Há um filme na Netflix: Gostos e Cores. Produção francesa, direção de Myrian Aziza. Em inglês: To each, her own. Adapto ao português: Ela inteira para cada um. Assim fica melhor expresso o que o enredo propõe: alguém pode envolver-se afetivamente com pessoas diferentes sem dilacerar a própria existência.
Já a “proposta” central do filme, pois, está fora dos conceitos predominantes. Contudo, o “grave” na película é que toda a narrativa está fora dos padrões “aceitáveis”. O intolerável, no filme, é explicitado mesmo no seio de comunidades supostamente libertárias, dadas as suas condições “alternativas”.
A personagem principal compõe uma família judia tradicional que abriga, dentre três, um filho e uma filha gay. O filho gay censura a infidelidade da irmã à sua “esposa”. A “esposa” sente-se traída quando a “mocinha” namora um homem. O homem, um masculino politicamente correto, sente-se sexualmente usado.
O sujeito não é um francês convencional, branco, cristão. Trata-se de um negro senegalês muçulmano. Sua mãe o quer casado conforme a tradição, por arranjo de famílias. Seus amigos suspeitam da mulher branca e judia. O casal peca por tão só relacionar-se, e peca mais, comendo salame (carne de porco).
Se quem me lê nutre algum preconceito (sentimento geralmente hostil fundado em equívocos conceituais hauridos do senso-comum circulante) seguramente vai encontrá-lo revelado, contrastado e denunciado no correr do filme: religião, tradição familiar, sexismo, possessividade, racismo, chauvinismo.
Bolsonaro não gosta do meu filme. Nele não há Superação, o milagre da fé, o filme de Bolsonaro. No meu filme há gostos e cores: todas as coisas se podem tentar. Ele não enreda legitimação, nem aos feudos mentais da direita boçal, nem aos devaneios imaginativos prenhes de autoritarismo de certa esquerda.
Bolsonaro quer afastar o Brasil do pecado. Ora, como é possível a vida sem pecado? O estar proibido pelos mandamentos religiosos não significa não existir. Por que existe? Porque é possível, porque nada é determinado, porque há liberdade (Kierkegaard). Há consequências, mas isso é outra coisa.
Justiniano imperou sobre a banda do mundo em que vivemos de 527 a 565. Morreu em Constantinopla, cidade que leva o nome de Constantino, outro imperador (306 a 337), instaurador do catolicismo e editor da Bíblia (concílio de Niceia, 325) – o “povo”, um dia, acabará sabendo dessas coisas, espero.
Um como o outro, com o poder do Império Romano, fizeram das suas as vontades gerais: “Ou é católico, ou está morto”. Constantino impôs a crença católica como única. Justiniano aprofundou o controle sobre a moral e sobre os prazeres do corpo. A Tradição Ocidental estava sob a sua vontade.
Teodora, a imperatriz, inspirava Justiniano. A mulher que governava a par com o imperador fora bailarina circense e prestara serviços sexuais. Vivera os prazeres da vida, “desregrara-se”. Um dia Teodora morreu. Justiniano sofreu. Que Roma sofresse com ele: todos os locais em que se risse foram fechados.
Uma causa de amor de um déspota. Já, nós, estamos sob a causa ideológica de uma mentalidade esbirra. Bolsonaro quer fechar os locais em que se pensa. Ele supõe que certos saberes desenvolvem inteligência à esquerda. A ele interessa que muitos lugares produzam ignorância à direita.
Não que à direita falte inteligência. Refiro os toscos: Bolsonaro quer restringir o ensino de Ciências Sociais e Filosofia porque imagina que aí estão os “comunistas”. Ora, alunos de Humanas são cerca de 1% das Federais. Ademais, estudantes de Exatas voltam-se igualmente à resolução de problemas da Sociedade.
A birra de Bolsonaro é ideológica: modo de pensar, de viver. Se é isso que pensa e vive, será desse modo que Bolsonaro governará. Desafortunadamente, a Bolsonaro não falta coerência. Ele está conforme o prometido em campanha. Ele é isso. Talvez seus eleitores mudem de ideia. Ele não. Veja-se:
“A linha mudou, a massa quer respeito à família. Eu tive uma agenda conservadora, defendendo a maioria da população brasileira, seus comportamentos, sua tradição judaico-cristã” (sobre comercial do Banco do Brasil que tem jovens negros, brancos, cabelos coloridos, tatuagens) (https://glo.bo/2WcFG08).
Felizmente, a livre iniciativa é menos conservadora: “Contra a maré – Ao censurar uma propaganda do Banco do Brasil protagonizada por atores que representam diversidade racial e sexual, o presidente Jair Bolsonaro tira a instituição financeira de uma tendência já consolidada no mercado publicitário.
Só nesta semana, agências como a Young & Rubicam, a Ogilvy e a AlmapBBDO soltaram peças que abordam violência contra transexuais, meninos brincando de boneca e presença de mulheres em profissões com baixa representatividade feminina” (Cunha, J, FSP, 27abr19). Estamos em guerra ideológica.
Bolsonaros prestigiam certas disciplinas. Certo, elas são mesmo importantes. Alguns, contudo, queremos elas e outras não menos necessárias: “Não lemos e escrevemos poesia porque é moda. Lemos e escrevemos poesia porque fazemos parte da raça humana. E a raça humana está impregnada de paixão.
Medicina, Direito, Administração, Engenharia são atividades nobres, necessárias à vida. Mas a poesia, a beleza, o romance, o amor, são coisas pelas quais vale a pena viver” (Sociedade dos Poetas Mortos – Tom Schulman, roteiro, Peter Weir, direção). E nos são imprescindíveis as ciências que pensam a Sociedade.
Simon Schwartzman: “A pesquisa social no Brasil lida com questões fundamentais, como pobreza, desigualdade, emprego, violência, saúde pública, demografia” (Saldaña, P, Gamba, E, FSP, 27abr19). Para a mentalidade bolsonara, tudo isso é “caso de polícia”. A diversidade do meu filme diz que #EleNão.
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