Por Maíra Marchi Gomes – 15/02/2016
"Meditei sobre as borboletas. Vi que elas podem pousar nas flores e nas pedras sem magoar as próprias asas." (Manoel de Barros)
Uma das letras de lei que consigo elogiar é a relativa à proteção de animais. As normativas nacionais parecem ser uma das coisas elogiáveis feitas por humanos.
Não sou ingênua a ponto de acreditar que sua aplicação não sofre interferências político-econômicas, em termos de influências de classe social de onde provêm os proprietários dos animais e quem supostamente viola seus direitos. Porém, neste espaço gostaria de abordar a diferença em termos de aplicabilidade da legislação, de acordo com qual animal está-se tratando. Porque é mais fácil querer proteger gatinho, passarinho, tartaruguinha, coelhinho e cachorrinho que, por exemplo, onça, cobra, jacaré e tubarão.
É aquela questão: para se ver até que ponto alguém é fiel à ideia de Direitos Humanos, pergunte a ele o que ele faria caso sua filha fosse estuprada. Se preferir, pode-se perguntar a quem critica a violência policial o que ele esperaria que a polícia fizesse com alguém que o violentou. É só assim, indo ao limite, que se avalia até quando alguém está em suas próprias palavras. É só assim, colocando-nos na posição de vítima, que sabemos o quanto admitimos que o algoz é humano.
Na mesma direção, também se pode perguntar a alguém que propaga a não exclusão de classes o que ele pensaria caso seu filho namorasse uma empregada doméstica. Ou, por fim, a quem diz não ter preconceito de gênero se namoraria um(a) transexual. É só assim, colocando-nos na posição do outro, que sabemos até que ponto não nos consideramos melhor que o outro.
Há sujeitos cujas palavras pronunciadas são palavras ao vento. Sujeitos que usam as palavras de acordo com a imagem que melhor esperam fazer de si (para si, acima de tudo). Poucos são aqueles que são usados pelas palavras. No sentido de se deixar por elas penetrar, e se constituir a partir delas. Serem marcado por elas. Poucos são os que são aquela pouca coisa que se faz com as palavras que os ventos nos trazem. Estão são os humanos. Poucos, é verdade!
Vide, para tratar diretamente do tema deste artigo, os que adoram divulgar revoltados imagens de alguns animais sofrendo e de como amam seus animais de estimação. E que, no entanto, não questionam em momento algum o discurso majoritário de que cobra, onça, jacaré e tubarão, por exemplo, são perigosos. Talvez porque não consigam se identificar com o “mal”, projetado nestes animais, e precisem se identificar com o “bem”, projetado nos animais “fofos”.
Talvez estes humanos sejam da mesma espécie dos que divulgam campanhas de proteção aos vulneráveis (mulher, criança, negros, miseráveis economicamente), mas não se aprofundam no estudo sobre as violências contra este público a ponto de se interessar pelo que se passa com quem diretamente os violenta. E, principalmente, não se interessam em saber da responsabilidade deles nas violências contra o público referido.
Em meus rastejos por este país, tive a bela oportunidade de conhecer Bonito-MS, e inclusive lá retornar. Talvez o retorno fosse outro, porque vivi em Juara-MT entre os dois e oito anos de idade, e a passagem por lá me deixou as melhores marcas que tenho da vida. Das coisas boas que tenho em mim, talvez todas tenham vindo de lá. Até porque nos fazemos muito cedo na vida!
Enfim...em Bonito tive a oportunidade de conhecer a lindeza de alguns humanos a partir do que falavam dos animais. Lembro do Henrique Naufal, contando em sua palestra[1] de como as cobras entraram em sua vida numa viagem ao exterior, e como nunca mais saíram de seu coração. Seu esforço em desmistificar alguns valores religiosos em nós impregnados por meio do conhecimento técnico sobre as cobras, ao lado de sua crítica política (claro...uma coisa sempre vem ao lado da outra), são invejáveis. Recordo-me, por exemplo, de como ele comparava a disponibilidade do público para pagar o que ele cobrava de ingresso para conhecer seu projeto, e para custear outros passeios da região que eram melhor divulgados porque seus proprietários tinham mais apoio político-financeiro. E, por fim, de como não se sentia à vontade para aumentar o custo do ingresso precisamente porque não havia justificativa para isso (alimento de cobra é rato, afinal!).
Também me recordo de um veterinário duma fazenda do Pantanal contando da tão comum cultura de extermínio de onças na região. Mencionou algumas ações do Instituto Pró-carnívoros[2]. Além disto, discorreu sobre como convenceu alguns fazendeiros de que, além de esperada uma certa porcentagem de perda de cabeça de gado numa região que é habitat natural de onças e que é invadida por humanos, o extermínio de onças traz desequilíbrio ecológico. Sim...porque suas presas, se em maior quantidade, acabam por aumentar a porcentagem de desmatamento. Logo, acabam por desequilibrar o ambiente, com conseqüências financeiras.
Hoje, em algumas fazendas da região conseguiram que as onças fossem até chamadas por nomes, de tão toleráveis que são suas existências. Assim também procedem os proprietários de uma certa fazenda em Poconé, com os jacarés [tive o prazer de conhecer o Zé e o João!]. Talvez tenham compreendido que, se há algum intruso ali, são os humanos. E que, em casa alheia, não se deve ditar regras.
Em boca miúda, no entanto, o referido veterinário contou-me uma das matreirices humanas. Agora, alguns fazendeiros criam búfalos ao invés de gado. Isto porque os búfalos reagem a ataques de onça. O rebanho une-se e ataca, diferentemente do rebanho de gado, que se dispersa e foge. Alguns humanos não conseguem abdicar de sua natureza gananciosa. São imprevisíveis e idomesticáveis! Espero que o Ministério Público esteja alerta, assim como os humanos que se dizem defensores de animais.
Para falar da periculosidade humana, recordei também de alguns acidentes que ocorrem envolvendo não só os animais citados, mas também leões. Em todos, se analisarmos sem espetacularização, foi resultado de curiosidade, vaidade e descaso. Logo, de coisas humanas. Sobre isto, cito o Jayson Huss e suas orientações antes de mergulhar com tubarões, meros e arraias no Acquamundo (Guarujá-SP)[3]. Disse-me, aliás, que os animais mais perigosos ali éramos ele e eu, e em seguida me orientou a não tocar nos meros porque eles podem se assustar com humanos.
Na mesma direção, trago os “causos” de acidentes com arraias contados por um barqueiro de Manaus (com os humanos que acreditam que são imunes, que nunca serão as exceções azaradas, e que portanto não precisam tomar as precauções que os profissionais sugerem) e das histórias de encontros com onças contadas por um tratador de cavalos de Poconé-MT.
Por fim, e voltando a Bonito-MS (onde espero passar meus últimos anos de vida), quero compartilhar com vocês a narrativa de um domador de búfalos chamado Hélio. Ele me dizia para não ter medo de montar em búfalo algum, porque mesmo o selvagem não pula, como os cavalos. Ele se defende com o chifre. Logo, se você estiver sobre ele, está a salvo. É só não cair dele, porque aí estará sob a mira do chifre. Além disto, contou-me uma história sobre os nefastos efeitos da intromissão humana numa briga entre búfalos.
Um búfalo albino não era aceito pelos dois outros, de cor mais comum. Certa noite o albino foi agredido pelos que se consideravam “da casa” e aparentemente ameaçados pelo novo integrante do grupo. Coisa de animais. O chifre do albino foi arrancado, até porque ele era jovem; logo, seu chifre era menos sólido que os dos demais. Provavelmente ele seria morto, caso não fosse socorrido por humanos que em certo momento escutaram o que ocorria.
O resultado foi que o búfalo albino nunca foi aceito pelos dois anteriores, e se mantinha isolado. Além disto, o ferimento causado pela perda do chifre resistia a curar e evidentemente deixava-o sem energia e deitado praticamente o dia todo. Sim...um buraco na cabeça a céu aberto, vulnerável a toda sorte de insetos e infecções. Saí de lá sem saber se foi sorte do animal ter encontrado humanos pela frente naquela noite.
Humanos têm a mania de se considerarem o topo da cadeia, em termos de inteligência. Daí, por exemplo, se autorizarem a dizer o que é melhor para o outro (animais e humanos). Infelizmente o discurso jurídico parece se considerar um pouco acima. Vide, por exemplo, a resistência em autorizar a eutanásia. Daí, por exemplo, tornar incondicionadas quase todas as ações relacionadas à violência contra a mulher. Daí, por exemplo, considerar um direito-dever dos pais visitarem os filhos, obrigando crianças e adolescentes a abrirem a porta de seus corações a quem neles não quer estar. Sobre este particular, penso na tristeza que é fechar uma porta depois de ver partindo alguém que nunca esteve.
Tenho sérias dúvidas se o humano é capaz de proteger outro humano ou um animal. Ou pelo menos de o fazer quando ele pretende substituir, com sua “proteção”, aquilo que o protegido demanda. Suprir não é o mesmo que substituir.
Termino com a fala de um guia num dos passeios de flutuação em Bonito. Um dos turistas perguntava se ali também passavam sucuris, ou se elas estavam apenas no Rio Sucuri. O guia, após responder que raramente eles tinham a sorte de topar com uma cobra dessas ali, tranqüilizou aquele que se considerava uma potencial vítima explicando que num ambiente equilibrado a sucuri tem à disposição seu alimento preferido; logo, não precisa procurar humanos. Encerrou assim: “Ou vocês acham que somos tão gostosos assim?”.
Notas e Referências:
[1] http://www.projetojiboia.com.br/.
[2] http://procarnivoros.org.br
[3] http://www.acquamundo.com.br/
. Maíra Marchi Gomes é doutoranda em Psicologia, mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Psicóloga da Polícia Civil de SC.
Facebook (aqui) .
Imagem Ilustrativa do Post: Hunting jaguaress // Foto de: Tambako The Jaguar // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/tambako/8074740407
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/2.0/legalcode
O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.