BRASIL NO SECULO XXI OU COMO A “GRANJA DE HOBBES” NÃO FUNCIONOU

29/03/2018

Democracia é um desafio e, ao mesmo tempo, uma aposta. É um desafio – permanente, como tenho insistido – porque o tempo reivindica a compreensão de nossa humanidade – num sentido material a partir de nossas diferenças -, bem como sobre o acesso e a melhoria de bens e serviços postos pelo Estado e suas instituições. É uma aposta porque, mesmo a partir desse esclarecimento, de se identificar as necessidades individuais e comuns, não há nenhum mecanismo que assegure um resultado socialmente útil imediato. Nem sempre se observam melhorias nas relações humanas apesar do seu avanço tecnológico, politico, econômico, jurídico, ético. Há, também, inúmeros retrocessos, como se observou ao longo da História. Não obstante, apostar implica em realizar atitudes que busquem viabilizar o improvável. Busca-se, sim, encarnar as utopias desejáveis. Entretanto, nesse ano de 2018 no Brasil, a barbárie suplanta os princípios constitucionais, os deveres de civilidade, a integração pela fraternidade.

Insisto: vive-se tempos de crise, tempos nos quais seria interessante reavaliar: o que se tem feito em prol do bem comum? Para quem se destinam as melhorias inventadas pelos seres humanos? Por que insistir no consumismo, no cansaço, na hiper exposição das redes virtuais como se fosse um grande mercado, cujas mercadorias estivessem à venda? Quais são os resultados esperados de uma igualdade social? Qual o alcance de capacitações e formas de empoderamento humano, principalmente às camadas sociais mais vulneráveis? A insistência em manter padrões de desigualdade social espelha a inefetividade do Estado em promover o bem comum? Tantas perguntas, quase nenhuma resposta. Aplacar uma crise – social e institucional -, nesse caso, é apenas encontrar uma solução rápida e rasa para se manter a imagem de paz, de segurança, de harmonia entre as pessoas. Crise não significa potencializar uma metamorfose, mas ignorar o que está na nossa frente, naquilo que se manifesta, por si, às nossas consciências com suas características e complexidade.

Hobbes, por exemplo, fez uma aposta. Ao entender qual era o “estado de natureza” do ser humano, contemplou-se a sua miserabilidade, brutalidade, crueza, sordidez, rancor e ressentimento. Homo homini lupus est: o homem é o lobo do próprio homem. A fórmula universal hobbesiana de um estado de guerra permanente entre todos somente se resolveria pela via de um governo civil forte o suficiente para aplacar essa condição animal do ser humano e assegurar um território civilizado. Verifica-se, desde esse momento, a importância do Contrato Social[1] como mecanismo de controle e ordem entre as pessoas na medida em que assegura direitos e deveres.

No entanto, hoje, nas terras brasileiríssimas, o entendimento de que a Constituição de 1988 é o acordo realizado em prol da supressão das desigualdades, de preservar intransigentemente a Dignidade da Pessoa Humana[2] a partir de direitos de liberdade, igualdade e fraternidade[3], parece não haver nenhum sentido, nenhum acordo mínimo de semântica ou práxis, evidenciados pela mídia a partir das atitudes recentes das instituições e da sociedade, especialmente no campo político. sepultou a aposta de Hobbes, ou, pelo menos, evidenciou a fragilidade de sua premissa universal. Ao contrário, o poder soberano exercido pela Constituição de 1988 tornou-se um nome vazio, ao rememorar Platão[4], e se iniciou uma verdadeira “orgia hobbesiana[5]”.

Princípios constitucionais como a presunção de inocência (artigo 5º, LVII, da Constituição Federal), a ampla defesa e o contraditório (artigo 5º, LV, da Constituição Federal), a livre manifestação do pensamento (artigo 5º, IV e IX, da Constituição Federal), a liberdade de locomoção (artigo 5º, XV, da Constituição Federal), o direito à reunião (artigo 5º, XVI, da Constituição Federal), por exemplo, não devidamente cumpridos, sequer cogitados. As paixões mais inflamadas, a manutenção de determinadas ideologias impede o desenvolvimento democrático do país e, simplesmente, obedece-se ao novo imperativo categórico do “jeitinho brasileiro”: Age de maneira tal que a sua opinião se sobreponha às demais e se torne lei universal.

Nesse caso, a autoridade soberana brasileira tenta sobreviver nesse deserto das relações humanas. Vale a força (sentido individual) e/ou a imposição pelo poder (sentido social – macro e microestruturas) para se determinar quem vence essa batalha insana, essa “guerra de todos contra todos”. A metáfora de Gianetti, a partir desse cenário, parece adequada: o Brasil é uma enorme granja[6], cujas galinhas -  devido ao tédio, ao rancor, à mediocridade, à busca por um “salvador da pátria”, à ilusão de galgar novos patamares de vida por meio da “meritocracia” ou por alguma fórmula de sucesso instantâneo, tanto reiterado pelos “gurus da administração” – tentam se matar todos os dias. O nosso cotidiano constitucional sepultou a ideia de Hobbes: nem o poder soberano foi capaz de conter a “orgia homicida galinácea”.

O Brasil, entendido como a “granja de Hobbes”, foi tomado pelas galinhas moralistas, aquelas que não entendem como a diferença entre os interesses se torna o ponto fulcral do desenvolvimento democrático e tentam impor a sua opinião sobre os demais. Essas galinhas estão em todas as esferas, sejam nas sociais, nos partidos políticos, no Poder Executivo, no Legislativo, no Judiciário, nos serviços de “caridade”, nos hospitais, as ONG’s, nas empresas, nas igrejas – sejam católicas, evangélicas ou neopentecostais. A insanidade homicida dessas galinhas, aos poucos, torna o nosso Brasil numa autentica “gaiola de loucos”. 

O que resta, então, a fazer? Será que o Brasil, a partir de seus mecanismos legais, cortará os bicos dessas galinhas para evitar que se matem? Precisará de um Galo ditador para impor ordem a todo custo? Não se sabe ao certo. O momento presente, contudo, se movimenta sob o signo do imperativo categórico do “jeitinho brasileiro”. A violência contra a Democracia – seja no seu sentido substancial e procedimentalista – ocorre todos os dias. A cegueira moralista invade todos os domínios democráticos e as apostas para um mundo desejável esmaecem. É preciso, portanto, que os momentos de crise não fomentem essa “guerra galinácea” de todos contra todos e um mecanismo que ajuda a rememorar o porquê da paz deve prevalecer sobre a violência é a Constituição. Esse é o nosso ponto de partida para buscar, no cotidiano, o que amplia a sua eficácia, eficiência e efetividade.

 

[1] “Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual, cada um, unindo-se a todos, não obedeça, portanto, senão a si mesmo, e permaneça tão livre como anteriormente. Tal é o problema fundamental cuja solução é dada pelo contrato social”. ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: e outros escritos. Tradução de Rolando Roque da Silva. 22. ed. São Paulo: Cultrix, 2013, p. 30.

[2] “A dignitas é um atributo que se confere ao indivíduo desde fora e desde dentro. A dignidade tem a ver com o que se confere ao outro (experiência desde fora), bem como com o que se confere a si mesmo (experiência desde dentro). A primeira tem a ver com o que se faz, o que se confere, o que se oferta [...] para que a pessoa seja dignificada. A segunda tem a ver com o que se percebe como sendo a dignidade pessoal, com uma certa auto-aceitação ou valorização-de-si, com um desejo de expansão de si, para que as potencialidades de sua personalidade despontem, floresçam, emergindo em direção à superfície. Mas, independentemente do conceito de dignidade própria que cada um possua (dignidade desde dentro), todo indivíduo é, germinalmente, dela merecedor, bem como agente qualificado para demandá-lo do Estado e do outro (dignidade desde fora), pelo simples fato de ser pessoa, independente de condicionamentos sociais, políticos, étnicos, raciais etc. [...] Só há dignidade, portanto, quando a própria condição humana é entendida, compreendida e respeitada, em suas diversas dimensões, o que impõe, necessariamente, a expansão da consciência ética como pratica diuturna de respeito à pessoa humana”. BITTAR, Eduardo C. B. O direito na pós-modernidade: e reflexões frankfurtianas. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 301/302.

[3] “A fraternidade, descrita como categoria jurídica, ainda se trata de uma semente que necessita ser cultivada no jardim do tempo. Relevante o debate do tema para que possa ser refletido e inserido com a importância que detém para que haja mais convivência entre os diferentes povos. Essa possibilidade requer a própria adaptação do Direito pelos significados históricos das relações humanas mais fraternas. Ambas necessitam estar interligadas para que os seres humanos e o próprio Estado passem a ser sujeitos de direito responsáveis pela realização de uma sociedade mais justa”. PELLENZ, Mayara; BACEGA DE BASTIANI, Ana Cristina; AQUINO FERNANDES, Sérgio Ricardo. Fraternidade como alternativa à seletividade do Direito Penal. Sequência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, v. 38, n. 76, p. 164, set. 2017. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/2177-7055.2017v38n76p155>. Acesso em: 29 mar. 2018.

[4] PLATÃO. As leis. Tradução de Edson Bini. Bauru, (SP): EDIPRO, 1999, p. 186-188.  

[5] GIANETTI, Eduardo. Trópicos utópicos: uma perspectiva da crise civilizatória. 4. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 115. 

[6] GIANETTI, Eduardo. Trópicos utópicos: uma perspectiva da crise civilizatória. p. 115.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Briga de Galo2 // Foto de: Isaias Malta // Sem alterações

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