Em decisão em sede de cautelar[1], no Mandado de Segurança n.º 34.530, tomada no dia 14 de dezembro de 2016, sob o fundamento, em princípio, de estar controlando a regularidade do processo legislativo[2], o Min. Luiz Fux não apenas suspendeu a tramitação de projeto de lei no Senado Federal, como determinou o retorno deste à Câmara, “ficando sem efeito quaisquer atos, pretéritos ou supervenientes, praticados pelo Poder Legislativo” em contrariedade à decisão, acatando os argumentos apresentados pelo impetrante, segundo os quais teria havido violação à iniciativa privativa do Supremo Tribunal Federal e do Procurador-Geral da República, sobre os estatutos, respectivamente, da magistratura (art. 93 da Constituição) e do Ministério Público (art.128, § 5º, da Constituição), assim como emenda parlamentar de plenário teria violado “o âmbito do anteprojeto de iniciativa popular anticorrupção, tratando de matéria que foge ao objeto do projeto”[3]. Trata-se, cabe considerar, de uma decisão que não guarda coerência com entendimento adotado anteriormente pelo Ministro Relator acerca da possibilidade do controle judicial da aplicação do Regimento Interno da Câmara dos Deputados; coerência, essa, exigível nos termos do caput do art. 926, do Novo Código de Processo Civil[4].
Vale lembrar que quando foi impetrado o Mandado de Segurança, de n.º 34.181, contra ato da Presidência da Câmara dos Deputados, praticado durante a sessão que autorizou o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, sob o argumento de violação ao art. 23 da Lei do Impeachment e do art. 192 do Regimento Interno da Câmara, o Min. Fux julgou incabível o Mandado de Segurança, justamente, por entender que a aplicação do Regimento Interno e mesmo da Lei não seria suscetível de controle judicial por se tratar de matéria interna corporis. [5] Transcrevo, aqui, um trecho do artigo, publicado em 16 de maio, com coautoria com Alexandre Bahia e Diogo Bacha e Silva[6], sobre a decisão liminar no MS n.º 34.181:
“A segunda decisão foi proferida pelo Ministro Luiz Fux no Mandado de Segurança n. 34.181, impetrado pelo deputado Paulo Teixeira (PT/SP), contra ato da Presidência da Câmara dos Deputados, sob a alegação de violação do art. 23, da Lei 1.079/50, e também do art. 192, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, além do pronunciamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no sentido de que os julgamentos políticos do Poder Legislativo devem gozar da plena imparcialidade, nos termos da garantia que o Pacto de São José da Costa Rica concede aos parlamentares. Dessa forma, como já dito, o encaminhamento de votação pelos partidos, do Relatório da Comissão Especial do Impeachment, teria eivado de ilegalidade a votação na Câmara dos Deputados realizada no dia 17 de abril, razão pela qual pedia anulação do ato de votação da Câmara dos Deputados. O Relator, ao apreciar a liminar, de forma monocrática julgou que tal ato seria infenso ao controle jurisdicional, já que constituiria matéria interna corporis, não sendo possível o cabimento do Mandado de Segurança. Segundo o Relator, o ato impugnado envolve a interpretação de dispositivos regimentais, mas também legais, o que impossibilitaria a intervenção jurisdicional: “Resta claro que o ato praticado pelo impetrado, diante da situação fática descrita pelo impetrante, envolveu a interpretação de dispositivos regimental e legal, restringindo-se a matéria ao âmbito de discussão da Câmara dos Deputados. Dessa forma, afigura-se incabível, para o relator, o mandado de segurança, pois não se trata de ato sujeito ao controle jurisdicional”.”[7]
Além desse caso envolvendo o processo do impeachment, cabe recuperar, como registra Bernardo Gonçalves Fernandes, a atuação do Min. Fux, quando do julgamento do Mandado de Segurança n.º 32.033, “impetrado por Senador alegando ofensa ao ‘devido processo legislativo’ na tramitação do Projeto de Lei - PL 4.470/2012 (da Câmara dos Deputados), convertido no Senado no Projeto de Lei da Câmara - PLC 14/2013, que estabelece novas regras para a distribuição de recursos de recursos do fundo partidário e de horário de propaganda eleitoral no rádio e na televisão, nas hipóteses de migração partidária”[8]. Nesse caso, o Min. Rel. Gilmar Mendes acatou os argumentos do impetrante e concedeu a liminar suspendendo o processo legislativo; mas o Tribunal, por maioria, na decisão de mérito, julgou improcedente o pedido[9]. O Min. Fux também votou contrariamente ao entendimento do Min. Gilmar Mendes, acompanhando a maioria, ao denegar a segurança pleiteada, e “destacou o dever de cautela redobrado no exercício da jurisdição constitucional. Nesse sentido, os tribunais não poderiam ‘asfixiar a autonomia pública dos cidadãos, ao substituir as escolhas políticas de seus representantes por preferências pessoais de magistrados’. Dever-se-ia, portanto, rechaçar leitura ‘maximalista das cláusulas constitucionais’, a amesquinhar o papel da política ordinária na vida social. (...) O Ministro Luiz Fux exemplificou que, caso se considerasse que o PLC 14/2013 deveria ser arquivado, a médio e longo prazo haveria uma série de demandas da mesma espécie perante a Corte. Nesse sentido, o STF atuaria como uma espécie de terceiro participante das rodadas parlamentares, e exerceria papel típico do Legislativo. O controle repressivo de constitucionalidade cederia espaço, então, ao controle preventivo (...) Se por um lado seria admissível atuação do Supremo para assegurar os direitos individuais indispensáveis para a participação popular no procedimento democrático de tomada de decisões, por outro não caberia antecipar o desfecho de um debate parlamentar. Impenderia vedar a ‘supremocracia’.”[10]
Entretanto, para além de não guardar coerência[11] com o entendimento adotado em decisões anteriores, a recente decisão monocrática, do dia 14 de dezembro, proferida pelo Min. Fux, em sede de cautelar em Mandado de Segurança n.º 34.530, vai mais além do mero controle de regularidade procedimental - controle de regularidade procedimental suscetível, em princípio, de controle judicial, tal como defendi na minha Tese de Doutorado, Devido Processo Legislativo[12], e mesmo em parte reconhecido na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Isso porque a decisão monocrática, proferida pelo Min. Fux, adentra o próprio juízo acerca do conteúdo e finalidade do projeto de lei em tramitação e, assim, das próprias escolhas legislativas ali tomadas, colocando, assim, em risco o princípio constitucional da separação de poderes entre Judiciário e Legislativo.
Tal avanço se dá não apenas pelo Ministro Relator considerar que já seria possível controlar previamente uma pretensa existência de vício de iniciativa, como já dito, em razão da matéria objeto do projeto de lei alterado por emenda de plenário ter, segundo ele, Relator, adentrado temas de uma suposta iniciativa privativa do Supremo Tribunal Federal e do Procurador-Geral da República.
Ou não apenas tal avanço se dá por considerar o Ministro Relator ser possível uma “aplicação analógica” do previsto para o caso do procedimento de conversão de medidas provisórias ao caso de tramitação de projetos de iniciativa popular - o que já seria uma interpretação bastante criticável porque, segundo o Min. Rel., restariam, por isso, em função dessa “aplicação analógica”, proibidas a apresentação de emendas parlamentares a projeto de lei de iniciativa popular.
Mas o Min Luiz Fux, mais ainda, adentra o próprio juízo acerca do conteúdo e finalidade do projeto de lei em tramitação e, assim, das próprias escolhas legislativas, porque – e essa é a questão fulcral - para ele a Emenda de Plenário n. º 4, aprovada pela Câmara, ao Projeto de Lei n.º 4.850/2016, “para além de desnaturação da essência da proposta popular destinada ao combate à corrupção, houve preocupante atuação parlamentar contrária a esse desiderato, cujo alcance não prescinde da absoluta independência funcional de julgadores e acusadores”. (grifos nossos)
Ora, reconhecer a possibilidade do controle judicial de regularidade procedimental do processo legislativo como garantia do devido processo legislativo[13] é algo bastante diferente de proibir que os parlamentares deliberem por emendar projetos de lei em tramitação. Ou mesmo é algo bastante diferente de o Poder Judiciário adentrar no próprio mérito das escolhas legislativas que, embora sejam suscetíveis de controle de constitucionalidade, tal controle, por se tratar de projeto de lei, não poderá ser previamente feito pelo Poder Judiciário; e, mesmo que controle repressivo, controle de constitucionalidade que, cabe dizer, não deverá jamais levar à judicialização da política e à substituição pelo Judiciário do próprio processo político democrático, ainda que sob o argumento de supostamente buscar garanti-lo[14].
E, assim, diferentemente do que ocorre com as propostas de emenda à Constituição, já que é a própria Constituição, no art. 60, §4.º, que proíbe sequer seja “objeto de deliberação” proposta de emenda constitucional tendente a abolir cláusulas pétreas (“e a abolição” – como dizia o Prof. Raul Machado Horta – “não se circunscreve às formas grosseiras e ostensivas, mas também alcança as formas oblíquas, dissimuladas e ladeantes”[15]), não há previsão constitucional para controle prévio de constitucionalidade de projetos de lei em tramitação.[16]
Notas e Referências:
[1] Agradeço a Alexandre Bahia, Bernardo Gonçalves e Dierle Nunes por nossa interlocução.
[2] Entre os argumentos apresentados, o Min. Rel. Luiz Fux fez longa referência a trecho da minha obra Devido Processo Legislativo. Todavia, em sua decisão, ele procura extrair conclusões outras com as quais, como veremos adiante porque, não poderei concordar.
[3] Decisão disponível em http://www.conjur.com.br/2016-dez-14/fux-manda-camara-recomecar-zero-votacao-pacote-anticorrupcao, acesso em 16 de dezembro de 2016.
[4] Sobre o tema, ver STRECK, Lenio Luiz. Art. 926 In: STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo (orgs.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 1186-1191.
[5] Decisão disponível em http://s.conjur.com.br/dl/ms-teixeira-fux.pdf, acesso em 16 de dezembro de 2016.
[6] BAHIA, Alexandre, BACHA E SILVA, Diogo e CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. “Legitimação normalizadora” do impeachment pelo Supremo Tribunal Federal?, disponível em http://emporiododireito.com.br/legitimacao-normalizadora-do-impeachment/#_ftn8, acesso em 16 de dezembro de 2016.
[7] Decisão disponível em http://s.conjur.com.br/dl/ms-teixeira-fux.pdf, acesso em 16 de dezembro de 2016.
[8] FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, 8ª Ed. Salvador: Juspodium, 2016, p. 1325-1326.
[9] FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, 8ª Ed. Salvador: Juspodium, 2016, p. 1326.
[10] FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, 8ª Ed. Salvador: Juspodium, 2016, p. 1327-1328.
[11] Insisto mais uma vez na exigência de coerência, nos termos do art. 926, do Novo Código de Processo Civil. Sobre isso, ver nota supra.
[12] CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido Processo Legislativo, 3.ª Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
[13] CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido Processo Legislativo, 3.ª Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
[14] Sobre isso, ver CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido Processo Legislativo, 3.ª Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
[15] HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional, 3.ª Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 88.
[16] Sobre as hipóteses de controle de constitucionalidade no curso do processo legislativo, ver BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco, CATTONI, Marcelo e NUNES, Dierle. Manobra regimental: Câmara violou a constituição ao votar novamente financiamento de campanhas, disponível em http://www.conjur.com.br/2015-jun-04/camara-violou-constituicao-votar-financiamento-campanhas, acesso em 16 de dezembro de 2016.
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