direito[8].
A reflexão que surge nessa conjuntura, quiçá, pode ser resumida nas seguintes indagações: Compete ao poder judiciário dizer qual a “melhor” saída deste mar de confusões, ainda que para isso tenha que “revogar” ou suspender regras constitucionais? O Supremo Tribunal Federal, corporificado por seus onze ministros, têm legitimidade democrática para ser o porta voz das soluções para o País, ainda que em detrimento daqueles que foram diretamente escolhidos pelos cidadãos para representá-los?
Tais indagações apontam justamente para o problema em torno da suposta perda de sentido e razão da norma prevista no artigo 53, §2º, da CR/88, vez que nesta quadra da história, de gritante escândalo nacional envolvendo a classe política, tal imunidade se revelaria no seu aspecto negativo, de suposta proteção aos políticos.
Dito de outro modo, constatado o problema, em tese, de perda de sentido da regra que garante a imunidade processual aos parlamentares, pois não mais se estaria naquele contexto de queda da ditadura militar em que se fazia imprescindível e salutar as imunidades parlamentares, pode o Supremo Tribunal Federal simplesmente negar-lhe vigência, tal qual o fez com a regra da presunção de inocência (art. 5, LVII, CR/88)?
Na linha do que há muito sustenta o professor Lenio Streck, pensamos que ao Supremo Tribunal Federal não é dado o poder dizer qualquer coisa sobre a Constituição a ponto, inclusive, de desfigurá-la. Compete-lhe, sim, zelar, guardar a Constituição e dizer, em última voz, qual a interpretação mais adequada, para cujo mister, muitas vezes, deve exercer jurisdição contramajoritária, o que nem de longe pode significar em poderes de inovação e/ou criação de regras constitucionais.
Ora, a insatisfação com o atual sistema político, do qual as imunidades fazem parte, deve ser resolvida democraticamente por meio da própria política, através dos diversos mecanismos do exercício da cidadania, dentre outros, pelo voto, manifestação, participação em audiência pública, etc.
Se a sociedade não vislumbra razão de existir na imunidade formal dos parlamentares, tal insatisfação deve ser levantada e debatida na via apropriada para tanto, que é a política, e, que, se assim for o desejo do povo, após os debates democráticos que devem ser realizados, faça-se emenda constitucional para expurgá-la da Constituição.
O que, com o devido respeito, não parece ser o caminho mais adequado sob o viés jurídico constitucional é a simples suspensão ou afastamento das regras constitucionais pela via jurisdicional.
O problema da aposta no ativismo judicial, dentre outros, está na crença de que a acumulação de poder – interpretar e legislar ao mesmo tempo – se contentará com intervenção pontual. Ledo engano. Como ensina Geraldo Prado[9], a partir de Bordieu, o poder, seja ele exercido por quem for, tende a ser arbitrário e é justamente por isso que precisa de limitação.
Enfim, se a norma prevista no artigo 53, §2º da Constituição da República está antiquada ao atual cenário nacional, compete à população, por meio dos mecanismos democráticos, cobrar a respectiva alteração por parte da classe política.
Enquanto o judiciário atuar (equivocadamente) como protagonista dos anseios da sociedade, esta jamais alcançará o nível desejável de exercício da cidadania e de participação democrática que, seria desnecessário dizer, não deve ser resumido ao sufrágio universal.
Notas e Referências:
[1] MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 891.
[2] Sobre o tema, vale a leitura do artigo da Profa. Carol Cleve publicado na Coluna Justiça da gazeta do povo: http://www.gazetadopovo.com.br/justica/deputados-estaduais-e-a-garantia-de-imunidade-o-que-diz-a-constituicao-0w9j6vw5e4u0l1rbq0gwphbge?comp=whatsapp
[3] São crimes inafiançáveis, por força constitucional, o crime de racismo, a tortura, tráfico ilícito de drogas, o terrorismo, o genocídio e os praticados por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional, e os definidos como crimes hediondos (Lei 8.072/90).
[4] Sobre o tema, leia-se, por todos: LOPES JR, Aury. Prisões cautelares. Saraiva: São Paulo, 2017.
[5] CARNELUTTI, Francesco. Lecciones sobre el processo penal. Trad. Santiado Sentis Melento, Buenos Aires, 1950, t. II, p. 77. In: LOPES JR, Aury. Prisões cautelares. Saraiva: São Paulo, 2017.
[6] Sobre a prisão do Delcídio, então senador da república, imprescindível a leitura dos artigos publicados pelo Prof. Lenio Streck: https://www.conjur.com.br/2015-dez-03/senso-incomum-nome-stf-fica-eis-busilis-delcidio; Também importantíssima a leitura do artigo dos Professores Romulo de Andrade Moreira e Alexandre Morais da Rosa: https://jornalggn.com.br/comment/789525
[7] Sobre Estado de Direito ler: COSTA, Pietro e ZOLO, Danilo. O Estado de Direito. Marins Fontes: São Paulo, 2006.
[8] Muito representativo dessa crise é a proposta de emenda constitucional nº 33/2011 que prevê aprovação do Congresso nacional das súmulas vinculantes, das ações diretas de constitucionalidade e das declaratórias de constitucionalidade emitidas pelo Supremo Tribunal Federal, além, é claro, dos recentes episódios referentes ao (não) afastamento dos senadores Renan Calheiros e Aecio Neves.
[9] Dentre outras obras do autor, consultar: PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos. São Paulo: Marcial Pons, 2014.
CLEVE, CAROL. Deputados estaduais e a garantia de imunidade: o que diz a Constituição? In: http://www.gazetadopovo.com.br/justica/deputados-estaduais-e-a-garantia-de-imunidade-o-que-diz-a-constituicao-0w9j6vw5e4u0l1rbq0gwphbge?.
COSTA, Pietro e ZOLO, Danilo. O Estado de Direito. Marins Fontes: São Paulo, 2006.
LOPES JR, Aury. Prisões cautelares. Saraiva: São Paulo, 2017.
MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 891
MOREIRA, Romulo; ROSA, Alexandre Morais. Para (não) entender a prisão de um Senador pelo STF. In: https://jornalggn.com.br/comment/789525
PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos. São Paulo: Marcial Pons, 2014.
STRECK, Lenio. Supremo poderia usar fundamento da “excepcionalidade” para julgar Cunha? In: https://www.conjur.com.br/2016-mai-08/streck-supremo-usar-excepcionalidade-julgar-cunha.
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