Brasil: Faoro explica... Nietzsche e Sartre apontam

17/06/2015

Por Rosivaldo Toscano Jr. - 17/06/2015

Em tempos de crise política e econômica, de baixa autoestima do nacionalismo, nada se torna tão atraente quanto encontrar resposta para nossos problemas por meio da autodepreciação do brasileiro.

O senso comum procura enxergar os problemas que afetam a realidade social, econômica e jurídica brasileira como sendo fruto de uma deficiência moral do brasileiro, como se existisse uma espécie de “brasilidade” pejorativa, hoje dispersa em nosso imaginário – ex.: a “lei de Gerson” ou o “jeitinho brasileiro” – como se fosse uma condição inata que termina por ocasionar os diversos problemas que enfrentamos, tais como corrupção, baixa consciência cidadã, o pouco zelo pelo patrimônio público e por aí vai. Isto é, não haveria solução dada a uma espécie de degeneração étnica-biológica.

Tal visão termina sendo colaborada por escritos de Gilberto Freyre[1] e Sérgio Buarque de Holanda[2] (este com seu conceito de “homem cordial”) que, apesar do brilhantismo de ambos, buscaram erroneamente, conforme salientado por Danilo Lima,[3] definir a personalidade ou o caráter do homem brasileiro. A crítica também pode ser feita a partir de Dante Moreira Leite,[4] para quem não há comprovação de que um determinado povo possa ter características psicológicas próprias e exclusivas (pondo abaixo as teses da “lei de Gerson” e do “jeitinho brasileiro”).

Não raro também ouvirmos tentativas de explicação de nossos problemas a partir da nacionalidade dos nossos colonizadores europeus, porque para cá teriam vindo os deserdados e os criminosos de Portugal. Trata-se de uma perspectiva biologicista do século XIX, no mesmo contexto de Lombroso e seus asseclas o que, aliás, serviu de pavimento para a eugenia e para doutrinas raciais segregacionistas anglo-saxãs (racismo e eugenia) e genocidas germânicas (nazismo).

Dentro dessa ideia absolutista de superioridade cultural – dos outros sobre nós, claro –, não faltam os que defendem que nossos profundos problemas sociais e econômicos se originam do fato de que teriam sido os portugueses – mesmo os não os degredados – e não os ingleses, franceses ou holandeses – que nos colonizaram. Quem assim age nem percebe que ¼ da hoje pobre África foi colônia de exploração inglesa (incluindo Nigéria, Egito, Sudão, Somália, Botswana, Zimbábue e África do Sul), ¼ colônia francesa (incluindo Marrocos, Argélia, Niger, Chade e Gabão), a Líbia foi colônia italiana. Namíbia, Tanzânia e Camarões, colônias alemãs. O Congo, belga. [5] Uma visita rápida aos paupérrimos vizinhos Suriname, ex-colônia holandesa, ou Guiana, ex-colônia inglesa, talvez ajude a aclarar as ideias a respeito dessa falácia. Talvez os europeus do Norte fossem apenas mais eficientes na arte de explorar porque, por serem historicamente posteriores ao expansionismo ibérico, apropriaram-se e aprofundaram o know-how adquirido pelos portugueses e espanhóis para extrair riquezas a partir dos recursos naturais e da mão de obra humana (e da vida) dos povos a eles submetidos.

 Na verdade, é a forma de colonização, de exploração, que até hoje repercute em nossa realidade. Uma estrutura edificada a partir de uma concepção de supremacia de uma cultura (a do invasor europeu) sobre as demais (a do nativo e a dos escravos trazidos), de expropriação da terra e de submissão do outro (o nativo e, depois, também, o escravo de origem africana), com vistas a usurpar e dividir os frutos dessa exploração com a matriz e com seus asseclas internos, residentes definitiva ou temporariamente nas terras exploradas.

As elites locais fizeram e ainda fazem parte da pilhagem da sua própria casa, em prejuízo dos locais e, numa perspectiva de longo prazo, dos seus próprios herdeiros. Mas como não há um sentimento de pertença, imaginam-se “cidadãos do mundo”, integrantes de um outro mundo: o primeiro. Na verdade, são apátridas bem-nascidos que renegam seu próprio berço. E até hoje uma parcela considerável da elite econômica, política e até mesmo intelectual rende seus valores ao centro. Não mais o Velho Mundo: Miami se tornou o suprassumo do modelo cultural de consumismo aculturado.

Tal forma de colonização de exploração, aliás, não foi exclusividade do Brasil. Espraiou-se por toda a América Latina e também, de maneira análoga, pela África, Ásia e Oceania, fossem quais fossem os invasores (portugueses, espanhóis, holandeses, franceses ou ingleses), com resultados invariavelmente semelhantes em termos de dominação política, de produção e expropriação de riquezas e de geração de violência, seja pela morte, submissão e opressão ou pelo puro e simples escravizamento. Aliás, há dois livros quem bem retratam isso: 1492, o Encobrimento do Outro, de Dussel,[6] e as Veias Abertas da América Latina, do saudoso Galeano.[7]

Feitas essas considerações, podemos fechar o foco em nossa formação histórica, em como se forjou nossa estrutura de dominação política (e como já salientamos antes, também a dos demais países da América Latina, eis que análogos nesse talante). Em Raymundo Faoro encontramos, através do elo entre o patrimonialismo e o estamento, um bom começo. Conforme ele salienta, o patrimonialismo nasce dentro de uma ideia de capitalismo “politicamente orientado”. Claro, tomemos aqui o “politicamente” em um sentido pejorativo, da politicagem, do desvirtuamento da representatividade política, dentro do qual

A comunidade política conduz, comanda, supervisiona os negócios, como negócios privados seus, na origem, como negócios públicos depois, em linhas que se demarcam gradualmente. O súdito, a sociedade, se compreendem no âmbito de um aparelhamento a explorar, a manipular, a tosquiar nos casos extremos. Dessa realidade se projeta, em florescimento natural, a forma de poder, institucionalizada num tipo de domínio: o patrimonialismo, cuja legitimidade assenta no tradicionalismo — assim é porque sempre foi.[8]

A partir do patrimonialismo nasce o estamento no sentido de Faoro, como sendo o grupo que se alija no poder, não necessariamente fazendo parte da elite econômica, mas geralmente com ela articulado ou coincidente. Sua regulação não é por meio da lei, mas de convenções que visam, através de trocas e ajudas mútuas, à manutenção parasitária no poder, por meio da apropriação de oportunidades econômicas, seja na esfera pública ou privada, mas sempre com a manipulação do aparelho estatal nesse processo. O estamento não se renova. Mudam-se apenas os quadros, muitos deles passados de uma geração a outra, mas o sistema permanece o mesmo, como uma dinastia. O estamento se exerce e se retroalimenta pela desigualdade social. É da ordem do privilégio.

Em termos de dominação política, o estamento não se converte em verdadeiro governo da soberania popular. Está mais para uma aristocracia travestida com técnicas democráticas – o pretexto para manutenção e utilização das benesses que o poder permite usurpar e gozar. Ao invés de títulos nobiliárquicos, o poder de se pôr e de preencher a seu mando os cargos em postos estatais, de intermediar negócios vantajosos para si e para seus asseclas de concessões públicas, num espectro que varia da gestão direta à regulação de um determinado setor da economia.

Do chefe, no estamento, tal qual o análogo capo italiano, espera-se a provisão e a tutela dos interesses particulares por meio de benefícios e concessões, mas dessa vez através da distribuição de cargos, de modo a fazer a “justiça” nos moldes estamentais – obviamente sem obediências às regras e princípios constitucionais.[9] O uso da coisa pública como própria se naturaliza. O descompromisso para com a comunidade se revela na concepção de que a estrutura pública está ali para ser servida entre os membros do estamento. É o banquete da opulência própria e da desgraça alheia.

No sentido de Faoro, o estamento paira

Sobre a sociedade, acima das classes, o aparelhamento político — uma camada social, comunitária embora nem sempre articulada, amorfa muitas vezes — impera, rege e governa, em nome próprio, num círculo impermeável de comando. Esta camada muda e se renova, mas não representa a nação, senão que, forçada pela lei do tempo, substitui moços por velhos, aptos por inaptos, num processo que cunha e nobilita os recém-vindos, imprimindo-lhes os seus valores.[10]

Faoro reconhece o caráter autoritário do governo estamental que, para ele, detém o poder, monopolizando-o de modo a que seus destinatários não tenham real participação na formação da vontade estatal. Até mesmo a Constituição – embora tendo validade jurídica – é contornada por meio de um “constitucionalismo semântico, no qual o ordenamento jurídico apenas reconhece a situação de poder dos detentores autoritários”.[11] Embora não use a palavra ideologia, Faoro é claro ao dizer que

A autocracia autoritária pode operar sem que o povo perceba seu caráter ditatorial, só emergente nos conflitos e nas tensões, quando os órgãos estatais e a carta constitucional cedem ao real, verdadeiro e atuante centro de poder político. Em última análise, a soberania popular não existe, senão como farsa, escamoteação ou engodo.[12]

Passados mais de cinquenta anos do texto de Faoro, vemos que não houve mudanças consideráveis no cenário descrito por ele. O estamento continua aí. Mesmo após um revés inicial, conseguiu, de certa forma, uma reversão parcial através da absorção dos neopoderosos pelo estamento. Só pretensamente “a esperança venceu o medo”, pois como a estrutura estamental mal foi arranhada, aliada ao idealismo pueril de união entre capital e trabalho, sem levar em consideração que em países periféricos o capital e seus donos ou são de fora ou representam os valores e os interesses de fora.

Assim, o chamado “pragmatismo político” da pretensa renovação gerou concessões incompatíveis com à ética e desnaturou ou desmobilizou os lutadores, convertidos ao estamento ou hipnotizados pela nova condição. E nessa dimensão agora é tarde, mas teria sido muito importante se tivessem entendido o alerta de Nietzsche: “Quem luta com monstros, que se cuide para não se tornar um monstro ao fazê-lo. E se olhas por longo tempo para dentro de um abismo, o abismo também olha para dentro de ti”.[13]

Talvez a solução esteja em Sartre quando diz que “o que importa não é saber o que fizeram de nós e sim o que fazemos com o que quiseram fazer conosco”.


Notas e Referências:

[1] FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala. 48ª ed. Recife: Fundação Gilberto Freyre, 2003, passim.

[2] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

[3] Trata-se de em interessante dissertação na qual o autor faz uma reconstrução de nosso constitucionalismo a partir do processo histórico que engendrou nossa estrutura de dominação política. Cf. LIMA, Danilo Pereira. O poder judiciário e a autonomia do direito: os entraves ao controle do poder político numa sociedade estamental. 2013. 139 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS, São Leopoldo, 2013.

[4] LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro. São Paulo: Pioneira, 1976.

[5] BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do mundo. 2. ed. São Paulo: Fundamento, 2010, p. 313.

[6] DUSSEL, Enrique. 1492: el encubrimiento del otro: hacia el orígen del “mito de la modernidad”. La Paz: Biblioteca Indígena, 2008. Disponível em: <http://www.enriquedussel.com/txt/encubrimiento08.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2015.

[7] GALEANO, Eduardo. Las venas abiertas de América Latina. 2. ed. 8. reimpr. Madri: Siglo XXI, 2009.

[8] FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 5. ed. São Paulo: Globo, 2012, p. 819.

[9] Ibid., p. 827.

[10] Ibid., p. 824.

[11] Ibid., p. 829.

[12] Ibid., p. 829.

[13] Cf. NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Ed. digital Kindle. Porto Alegre: L&MP, 2011, posição 1476.


ROSIVALDO

Rosivaldo Toscano Jr. é doutorando em direitos humanos pela UFPB, mestre em direito pela UNISINOS, membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB, membro da Associação Juízes para a Democracia – AJD e juiz de direito em Natal, RN.    

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