Brasil brasileiro  

27/04/2020

 Coluna Empório Descolonial / Coordenador Marcio Berclaz

Num certo domingo, o telespectador liga a televisão na hora do jantar, buscando distração ou informação. Entre um canal e outro, pululam imagens de homens e mulheres vestindo verde e amarelo pelos quatro cantos do Brasil. Não é final de Copa do Mundo, muito menos carnaval. Estão nas ruas para protestar. Furiosos, esbaforidos e aos berros. Falam de uma grande conspiração, de inimigos internos, externos e imaginados. Levantam faixas, conclamam o direito de retirar direitos. Os dissonantes, ainda acreditando em algum apelo à razão, são agredidos no meio da rua. Na capital da República, um carro para e dele desce o presidente. A mais alta autoridade da nação se junta à cena dantesca, tornando-a mais ignóbil. Jornalistas, repórteres, comentaristas, especialistas, enviados e desviados debatem as imagens em mesas redondas à distância – discutem o indiscutível, retoque final do quadro de horror. [1]

No telespectador, aquele sanatório geral às avessas despeja um gosto amargo na boca, temperado com as sensações de impotência, frustração, ansiedade, raiva e tristeza. Desliga a TV antes de adoecer. Mas as cenas dos brasileiros, senhorzinhos da razão verde e amarela, arautos do caos, falando em nome da salvação deste país chamado Brasil, ainda o perturbam. Perguntas ressoam pela noite de insônia: como eu vim fazer parte deste enredo? Quando fui convidado para esse teatro dos vampiros? Diante do inefável, uma angústia enigmática rola pela madrugada, um suspiro diante de um interlocutor que alguma vez já lhe foi íntimo: por que, Brasil?

Esse sentimento de desidentificação nacional talvez possa ser rastreado nas origens, lá no big bang brasileiro. O historiador Luiz Felipe de Alencastro levanta uma hipótese curiosa sobre esse momento fundante: o Brasil surgiu fora dele. Cuma? Sim, fora dele. Ele foi gestado além das suas fronteiras e territórios bonitos por natureza. O Brasil nasceu pairando sobre o Atlântico, no ziguezague das correntes marítimas entre América e África. Circularmente sobre o anticiclone de capricórnio, vicejaram as primeiras identidades particularmente brasileiras. Identidades unidas por um interesse comum, o tráfico negreiro. Na rapina, no transporte, no comércio, na escravização de corpos humanos, especializa-se a fórmula modular desse país. Os tumbeiros são os ritos de passagem de brasilização dos trópicos americanos, instrumentos que permitem o surgimento de uma elite dirigente desvinculada de Portugal, baseada no avassalamento das comunidades africanas. Os números falam por si, dão conta da magnitude. Mas não em cifras, e sim em corpos, que nada mais eram que as cifras da época: 4,8 milhões de escravizados vindos da África – cerca de 45% do tráfico transatlântico, quase 50% dele comprado com produtos brasileiríssimos, cachaça e tabaco –, o que representa que a cada 100 pessoas que chegavam no Brasil até 1850, 87 vinham nos porões dos navios negreiros.

Repovoamento sem povo dessas terras, é neste circuito atlântico que se dissemina o uso do termo “brasileiro”, antes reservado aos contrabandistas de pau-brasil. É na África, nos entrepostos comerciais de escravizados, que a palavra ganha volume, utilizada para se referir aos mercadores negreiros do Brasil, em distinção aos de origem portuguesa. O uso da palavra dá aso ao contexto: a palavra “brasileiro” ressurge em território africano no momento em que surge a identidade brasileira, baseada no trato dos viventes, por supuesto. Frisa-se aí: o primeiro brasileiro nasce para o mundo vendendo cachaça e comprando seres humanos do outro lado do Atlântico. Se a vida desafiando a arte é uma constante nacional, convenhamos que nem Mário de Andrade seria tão criativo para imaginar semelhante nascimento do brasileiro fundamental. Nada mais emblemático que a primeira expedição militar ultramarina brasileira tenha sido justamente em Angola, no ano de 1648, capitaneada por Salvador de Sá, com o objetivo de retomar das mãos holandesas o principal enclave negreiro nas costas africanas. O Brasil dependia do domínio e da destruição da África para se desenvolver. Portanto, às armas, concidadãos. Se faltava uma guerra patriótica contra nações inimigas, não falta mais. Primeira e Segunda Guerra Mundial que nada, a cobra fumou muito tempo antes. Êta brasileiros aguerridos e arretados, de dar inveja aos marines norte-americanos. O nosso Dia D foi três séculos antes. Não esqueceremos de enviar essas informações para os manifestantes do primeiro parágrafo: AI-5 já virou clichê, Salvador de Sá neles!

Interesses coloniais que informam o nosso surgimento como nação soberana. No entanto, outra pausa. O Brasil é pura mistura de Einstein com teoria quântica. O espaço e o tempo são grandes ilusões, senhoras e senhores. Pois ele não só surgiu fora dele, como nasceu antes de nascer. Mas que diabo é isso? Ora, venha comigo: se o Brasil surge sobre o Atlântico, no vai e vem de embarcações e negócios negreiros, o Brasil vai nascendo antes mesmo da sua Independência, certidão de nascimento dos países americanos. Um Benjamin Button em forma de nação que já nasce velha. A rede do tráfico, as estruturas políticas, os instrumentos de domínio, a psicologia da tortura e o cotidiano da violência já estavam ali, são todos anteriores ao Grito do Ipiranga. Algo até meio que óbvio, já que basta lembrar como aprendemos sobre tal grito na escola: por meio do deboche. Onde já se viu ter seu nascimento em um evento digno de riso? Não, ninguém merece. Que seja antes. Os negreiros são mais críveis do ponto de vista historiográfico, como também são mais dignos.

Se a Independência significou algo, foi para reforçar o Brasil como o bambambã traficante de escravos da p**** toda. Se o século XIX gritava “abolição!”, o Brasil bradava “escravidão!”. Bonita singularidade nacional, de destoar no plano internacional. E como os manifestantes do primeiro parágrafo nos ensinam, todo arrobo patriótico desarrazoado necessita de um inimigo e de uma política de medo. Se hoje é o temor do comunismo que faz tremular as bravias camisas verdes e amarelas, naquela época era o Haiti, pois, imagine só, nada mais antibrasileiro que se afirmar como nação e, ao mesmo tempo, abolir a escravidão. Seria como renegar suas próprias origens! O que Salvador de Sá e os negreiros patriarcas da nação pensariam! Ademais, notem como esse haitianismo deve ter sido algo danado, de implicações profundas. Vejam o que aconteceu há algumas semanas. Quem foi a única pessoa que teve coragem de afrontar, olho no olho, a mais alta autoridade do Brasil nesses tempos caóticos em que vivemos? Sim, um haitiano! Como tal sujeito ousou falar que o excelentíssimo não é mais o nosso presidente? Quanta audácia! Assim como o comunismo, esse tal de haitianismo, ontem e hoje, é uma praga que deve ser combatida com todos os meios necessários, em nome da defesa, segurança e salvação nacional. Contatem o Ministro das Relações Exteriores.

A essa altura do campeonato não pretendo prosseguir a caminhada triunfante do devir brasileiro. Acredito que já está claro para o leitor como cada um de nós se mete nesse enredo. Mas permita-me uma última consideração sobre palavras e origens. O crítico literário Roberto Schwarz, ao analisar o livro Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis – este outro, peste subversiva, pós-haitiano e protocomunista, recheado de ironiazinhas a duvidar da nossa inteligência, que por bem foi alvo da censura no presente ano de 2020 –, indaga se o nome do protagonista da obra, Brás, não seria uma alusão machadiana ao próprio Brasil. Brás é o Brasil. Brás é o brasileiro por excelência. E quem foi Brás e o que diabos Brás tem de relação com o que foi dito até agora? Primeiramente, eu não preciso dizer que Brás Cubas foi um senhor de escravos. Sujeito absolutamente medíocre, sem nenhuma obra de relevo, sem vocação, que viveu de renda (leia-se: viveu de escravos, terras e títulos), que depois viveu também da política, que vivendo da política, transformou-a em palanque dos seus caprichos pessoais, que falsificou uma nobre história familiar, que nunca amou de verdade ninguém, que gostava de quebrar objetos na cabeça dos seus escravos, que chamava negros de “besta!”, que desrespeitava leis e normas de convívio público, que era um sujeito absolutamente medíocre, que defendia os valores familiares mesmo tendo uma amante, que nunca pregou um prego porque tinha criadagem sempre disponível para botar a mão na massa, que acreditava em qualquer teoria estapafúrdia ao seu gosto, como o humanitas de Quincas Borba, que empolava sentenças morais e universais para disfarçar sua imbecilidade intelectual. Egocêntrico, cínico e arbitrário. Reforço, pois acredito que ainda não falei: um sujeito absolutamente medíocre. É desnecessária uma lista extensa das características de Brás quando você, bem aí, provavelmente conhece vários Brás, talvez até seja um. Na dúvida, consulte o grupo de whatsapp mais próximo.

Mas toda essa vida patética nada tem a ver com os sentidos de Brasil. Nem Brás representa o momento em que os negreiros podem finalmente se afirmar, de peito aberto, como sociedade brasileira, construindo seus interesses particulares como interesse geral, interesses de Estado. Muito menos Brás é estetização da ideologia nacional, uma ideologia escravocrata-pseudoburguesa-pseudoliberal, ideologia no sentido marxista (ui, ui, marximo cultural, chamem a polícia!), aquilo que conforma a consciência de todos nós. Tudo isso é balela, convenhamos. Risos. Brás está morto. É um narrador defunto. Isso é o que importa. Morreu de pneumonia – nota de atualização histórica: suspeita de Covid-19 – quando buscava a fórmula do seu Emplasto, cura universal de todos os males da humanidade (agora é a arte que dá um laço na realidade, eim, amados). O pulo do gato está aí, na morte. Brás pode falar como Brasil no momento em que morre. O cadáver permite se despir das falsas aparências e mimetizar Brás e Brasil em uma única voz da verdade. Se o texto começou procurando as origens, Machado fornece o fim: o brasileiro morreu. O Brasil está morto. Porém, é um morto particular, na medida em que ele depende da morte – da sua própria morte – para sentir, falar e ser. Entre emplastos e cloroquinas, nascer e morrer, mortos-vivos, encontramos o nosso lugar nesse espetáculo. Nada mais que a morte como condição da existência do que a alternativa fornecida pelo Brasil aos seus habitantes no momento de término desse texto: morrer de vírus ou de fome. Morrer disso ou daquilo. Morrer disso ou daquilo. Morrer disso ou daquilo. Morrer etc. Depois da longa viagem sobre as origens da desidentificação, é na sempre atual e futura inevitabilidade da vala que reside a reconciliação com esse país. A cova como um desejo nacional. Deus acima de tudo, Brasil acima de todos, todos a três palmos do chão.

 

Notas e Referências

[1] Agradeço a leitura e as sugestões de Nohora Fernández.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Justice isn't blind, she carries a big stick // Foto de: Jason Rosenberg // Sem alterações

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