Bauman, crise penitenciária e a tutela do refugo humano – Por Jader Marques

30/01/2017

O ano de 2017 começa com a triste notícia do falecimento do sociólogo Zigmunt Bauman.

Em tempos obscuros de massacres de pessoas no interior de presídios superlotados – fenômeno que assola o país e expõe as vísceras de um sistema carcerário apodrecido – aumenta a importância de se ler e reler os livros do pensador polonês.

No livro Vidas Desperdiçadas[1], o autor traça um impressionante e dramático paralelo entre o lixo que é produzido pela sociedade pós-industrial tecnologicamente avançada e a quantidade de seres humanos que, da mesma forma, são encarados como o refugo, a sobra, o resto, de uma sociedade voltada para a produção e o consumo. O livro fala sobre o “refugo humano”, “seres refugados”, considerados os “excessivos” e “redundantes”, os que não puderam ou não quiseram ser reconhecidos ou obter permissão para ficar, tomados como um “produto inevitável” da modernização, acompanhante inseparável da modernidade, que deve ser tomado como um inescapável efeito colateral da construção da ordem.

Todas as localidades (incluindo, de modo mais notável, aquelas com elevado grau de modernização) têm de suportar consequências do triunfo global da modernidade e procuram (em vão, ao que parece) soluções locais para problemas produzidos globalmente. O fato é que, para resumir uma longa história: a nova plenitude do planeta significa, essencialmente, uma crise aguda da indústria de remoção de refugo humano.

Enquanto a produção de refugo humano prossegue e atinge novos ápices, o planeta passa rapidamente a precisar de locais de despejo do lixo.[2] É impressionante a possibilidade de interligação do pensamento a respeito da gestão do lixo com a política criminal de contenção, pelo uso da incriminação, da massa de pessoas desprovidas de qualquer meio de subsistência, que habitam os locais mais miseráveis da sociedade, sobrevivendo à custa de pequenos e grandes crimes. Aqui, não é a pobreza ou a discriminação pela cor da pela que condicionam a exclusão, mas sim, a falta de capacidade de produtividade e de consumo, ou seja, sem dinheiro e sem trabalho, o ser humano perde seu valor intrínseco, passando, a partir disto, a constituir a faixa dos refugos, dos descartáveis.

A natureza desregulada e politicamente incontrolada dos processos de globalização resultou na fundação de novas condições do tipo terra de fronteira e espaço de fluxos planetários, para a qual se tem transferido grande parte da capacidade de poder que se aloja nos estados soberanos modernos. O equilíbrio frágil, inapelavelmente precário, dos ambientes das terras de fronteiras, que se baseiam na vulnerabilidade mutuamente assegurada, ao mesmo tempo em que conduzem as preocupações do público e os escoadouros da ansiedade individual para longe das raízes econômicas e sociais do problema, na direção de preocupações com a segurança pessoal (corporal). E não há como separar este medo, como fato gerador de demanda por segurança, das consequências diretas do projeto moderno de escoamento e controle do refugo.[3]

Ora, é assim que florescente a indústria da segurança, que se torna rapidamente um dos principais ramos da produção de refugo e fator fundamental no problema de sua remoção. Esse é, em linhas bem gerais, o ambiente da vida contemporânea: os problemas do refugo (humano) e da remoção de lixo (humano) pesam ainda mais fortemente sobre a moderna e consumista cultura da individualização.

Resta evidente a questão da dicotomia entre Estado de Bem-estar e Estado Recolhedor de Lixo (humano). Nesta linha, note-se que na área do planeta comumente compreendida pela ideia de “sociedade”, não há um compartimento reservado ao “refugo humano” (mais exatamente, pessoas refugadas). A pessoa refugada, na melhor das hipóteses, é tolerada, firmemente assentada do lado receptor da ação socialmente recomendada ou aceita, tratada nos casos mais positivos como objeto de benevolência, caridade e piedade, mas não de ajuda fraterna. Estas pessoas, como é comum no discurso da ordem e do progresso, geralmente são acusadas de indolência e suspeita de intenção iníquas e inclinações criminosas.

Na tutela penal do refugo, este modo de pensar o uso da incriminação é esclarecedor, sobretudo como estratégia de estado resolver o problema da exclusão pela via do depósito nas cadeias, verdadeiros depósitos de lixo da modernidade.

No projeto moderno, na sociedade líquida, pessoas têm sido destinadas ao lixo. A metáfora ajusta-se perfeitamente ao estado da arte do sistema penitenciário brasileiro nesta quadra do tempo.

Excluídas do processo produtivo, do mercado de consumo, da configuração do que seja a “sociedade”, as pessoas refugadas passam a constituir um fator de risco para as demais, um fator desencadeante de constrangimento, notadamente, nos Shoppings Centers que ajudaram a construir, mas que não devem frequentar.

A justiça penal, especialmente em países periféricos como o Brasil, não está preocupada com a questão do lixo humano e seus depósitos. Os juristas, em geral, só pensam neste assunto nas ocasiões em que uma avalanche de dejetos desce pela montanha de refugos e quebra as cercas destinadas a proteger seus quintais. A dogmática penal não visita as montanhas de lixo, da mesma forma que não há exemplos de direito penal envolvendo bairros problemáticos, ruas perigosas, guetos urbanos, campos de refugiados em busca de asilo e outras áreas interditadas, que são cuidadosamente evitadas.

Remover os dejetos da maneira mais radical e efetiva: tornando-os invisíveis. Eis, aqui, a questão das prisões como depósitos de lixo humano. O preso é o segredo vergonhoso de uma sociedade desigual, assim como o refugo e o segredo sombrio e vergonhoso de todo processo de produção. De preferência permaneceria como segredo. Como o volume de lixo não permitiria que ele fosse encoberto e tivesse sua existência negada, surge a indústria de remoção do lixo, ramo da produção moderna que nunca ficará sem emprego. A sobrevivência moderna depende da destreza e da proficiência na remoção do lixo.

Mais uma vez, num paralelo bastante constrangedor, fica evidente o papel da Polícia, do Ministério Público, do Judiciário, das Defesas (pública e privada) como indústria penal de remoção de lixo humano, formado por seres descartáveis e que devem ser descartados do conjunto da sociedade.

E como a modernidade é um estado de perpétua emergência inspirado e alimentado por um senso de alguém tem de dar ordens para que o todo não se perca, a alternativa a um futuro (pré)planejado é o domínio do caos. A modernidade é uma condição da produção compulsiva e viciosa de projetos e, onde há projeto, há refugo. Neste estado de emergência, é indispensável que sejam tomadas novas iniciativas penais a cada momento, antes mesmo que uma anterior iniciativa em matéria penal possa demonstrar seus efeitos (sabidamente pífios ou inexistentes).

Há um genocídio provocado pelo uso do direito penal nas camadas mais baixas da população, via política criminal transformada em política governamental, como substituto das plataformas sociais vinculadas ao Welfare State.[4] Esta mesma percepção pode ser encontrada na atuação do estado penal, diante da tutela das pessoas refugadas pelo esquema moderno de produção baseado no binômio capacidade de venda da força de produção e capacidade de consumo.

A utilização da prisão dentro do modelo neoliberal apresenta-se a partir de um paradoxo: remediar com um “mais estado” policial e penitenciário o “menos estado” econômico e social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva em todos os países, tanto do Primeiro como do Segundo Mundo.[5]

Há, efetivamente, uma opção a ser feita, entre o tratamento social da miséria e de seus correlatos (numa visão de longo prazo guiada por valores de justiça social e de solidariedade) e o tratamento penal, ligado ao controle de massas do subproletariado, num processo que se concentra, especialmente, no curto prazo dos períodos eleitorais, a partir de máquina midiática sem qualquer controle (que vende a insegurança como mercadoria).[6]

Em tal contexto, nessas rápidas e descompromissadas linhas, ficam os profissionais do direito e acadêmicos convocados a visitarem a obra de Zigmunt Bauman, ampliando seu horizonte de compreensão a respeito de fenômenos tão complexos como a questão da crise penitenciária.[7]

Em linhas mais simples, leia Bauman antes de curtir e compartilhar Bolsonaro no facebook ou de dizer por aí que “bandido bom é bandido morto”.

Descanse em paz mestre.

Mais não digo.


Notas e Referências:

[1] BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

[2] É importante destacar que os diagnósticos elaborados pelo Departamento Penitenciário Nacional, não deixam dúvidas de que o Brasil vivencia uma tendência aumento das taxas de encarceramento em níveis preocupantes. O país já ultrapassou a marca de 622 mil pessoas privadas de liberdade em estabelecimentos penais, chegando a uma taxa de mais de 300 presos para cada 100 mil habitantes, enquanto a taxa mundial de aprisionamento situa-se no patamar de 144 presos por 100.000 habitantes (conforme dados da ICPS - International Centre for Prison Studies). Com esse contingente, o país é a quarta nação com maior número absoluto de presos no mundo, atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia. Contudo, ao passo que esses países estão reduzindo as suas taxas de encarceramento nos últimos anos, o Brasil segue em trajetória diametralmente oposta, incrementando sua população prisional na ordem de 7% ao ano, aproximadamente. O ritmo de crescimento do encarceramento entre as mulheres é ainda sensivelmente mais acelerado, da ordem de 10,7% ao ano, saltando de 12.925 mulheres privadas de liberdade em 2005 para a marca de 33.793, registrada em dezembro de 2014. Não há pistas de que o encarceramento desse enorme contingente de pessoas, cuja análise do perfil aponta para uma maioria de jovens (55,07% da população privada de liberdade tem até 29 anos), para uma sobre-representação de negros (61,67% da população presa), e para uma população com precário acesso à educação (apenas 9,5% concluíram o ensino médio, enquanto a média nacional gira em torno de 32%) esteja produzindo qualquer resultado positivo na redução da criminalidade ou na construção de um tecido social coeso e adequado.  (http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/documentos/infopen_dez14.pdf)

[3] Idem. pp. 12-18.

[4] SÁNCHEZ, Jesús Maria Silva. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução de Luís Otávio de Oliveira Rocha. São Paulo: RT, 2002.

[5] WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

[6] Essa é a situação da Europa, a qual se vê atualmente na esteira dos Estados Unidos, assim como nos países recentemente industrializados da América do Sul, tais como o Brasil e seus principais vizinhos, Argentina, Chile, Paraguai e Peru. WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. p. 7.

[7] Sobre o tema, do mesmo autor, imprescindível: Confiança e medo na cidade (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009), Medo Líquido (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008) e Modernidade Líquida (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000), para ficar apenas nesses três, já que toda obra do sociólogo conversa com a questão da modernidade e seus efeitos na constituição de um estado líquido do viver na contemporaneidade.


Notas e Referências:

[1] PORTO, Hermínio Alberto Marques. JÚRI – PROCEDIMENTOS E ASPECTOS DO JULGAMENTO. 7ª Ed. – São Paulo:  Malheiros Editores, 1994, p. 54

[2] Tribunal do Júri – Considerações Críticas à Lei 11.689/08 de Acordo Com as Leis 11.690/08 e 11.719/08. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.


 

Imagem Ilustrativa do Post: Vistoria no presídio central - Créditos: Rodney Silva OAB/RS // Foto de: OAB/RS Seccional Rio Grande do Sul // Sem alterações

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