Boletins de ocorrência contra a felicidade alheia: dores desassossegadas

09/11/2015

Por Maíra Marchi Gomes – 09/11/2015

Entendo bem o sotaque das águas Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes. (...) Tenho em mim um atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo. Sou um apanhador de desperdícios: Amo os restos como as boas moscas.

Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.

Manoel de Barros

As coisas jogadas fora têm grande importância — como um homem jogado fora

Aliás é também objeto de poesia saber qual o período médio que um homem jogado fora pode permanecer na terra sem nascerem em sua boca as raízes da escória

Manoel de Barros

A rotina de uma delegacia de uma polícia é deveras curiosa. De um dia, restam histórias trágicas, irônicas, e até inusitadas. Poder-se-ia ilustrá-las com os registros de fatos atípicos que insistentemente chegam até estes locais devido ao uso da política penal como política social e, antes disto, à redução da política criminal à política penal. Porém, talvez seja ainda mais surpreendente (tanto em termos trágicos como cômicos) se nos ativermos ao que possibilita a letra da lei quando desacompanhada de bom-senso. Ou, melhor dizendo, quando acompanhada de subjetividades incapazes de acessar o outro ou interessadas em exterminá-lo.

Veja-se, por exemplo, o que se faz com a contravenção penal da perturbação do sossego. Velha e rotineira visita à Polícia Militar, ela também aparece nos recantos da Polícia Judiciária. Há, por exemplo, moradores de determinado logradouro que se reúnem para registrar boletins de ocorrência contra os lixeiros que passam todas as noites ao lado de suas janelas, por se incomodarem com seus cantos e maneira com que realizam entre si as comunicações necessárias à execução do trabalho (por exemplo, os gritos apresentados pelos que descem do caminhão para recolher o lixo para avisarem ao motorista de que já pode mover o veículo).

Alguns policiais procuram, informando aos comunicantes sobre os possíveis encaminhamentos jurídicos do procedimento policial, desmotivá-los do registro de ocorrência. Para tanto, falam principalmente do que as pretensas vítimas gastarão em termos de tempo, locomoção, etc., até porque logo percebem que são sujeitos que dificilmente se sensibilizarão com menções (pelo menos rápidas) à subjetividade dos trabalhadores que recolhem lixo). Assim sendo, percebem que não caberia, por exemplo, questionar as supostas vítimas sobre como imaginam ser trabalhar à noite, e coletando os odores dos restos alheios. Ou, também, que não cheiraria bem indagar se não é admirável encontrar trabalhadores alegres.

Entretanto, alguns destes comunicantes respondem de forma a evidenciar que não escutaram o que lhes foi dito. Mais precisamente, respondem definindo penalmente o que é a perturbação do sossego[1] para justificar porque a situação que sofrem poderia/deveria ser tratada formalmente pela polícia, não compreendendo que o policial não estava questionando isto, mas justamente questionando se a apropriação penal do fato seria o melhor aos comunicantes/vítimas.

Há inclusive alguns destes grupos de “vítimas unidas” que requerem que a responsabilidade criminal seja não apenas da pessoa física de determinados coletores e motoristas, mas também da pessoa jurídica. No caso, da empresa responsável pelo recolhimento do lixo.

Dependendo do que armazena em si e do que tem a disponibilizar ao outro, pode-se pensar como estes perturbados pela alegria dos profissionais em questão. Mas também se pode compreender que os que trabalham com lixo são sujeitos que, por mais espantoso que seja para alguns, são felizes trabalhando com o que trabalham (inclusive no período noturno), e isto tornar tolerável (e até música para os ouvidos) os sons produzidos pelos que recolhem (em tão curto tempo) nosso lixo.

Aliás, não se pode deixar de apontar para a fragilidade do sossego dos queixosos de que ora se trata, a ponto de uma passagem de poucos minutos por baixo de sua janela de cantoria e/ou gritos alegres interromper-lhes irritadamente o sono. Questiona-se, aliás, como reagiriam caso fossem presenteados com uma serenata. Ou, até, caso fossem constantemente acordados por alguém desejoso de ter relação sexual com eles em noites em que não estão dispostos. E, ainda, caso algum morador de sua residência cantasse de madrugada devido a alguma boa notícia recebida, ou simplesmente colocasse uma música na tentativa de melhor enxergar o que há em sua insônia.

Parece haver uma demasiada sensibilidade a qualquer coisa que prejudique aquilo que estes sujeitos compreendem por ordem. A propósito, conforme Douglas (1976), a sujeira é um subproduto da criação mental da ordem. Talvez os que sem tabus aproximam-se do lixo (até por ser seu ofício) incomodem de maneira tão peculiar precisamente porque representam a desordem.

Ainda seguindo a autora, sabe-se que o lixo torna-se perigoso e ao mesmo tempo poderoso quando sua identidade é ausente. Neste momento, as percepções que os sujeitos fazem sobre ele são indiferenciadas. E, aliás, ambíguas, porque nesta condição em que o lixo retorna ao estágio inicial (uma matéria sem discriminação), ele bem funciona como símbolo ao mesmo tempo do crescimento e da decadência. Ora...talvez o instante em que o lixo de um é misturado com o lixo de todos os outros (dos quais sequer o um tem conhecimento), e ainda prensado (de maneira a formar uma massa única) seja um destes instantes em que o lixo melhor sinaliza ao seu portador que ele faz parte de um coletivo e não é, assim sendo, um ser especial.

Douglas (1976) analisa as antinomias pureza/impureza, limpeza/sujeira, contágio/purificação, ordem/desordem a partir de rituais cotidianos como higiene e alimentação, e também a partir de rituais de diversas religiões, e tabus sexuais. Para ela, as ideias de poluição não apenas influenciariam comportamentos, mas também fundamentariam castigos àqueles que as transgrediriam. Tais castigos partiriam tanto do Estado (sanções legais e civis), como da sociedade civil em contextos nos quais o Estado não monopoliza o uso da força (agressão moral ou física).

Talvez aquele que alegre trabalha com lixo seja compreendido como merecedor de punição porque  via de regra desfavorecido econômica e culturalmente, produzindo num horário em que os que podem estão descansando, e chegando perto daquilo que o outro não mais considerou útil, não demonstra invejar aqueles cujos restos recolhe. Ou demonstre estar melhor (com o que tem, fazendo o que faz, nas circunstâncias em que o faz) que aquele deitado em sono esplêndido.

Bem...talvez o sono não estivesse sendo lá tão bom para que tão facilmente o sujeito deixe-se dele retirar. Talvez o próprio sujeito reclamante da alegria alheia saiba não ser tão puro, limpo, imune e ordenado, e isto, de tão insuportável a seus anseios formatados por interesses político-econômicos de nossa época e lugar, tira-lhe o sono. Ainda lembrando Douglas (1976), quando a busca pela pureza é rígida, resulta em desconforto, contradição e/ou hipocrisia.


Notas e Referências:

[1] A perturbação do sossego é, dentro da legislação brasileira, uma contravenção penal que consiste em perturbar o sossego alheio com as ações mencionadas nos incisos do artigo 42 da Lei das Contravenções Penais, tais como:

  1. gritaria ou algazarra;
  2. exercício de profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais;
  3. abuso de instrumentos sonoros ou sinais acústicos;
  4. provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem a guarda:

Douglas, Mary. (1976). Pureza e perigo: ensaio sobre a noção de poluição e tabu. São Paulo: Perpectiva.


Maíra Marchi Gomes é doutoranda em Psicologia, mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Psicóloga da Polícia Civil de SC.  

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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